texto Marco Antônio e Gabriela Medrado
fotos Marco Antônio/Labfoto
Seis e meia da manhã de uma segunda-feira. Acordar, tomar banho, vestir a roupa e café. Sete e meia. Já está atrasado para a reunião no escritório. Pega a bolsa, confere as chaves e sai para garagem. Passa direto pelo carro em direção à bicicleta encostada na parede. Olha no aplicativo do mapa o melhor caminho para o trabalho. Segue pedalando entre o fluxo de carros da cidade. Sempre à direita. Barra, Campo Grande, Contorno e Comércio. Oito horas. Adentra o edifício. Segue até o banheiro para limpar o suor. No horário, caminha para a sala de reunião.
As narrativas criadas de cima da bicicleta podem ser diversas. Transporte, lazer, esporte e escolha política. Seja qual for a motivação, andar de bicicleta se apresenta como uma alternativa dentro dessa cultura habituada à carros e ônibus. Mais do que um meio de mobilidade, é um estilo de vida e um novo modo de ver e enxergar a cidade.
PRIMEIRAS PEDALADAS
Andar de bicicleta é uma brincadeira popular durante a infância, tão comum quanto pique-esconde, pega-pega ou amarelinha. Com a chegada da vida adulta, no entanto, as brincadeiras ficam para trás, e o hábito de andar de “magrela” acaba se perdendo. Para as pessoas envolvidas na cultura do ciclismo, os motivos que as levaram a retomar esse hábito são diversos. O empresário Daniel Bagdeve, 41, resolveu voltar a pedalar após 15 anos de sedentarismo. “Eu pedalava desde criança, mas comecei a fazer faculdade, trabalhar, e parei por falta de tempo”, conta. Para ele, voltar a andar de bike foi uma decisão por melhorar sua saúde e qualidade de vida.
Já o estudante Felipe Leal, 22, viu na bicicleta um complemento para sua rotina esportiva. Praticante de parkour, ele foi incentivado a usar bike por seus colegas de treino, e hoje ela é seu principal meio de transporte. “Tento andar ao máximo com ela, qualquer lugar que dá pra ir de bicicleta eu vou”. Amigo e incentivador de Felipe, o estudante de letras Bruno Reis, 23, também faz parte do grupo de parkour e anda de bicicleta há cerca de 5 anos. Para desenvolver esse hábito e relação de confiança, foi preciso começar com trajetos pequenos. “Geralmente só usava a bike para ir aos treinos, ia no trabalho um dia na semana, então abandonei o ônibus de vez”, conta.
Para quem não quer se aventurar nas ruas ou nunca andou de bike, o lazer costuma ser uma forma de começar a pedalar. A funcionária pública Marcella Marconi, 33, faz parte da iniciativa Bike Anjo, uma rede de ciclistas que surgiu em São Paulo em 2010 e hoje conta com cerca de 4200 participantes, espalhados em 14 países. Os bike anjos trabalham individualmente como instrutores de bicicleta e promovem as Escolas Bike Anjo, eventos para ensinar pessoas a andar de bicicleta.
Durante dois domingos de cada mês, a praça do Campo Grande ou a orla de Piatã recebem a motivação e curiosidade de pessoas que buscam dar suas primeiras pedaladas. O público varia entre crianças ávidas por se livrar das infantis rodinhas, perseguidas por seu pais preocupados, adultos que nunca andaram de bike e balançam tentando encontrar o equilíbrio, e principalmente mulheres que não tiveram a alegria de pedalar quando mais jovens. “Mulheres acima de 40 e poucos anos chegam dizendo ‘é meu sonho. Meus irmãos sabem, mas meu pai não queria que eu aprendesse’ “, conta Marcella.
Iniciativas como a Escola Bike Anjo introduzem a população ao mundo da magrela como esporte e atividade de lazer, mas podem também ser uma porta de entrada para a bike como estilo de vida e mobilidade urbana. “Muitos acabam percebendo que podem mais. Estou sempre falando para o pessoal de onde moro que vou para o trabalho de bicicleta, para mostrar pras pessoas que dá sim”, diz Marcella, que considera seu exemplo uma importante ferramenta para mobilizar seus alunos.
