Texto Vanessa Vergne e Wallace Cardozo
Fotos Wallace Cardozo/PETCOM
Em bairros periféricos da região metropolitana de Salvador, cercadas por um público vibrante, emergem vozes que, com ou sem a ajuda de um microfone, recitam poesias ou entoam canções. Os saraus, como é chamado este fenômeno, acontecem na capital baiana, assim como em cidades vizinhas, e propõem uma agenda alternativa ao cenário cultural da cidade.
Os saraus têm em comum um cunho político e de conscientização, característica diretamente ligada ao fato de serem realizados em comunidades periféricas. Com isso, mesmo não existindo ligação formal entre suas organizações, compartilham das mesmas demandas e, consequentemente, de um público parecido. “Nosso foco é mostrar a qualidade de nossa arte e dar visibilidade a quem faz cultura dentro da periferia”, diz Evanilson Alves dos Santos, 20, músico, poeta e um dos fundadores do Sarau da Onça, sarau fundado em maio de 2011 - o mais antigo ainda em atividade em Salvador.
NOSSO FOCO É DAR VISIBILIDADE A QUEM FAZ CULTURA DENTRO DA PERIFERIA
EVANILSON ALVES DOS SANTOS
Criado a partir da ideia de um grupo de amigos que moravam no bairro de Sussuarana, o evento tem a intenção de mostrar caminhos de transformação da realidade através da palavra falada. O sarau ocorre em um anfiteatro, dentro das dependências do Centro de Pastoral Afro Padre Heitor Fizzotti, ao menos uma vez por mês.
O bairro de Cajazeiras V é palco, pelo menos uma vez ao mês, de outro desses saraus. Organizado pela Juventude Ativista de Cajazeiras (JACA) desde maio de 2014, o evento consegue “fomentar a literatura em uma realidade em que ler é um hábito pouco exercido”, de acordo com o organizador Cairo Costa, 31. O microfone é aberto a qualquer pessoa que deseje participar do evento, e a cada poetisa ou poeta que se coloca frente a ele, o lugar é inundado por diferentes sentimentos, inquietações e vivências.
Em Itinga, bairro de Lauro de Freitas, cidade vizinha à capital, o Arte na Praça movimenta mensalmente a praça José Ramos em um formato um tanto diferente. A ProduArt, produtora que organiza o sarau, realiza um cadastro dos artistas interessados em apresentar-se no evento para melhor organização da programação.
O evento atrai uma média de 170 pessoas por edição, chegando a atingir picos de 200 espectadores, segundo dados da produtora. Nele, ocorrem apresentações dos mais diversos gêneros: além de poesia e música, há apresentações de dança, teatro e até de stand-up comedy. "Existem muitas pessoas boas que cantam, escrevem, tocam e, a partir do evento, começaram a mostrar seu trabalho", conta Mateus Lopes, 19, diretor executivo da ProduArt.
PROTAGONISMO FEMININO
Em todos os diferentes saraus é possível perceber o mesmo ambiente de acolhimento e respeito ao outro dentre o público, organização e artistas. A concentração de todos e todas durante as apresentações só é quebrado por palmas vibrantes. Isto também se percebe em outro tipo de evento que tem como foco a poesia: os Slams (do inglês, significa “batida”). Esta é uma modalidade de disputa entre poetas, que recitam poesias autorais e são avaliados por um júri. No Conjunto ACM, no bairro do Cabula, em Salvador, o Slam das Minas é um exemplo desta competição. O grupo de competidores, assim como a organização do evento, é composto exclusivamente por mulheres.
Em cada edição, até 20 poetisas podem se inscrever para o duelo. “Fazemos a primeira fase com todas as inscritas e depois acontecem as eliminatórias. Na primeira fase, restam cinco meninas. Dessas cinco, três disputam a final”, explica Jaqueline Nascimento, 22, que faz parte da organização do Slam das Minas. Além disso, as campeãs disputam eliminatórias para representar a Bahia no Slam BR.
A POESIA MOSTRA UMA POTÊNCIA CAPAZ DE CONSTRUIR UMA COMUNIDADE QUE UTILIZA A PERIFERIA COMO PRINCIPAL ESPAÇO
O júri é composto por mulheres das mais variadas posições. “Escritoras, professoras, MCs, as meninas que recitam poesia no ‘buzu’, a assistente social da comunidade, a mãe de alguém que estava no Slam”, enumera Jaqueline. “Procuramos dinamizar a bancada, de pessoas mais comuns até escritoras renomadas”, completa Fabiana Lima, 21, também organizadora do evento.
Pollyana Menezes, 21, estudante do curso de pedagogia da UNEB, já foi finalista em edições do Slam das Minas. Para ela, “o slam é uma iniciativa ‘massa’. São mulheres pretas e suas escritas, que são escutadas por outras mulheres e homens pretos. É extremamente importante tanto para as mulheres que recitam quanto para as que escutam compreenderem que não passam por tudo isso sozinhas". A poesia mostra, mesmo em diferentes formatos, uma potência capaz de construir uma comunidade poética que utiliza a periferia da cidade como principal espaço.
PALAVRA COMUNITÁRIA
Renielson Andrade, 19, morador de Itinga e frequentador do Arte na Praça há seis anos, ressalta o impacto que atividades como os saraus têm na comunidade. "Há uma importância muito grande em termos de expansão de conhecimento. O que eles apresentam é bastante educativo. Geralmente vêm até pessoas de fora [do bairro] para conhecer".
Desde o início, os eventos foram abraçados pelas comunidades onde são realizados. Os moradores são os principais agentes de divulgação e fortalecimento dos saraus, atraindo artistas e poetas de outras localidades da cidade, e, assim, proporcionando a troca de vivências e sentimentos que parecem entrelaçar diferentes realidades periféricas em uma grande comunidade: a da palavra.