H REVISTA FRAUDE

Ano 13 | 2016 - nº14 - Salvador/Bahia

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Troca de Segredos

Por meio de shows, espetáculos e debates, O Circo Troca de Segredos impulsionou a cena cultural soteropolitana dos anos 80

texto Paula Holanda e Thiago Conceição
fotos de arquivo

Era um verão de 1983, logo após o carnaval. Em Ondina, na Avenida Oceânica, onde hoje está localizado um pequeno campo de futebol, se arquitetava o Circo Troca de Segredos, que por cinco anos foi um dos espaços culturais mais movimentados de Salvador. Antes de sua inauguração, as peças de teatro costumavam permanecer, no máximo, um mês em cartaz. Para lançar e prolongar a exibição de uma adaptação da peça “Inspetor Geral”, de Nikolai Gogol, o grupo de teatro Troca de Segredos em Geral – formado por Paulo Conde, Caco Monteiro, 55, João Elias e Tereza Oliveira, 59 – decidiu consolidar um novo ambiente voltado para as artes. Os atores, que descobriram uma estrutura de circo abandonada no galpão da prefeitura, tiveram a ideia de utilizá-la como um teto para espetáculos e eventos.

O entusiasmo do grupo não era suficiente para garantir a concretização do projeto - o mastro, os mastaréus e a lona precisavam ser pagos. A equipe, que não tinha dinheiro, pediu empréstimos de familiares e amigos. Ainda assim, não conseguiram o suficiente e ficaram devendo uma parte para o governo. Solicitaram um espaço circular na orla de Ondina, pertencente à Marinha, e lá ergueram a estrutura. Envolta pelo oceano e pela gama de coqueiros da paisagem, a lona causou estranhamento e curiosidade por parte dos moradores de Ondina. A princípio, o circo não tinha cerca, grades ou qualquer tipo de proteção, e seus criadores revezavam noites de sono em uma rede para protegê-lo contra furtos.

O espaço foi inaugurado com um show acústico de Caetano Veloso, que acabara de sair do exílio e, na época, morava na Adhemar de Barros. Lucinha Mascarenhas, amiga de Tereza, era esposa de Roberto Sant’Ana, 73, um renomado produtor tropicalista que fez a ponte para o evento. De preço acessível e com fila quilométrica, o lançamento atingiu sua lotação de 1500 pessoas, e outras 3000 ficaram de fora. A apresentação de voz e violão foi de cunho intimista e o desnível entre palco e público não passava de um metro, bem como a distância entre o banco em que Caetano estava sentado e a linha tênue que o separava dos espectadores. O músico, que inicialmente receberia cachê, doou toda a bilheteria ao circo, o que foi suficiente para pagar o resto da lona, arquibancadas rudimentares e um piso de madeira, antes arenoso. O resto do lucro obtido com o evento garantiu uma agenda cultural de semanas.

A programação era bastante plural. Aconteciam apresentações de teatro, palestras e debates de temáticas diversas, shows dos mais variados gêneros e aulas de dança, yoga e tai chi chuan. "Existia um cronograma fixo, mas havia espaço para eventos à parte. A universidade nos procurou para fazer festivais e os políticos nos procuraram para lançar campanhas", conta Tereza. Além de lançar artistas como Margareth Menezes e Luís Caldas, o Troca foi palco para os primeiros shows de bandas como Ira!, Titãs e Barão Vermelho na Bahia. Com o passar dos anos, o circo tornou-se um ponto de encontro notável na cidade. "Você poderia não marcar nada com ninguém, mas se fosse sozinho, ainda se encontraria com todos os seus amigos", conta Vadinha Moura, 56, produtora cultural e ex-backing vocal da banda Dúvida Externa.