NARRATIVAS SOBRE A BIKE
Utilizar a bike no dia a dia pode trazer diversas mudanças no cotidiano e estilo de vida do ciclista, do planejamento da rotina até o modo de se relacionar com a cidade. “Eu comecei a conhecer mais Salvador andando de bike. Antes de sair eu sempre olho o mapa e procuro o caminho mais rápido e seguro. Vou testando vários percursos, conhecendo novos bairros, explorando”, diz Felipe, que vê na bicicleta uma forma de ter mais autonomia em sua mobilidade.
Para Marcella, além de mudar seu olhar sobre a cidade, pedalar é uma escolha que a fez refletir sobre outros aspectos de sua vida. “É algo que vai muito além da bicicleta: é sua liberdade, sua independência, sua visão de cidade. Tudo está interligado, e a bicicleta é só uma ferramenta nesse modelo de vida que a gente acaba adotando”, diz. Pedalar é um hábito que pode tomar dimensões diferentes na vida de cada ciclista, ser algo casual ou um estilo de vida. Em alguns casos, pode se tornar até mesmo uma profissão ou oportunidade de negócio.
Daniel fez do seu gosto pessoal uma forma de ganhar a vida. Formado em gestão de redes, passou grande parte da sua trajetória profissional sentado na frente do computador. Voltar a andar de bicicleta o tirou do sedentarismo e ajudou a melhorar sua qualidade de vida. Seis meses depois, ele juntou sua paixão por bike com a vontade de ter seu próprio negócio e criou a empresa Já Fui de Bike, que aluga bicicletas e realiza passeios turísticos de bike dentro e fora de Salvador. Ele também atua como consultor, ajudando ciclistas menos experientes a adquirir confiança e planejar rotas para andar de bike.
Já o estudante Gustavo Ivo, 24, começou no início de 2016, com a ajuda de três amigos, um sistema de entregas por bike, o Segunda Via - Bike Courier. Seu serviço é semelhante ao de um motoboy, mas o fato de as entregas serem feitas por bicicleta ainda é considerado estranho por algumas pessoas. “Às vezes eu faço entrega em alguns lugares e as pessoas não entendem. Ocorre esse estranhamento, mas não vejo como resistência, e sim desconhecimento”, conta Gustavo.
A motivação para o seu negócio, assim como a própria escolha de pedalar para se locomover, foi a preocupação com o meio ambiente. “É muito complicada essa massificação do carro, a expansão das rodovias dentro das grandes cidades, e a emissão de gases. Andar de bicicleta é um ato na contramão disso tudo”, conclui. Gustavo anda de bike desde 2010, e para ele, a diminuição do uso de veículos automotivos é uma questão importante da cultura que se formou em torno do uso da bicicleta.
PEDALANDO POR MELHORIAS
Pessoas praticando exercícios nas ciclofaixas, carros empurrando os ciclistas para fora da pista, má sinalização e falta de continuidade das ciclovias. Estes são alguns dos problemas enfrentados por quem anda de bicicleta em Salvador. Para muitos ciclistas, a estrutura da cidade não atende às suas necessidades. A maioria das ciclofaixas é voltada para o lazer, sendo boa parte delas concentradas em regiões nobres da cidade. Daniel acredita que o mais importante é que as bicicletas possam ocupar as vias compartilhadas com segurança.
Apesar do compartilhamento das vias ser um direito dos ciclistas, é comum a prática do chamado “fino educativo”, no qual os veículos motorizados intimidam os ciclistas, empurrando contra o passeio, a fim de abandonarem a pista. “Me parece que quando você entra num carro há uma sensação de poder, o próprio motorista não é acostumado a dividir. É tipo ’Foda-se que qualquer batida minha pode te derrubar, não vou sair do meu caminho’”, reflete Felipe. Conscientes do fortalecimento da cultura de uso da bicicleta, os órgãos públicos tentam se adequar às novas demandas.
O Detran formou, em 2015, um grupo de trabalho em parceria com as principais lideranças cicloativistas baianas. