texto Guiovan Oliveira e Tarsila Carvalho
ilustrações Alexandre Cabral (Aleco)
Foto Dan Figliuolo/Labfoto
Em espaços geralmente associados à pressa e à correria da vida cotidiana, a figura de alguém recitando poesia, o som de um violão ou de atores em cena, ou até mesmo uma mulher nua pichando um muro de cinco metros podem captar o olhar do passante. Dos ônibus lotados na hora do rush ao tranquilo trânsito portuário dos mares da baía de Todos os Santos, no embalo da viagem que liga Salvador à Ilha de Itaparica, são compartilhados poesia, rima, dança, canto e encenações.
“É o inusitado que provoca as pessoas”, afirma Marie Thauront, 51, maquiadora francesa radicada em Salvador. Tendo feito algumas performances nua, Marie observa como algo simples pode chamar a atenção se estiver inserido num contexto incomum. Para o ator Heron Senna, 26, quem pratica arte de rua fica à deriva na cidade. “Nunca se sabe quando o show vai começar ou acabar, cada ônibus é um mundo, e o engarrafamento é o palco perfeito!”, brinca.
Com suas intervenções, os artistas de rua interrompem o conforto habitual e quebram o barulho do cotidiano, mas nem sempre conseguem prender a atenção do transeunte. O camarim é ali mesmo na escada entre os andares do ferry boat Pinheiro. Ajeita-se daqui, conserta microfone dali, testa o som. O ressoar da sirene de partida da embarcação se mistura ao som do teste do microfone. Uma caixinha pendurada na cintura, com um mecanismo funcionando à base de pilhas, impulsiona as vozes.
A cantora e compositora Iara Villanueva, 35, termina os últimos ajustes nas lantejoulas vermelhas que compõe seu figurino e combinam com o batom. É visível o nervosismo em torno do que ela e seu companheiro vão apresentar. Antônio Costa, 23, torce os dedos e pergunta em voz alta, a si mesmo: “O que eu vou cantar para eles?”.
“É preciso ser muito confiante para fazer isso. Tem que estar preparado para tudo”, afirma Iara. Durante sua performance musical na travessia do ferry boat, os dizeres contagiam alguns dos passageiros presentes e enervam outros, que reclamam do som que fazem o violão e o pandeiro, retirando, por alguns instantes, o protagonismo da seleção que joga no Maracanã em plena Olimpíada sediada em território brasileiro. O poema envolve o desejo do eu lírico de mudar a realidade ao seu redor - as guerras, o genocídio do jovem negro, a corrupção.
Habituada aos palcos, Iara reconhece a pluralidade das reações. “A pessoa que está na rua não pediu pra ver seu show. As vezes, ela não está nem um pouco feliz. Está triste, chateada. A relação que estabelecemos com o público é um pacto inimaginável”. A incerteza acerca da receptividade do público é um dos desafios que enfrentam os artistas de rua, mas para a estudante e poetisa Nayri Almeida, 21, o “frio na barriga” vale a pena. “O importante é a identificação do outro com o que você fala, o fato de enxergar a sua história de vida e se sentir representado”, defende.
Vozes
Em frente ao teatro Gamboa Nova, pichações escritas em branco e vermelho narram uma situação de violência com a qual se identificam muitas mulheres. O texto é parte de uma carta recebida por Marie Thauront de um ex-parceiro. Tendo sido submetida a um relacionamento abusivo, a artista aproveitou o conteúdo da carta para compor parte de sua exposição “Mu(r)ros”.
“Quem é você, mulher? Com um murro eu te desmonto”, diz o texto. Segundo Marie, na estreia da performance, três mulheres negras vinham subindo da Gamboa. Leram o trecho reproduzido pela artista e logo rebateram: “Desmonta nada! O poder está na buceta!”
Seguiram seu curso dando risada. Quando voltaram, Marie já havia terminado e resolveu convidá-las para irem à abertura da exposição, dessa vez dentro do teatro. “Disseram que não iam deixar elas entrarem”, conta a artista. “Quando a arte está dentro de galerias e dos museus, a gente não se sente à vontade para entrar. A rua te dá uma voz”, completa.
Foi com esta voz que Carine Amorim, 23, encontrou o espaço que desejava para expressar a sua realidade. Poetisa, versa sobre a discriminação da polícia e a abordagem violenta desta com a população negra. “Minha vivência de adolescência foi no bairro periférico onde cresci. É de onde vem a realidade das minhas poesias”, conta. Na praça do Campo Grande, Nayri rima sobre o mesmo tema e não se intimida com uma abordagem policial que coincidentemente se inicia por suas costas.
Para o artista visual e artesão Gean Almeida, 29, a recepção mais positiva vem de pessoas de classes mais baixas. “Tem as classes mais altas que hostilizam. Mas o público mais periférico gosta e valoriza meu trabalho”, conta. Dentre outras artes, Gean confecciona mandalas tridimensionais, cuja matéria-prima é o arame. O trabalho manual acessível é, também, uma forma de comunicar a este público a possibilidade de produzir um objeto artístico. “O importante é que o povo absorva as ideias e possa expandir a arte em toda parte”, afirma. Para tal, Gean compartilha uma cartilha de como fazer a mandala para quem adquirir o produto.
NUNCA SE SABE QUANDO O SHOW VAI COMEÇAR OU ACABAR, CADA ÔNIBUS É UM MUNDO,
E O ENGARRAFAMENTO É O PALCO PERFEITO!
HERON SENNA
Manifesto Coletivo
Por meio do cotidiano urbano, os artistas de rua tecem suas entrelinhas. A polifonia rítmica da vida os inspira a conceber suas obras e as expor a qualquer passante que seja, em troca de uma recompensa monetária fortuita e pontual ou um sorriso de agradecimento. “Mercar no ônibus é um traço cultural muito forte aqui em Salvador. É também uma forma de tornar essa manifestação artística rentável”, pontua Iara.
Foi em meio à crise política que Heron resolveu levar a performance cênica à rua. Uma de suas primeiras apresentações ocorreu durante a ocupação do Ministério da Cultura em Salvador. “No meio desse processo de impeachment [da presidenta Dilma Rousseff], pude ressuscitar meus textos poéticos e tive coragem de expô-los publicamente na rua”. A máscara de glitter no rosto - de Flora, sua personagem dragqueen - é o que ele acredita que dá como pista ao público do tipo de apresentação que está prestes a ocorrer.
QUANDO A ARTE ESTÁ DENTRO DE GALERIAS E MUSEUS, A GENTE NÃO SE SENTE À VONTADE PARA ENTRAR. A RUA TE DÁ UMA VOZ
MARIE THAURONT
Tendo começado a trabalhar com carteira assinada aos 16 anos, Antônio conta que adquiriu sua própria estabilidade desde cedo. “Comecei a me questionar sobre o que meu trabalho me trazia. Me vi capaz de discernir minhas sensações e pensamentos, e resolvi aproveitar. Faço da arte a minha vida até hoje”. O jovem se apresenta há dois anos na rua - canta, toca violão e recita poemas de autores como Vinícius de Moraes e Fernando Pessoa, além de versos de sua própria autoria.
“No começo a gente entra em crise e se pergunta: ‘Como vou sobreviver?’ Mas hoje em dia, acho que não trabalho mais para ninguém”, afirma Iara, que ressalta o poder do uso da palavra e a conexão com o trabalho no ônibus. “A gente já vê uma mudança nos baleiros. Alguns já estão usando a palavra e a poesia de modo diferente”, diz. No caso dos artistas, é singular a passagem do famoso “chapéu”, que garante a sua valorização e sobrevivência fora de um regime convencional de trabalho.