texto Paula Holanda e Thiago Conceição
fotos de arquivo

Era um verão de 1983, logo após o carnaval. Em Ondina, na Avenida Oceânica, onde hoje está localizado um pequeno campo de futebol, se arquitetava o Circo Troca de Segredos, que por cinco anos foi um dos espaços culturais mais movimentados de Salvador. Antes de sua inauguração, as peças de teatro costumavam permanecer, no máximo, um mês em cartaz. Para lançar e prolongar a exibição de uma adaptação da peça “Inspetor Geral”, de Nikolai Gogol, o grupo de teatro Troca de Segredos em Geral – formado por Paulo Conde, Caco Monteiro, 55, João Elias e Tereza Oliveira, 59 – decidiu consolidar um novo ambiente voltado para as artes. Os atores, que descobriram uma estrutura de circo abandonada no galpão da prefeitura, tiveram a ideia de utilizá-la como um teto para espetáculos e eventos.

O entusiasmo do grupo não era suficiente para garantir a concretização do projeto - o mastro, os mastaréus e a lona precisavam ser pagos. A equipe, que não tinha dinheiro, pediu empréstimos de familiares e amigos. Ainda assim, não conseguiram o suficiente e ficaram devendo uma parte para o governo. Solicitaram um espaço circular na orla de Ondina, pertencente à Marinha, e lá ergueram a estrutura. Envolta pelo oceano e pela gama de coqueiros da paisagem, a lona causou estranhamento e curiosidade por parte dos moradores de Ondina. A princípio, o circo não tinha cerca, grades ou qualquer tipo de proteção, e seus criadores revezavam noites de sono em uma rede para protegê-lo contra furtos.

O espaço foi inaugurado com um show acústico de Caetano Veloso, que acabara de sair do exílio e, na época, morava na Adhemar de Barros. Lucinha Mascarenhas, amiga de Tereza, era esposa de Roberto Sant’Ana, 73, um renomado produtor tropicalista que fez a ponte para o evento. De preço acessível e com fila quilométrica, o lançamento atingiu sua lotação de 1500 pessoas, e outras 3000 ficaram de fora. A apresentação de voz e violão foi de cunho intimista e o desnível entre palco e público não passava de um metro, bem como a distância entre o banco em que Caetano estava sentado e a linha tênue que o separava dos espectadores. O músico, que inicialmente receberia cachê, doou toda a bilheteria ao circo, o que foi suficiente para pagar o resto da lona, arquibancadas rudimentares e um piso de madeira, antes arenoso. O resto do lucro obtido com o evento garantiu uma agenda cultural de semanas.

A programação era bastante plural. Aconteciam apresentações de teatro, palestras e debates de temáticas diversas, shows dos mais variados gêneros e aulas de dança, yoga e tai chi chuan. "Existia um cronograma fixo, mas havia espaço para eventos à parte. A universidade nos procurou para fazer festivais e os políticos nos procuraram para lançar campanhas", conta Tereza. Além de lançar artistas como Margareth Menezes e Luís Caldas, o Troca foi palco para os primeiros shows de bandas como Ira!, Titãs e Barão Vermelho na Bahia. Com o passar dos anos, o circo tornou-se um ponto de encontro notável na cidade. "Você poderia não marcar nada com ninguém, mas se fosse sozinho, ainda se encontraria com todos os seus amigos", conta Vadinha Moura, 56, produtora cultural e ex-backing vocal da banda Dúvida Externa.

Por baixo da lona

Apesar de calorento, o Troca de Segredos não era abafado, pois o frescor da brisa do mar atravessava as pequenas frestas que separavam a lona do solo. Em noites chuvosas, os pingos penetravam o tecido e causavam goteiras durante os espetáculos. O circo não possuía uma boa estrutura acústica, tampouco era um ambiente aconchegante. "Não havia conforto algum, o som era muito tosco. Nós não tínhamos acesso a bons equipamentos", afirma Roger, 53, mais conhecido como DJ Roger N’Roll.

 

A UNIVERSIDADE NOS PROCUROU PARA FAZER FESTIVAIS E OS
POLÍTICOS NOS PROCURARAM PARA LANÇAR CAMPANHAS
TEREZA OLIVEIRA

 

O Troca de Segredos tinha ingressos com preços acessíveis, que eram vendidos através da janelinha de uma pequena bilheteria, e esporadicamente contava com eventos gratuitos. Se alguém quisesse fumar um baseado ou tomar um ácido, teria que se retirar do ambiente e, nas noites mais cheias, a praia era tomada por usuários de drogas ilícitas. Alimentos também eram vendidos por fora do circo, nos quiosques e podrões que o circundavam. Para evitar acidentes, não eram permitidos efeitos pirotécnicos durante os espetáculos.

 

Punk pós-ditadura

O general João Figueiredo, presidente da república, decretou abertura política após 20 anos de ditadura militar; no entanto, os resquícios de censura contra diferentes formas de expressões artísticas eram nítidos nas ações policiais. O Ministério da Cultura, a Fundação Cultural e as leis de incentivo fiscal eram inexistentes. Por outro lado, o punk rock estava em seu auge: os soteropolitanos passaram a ter contato com Sex Pistols, Ramones e The Clash e deram início à sua própria cena punk. Era o começo de bandas como Camisa de Vênus, Gonorréia e Skarro.

Nesse contexto, o circo foi espaço de eventos musicais voltados para o rock alternativo, o punk e o heavy metal. As bandas tinham seus nomes censurados nos jornais, temiam a repressão e buscavam um ambiente de liberdade, autonomia e descontração. O Troca acolheu bandas locais e seus admiradores, bem como apresentou à Salvador bandas de outras cidades e até mesmo de outros estados, tais quais Legião Urbana e Ratos de Porão. As apresentações sempre atrasavam, e os fãs esperavam seus ídolos passarem pela grade de proteção para falarem com os mesmos. Criadores de conteúdo alternativo aproveitavam o espaço para trocar fanzines e fitas k-7.

 

VOCÊ PODERIA NÃO MARCAR NADA COM NINGUÉM, MAS SE FOSSE SOZINHO, AINDA SE ENCONTRAROA COM TODOS OS SEUS AMIGOS
VADINHA MOURA


De uma selvageria cômica, os punks vestidos com camisas customizadas com alfinetes de fralda batiam correntes na frágil estrutura que servia como palco, faziam duelos de cusparadas e quebravam discos de vinil da tropicália no meio dos shows. O público era majoritariamente masculino. As mulheres eram proibidas de ir aos shows pela família e algumas assistiam às bandas por fora da lona. As poucas que frequentavam, iam acompanhadas por outros homens. "Eu cheguei a ver meninas sendo hostilizadas por bandas punks em alguns eventos. Eram agredidas, às vezes expulsas. Era um ambiente muito hostil", conta o músico Tony Lopes, 53.

 

Fecham-se as cortinas

O grupo fundador participava ativamente da realização dos eventos, a organização era exclusivamente deles. Eles exerciam todas as funções simultaneamente: eram produtores executivos, mestres de cerimônia, bilheteiros, zeladores, assessores. Ao longo dos cinco anos de existência do Circo Troca de Segredos, diante do cansaço e das rotas pessoais dos integrantes, a equipe foi se desmembrando. Primeiro saiu Caco, depois Tereza, em seguida  João e, por fim, Conde.

Com a falta de assistência para continuarem realizando eventos, os donos não eram mais capazes de manter o espaço. A programação era cada vez mais escassa, os eventos eram cada vez menos notáveis e o público era cada vez menor. “O circo começou a ficar feio em um espaço nobre”, conta Caco. Em 1988, o circo chegou ao fim com a perda de importantes auxílios e a retirada abrupta de sua estrutura pela prefeitura.

 

 

Por baixo da lona

Apesar de calorento, o Troca de Segredos não era abafado, pois o frescor da brisa do mar atravessava as pequenas frestas que separavam a lona do solo. Em noites chuvosas, os pingos penetravam o tecido e causavam goteiras durante os espetáculos. O circo não possuía uma boa estrutura acústica, tampouco era um ambiente aconchegante. "Não havia conforto algum, o som era muito tosco. Nós não tínhamos acesso a bons equipamentos", afirma Roger, 53, mais conhecido como DJ Roger N’Roll.

 

A UNIVERSIDADE NOS PROCUROU PARA FAZER FESTIVAIS E OS
POLÍTICOS NOS PROCURARAM PARA LANÇAR CAMPANHAS
TEREZA OLIVEIRA

 

O Troca de Segredos tinha ingressos com preços acessíveis, que eram vendidos através da janelinha de uma pequena bilheteria, e esporadicamente contava com eventos gratuitos. Se alguém quisesse fumar um baseado ou tomar um ácido, teria que se retirar do ambiente e, nas noites mais cheias, a praia era tomada por usuários de drogas ilícitas. Alimentos também eram vendidos por fora do circo, nos quiosques e podrões que o circundavam. Para evitar acidentes, não eram permitidos efeitos pirotécnicos durante os espetáculos.

 

Punk pós-ditadura

O general João Figueiredo, presidente da república, decretou abertura política após 20 anos de ditadura militar; no entanto, os resquícios de censura contra diferentes formas de expressões artísticas eram nítidos nas ações policiais. O Ministério da Cultura, a Fundação Cultural e as leis de incentivo fiscal eram inexistentes. Por outro lado, o punk rock estava em seu auge: os soteropolitanos passaram a ter contato com Sex Pistols, Ramones e The Clash e deram início à sua própria cena punk. Era o começo de bandas como Camisa de Vênus, Gonorréia e Skarro.

Nesse contexto, o circo foi espaço de eventos musicais voltados para o rock alternativo, o punk e o heavy metal. As bandas tinham seus nomes censurados nos jornais, temiam a repressão e buscavam um ambiente de liberdade, autonomia e descontração. O Troca acolheu bandas locais e seus admiradores, bem como apresentou à Salvador bandas de outras cidades e até mesmo de outros estados, tais quais Legião Urbana e Ratos de Porão. As apresentações sempre atrasavam, e os fãs esperavam seus ídolos passarem pela grade de proteção para falarem com os mesmos. Criadores de conteúdo alternativo aproveitavam o espaço para trocar fanzines e fitas k-7.

 

VOCÊ PODERIA NÃO MARCAR NADA COM NINGUÉM, MAS SE FOSSE SOZINHO, AINDA SE ENCONTRAROA COM TODOS OS SEUS AMIGOS
VADINHA MOURA


De uma selvageria cômica, os punks vestidos com camisas customizadas com alfinetes de fralda batiam correntes na frágil estrutura que servia como palco, faziam duelos de cusparadas e quebravam discos de vinil da tropicália no meio dos shows. O público era majoritariamente masculino. As mulheres eram proibidas de ir aos shows pela família e algumas assistiam às bandas por fora da lona. As poucas que frequentavam, iam acompanhadas por outros homens. "Eu cheguei a ver meninas sendo hostilizadas por bandas punks em alguns eventos. Eram agredidas, às vezes expulsas. Era um ambiente muito hostil", conta o músico Tony Lopes, 53.

 

Fecham-se as cortinas

O grupo fundador participava ativamente da realização dos eventos, a organização era exclusivamente deles. Eles exerciam todas as funções simultaneamente: eram produtores executivos, mestres de cerimônia, bilheteiros, zeladores, assessores. Ao longo dos cinco anos de existência do Circo Troca de Segredos, diante do cansaço e das rotas pessoais dos integrantes, a equipe foi se desmembrando. Primeiro saiu Caco, depois Tereza, em seguida  João e, por fim, Conde.

Com a falta de assistência para continuarem realizando eventos, os donos não eram mais capazes de manter o espaço. A programação era cada vez mais escassa, os eventos eram cada vez menos notáveis e o público era cada vez menor. “O circo começou a ficar feio em um espaço nobre”, conta Caco. Em 1988, o circo chegou ao fim com a perda de importantes auxílios e a retirada abrupta de sua estrutura pela prefeitura.

 

 

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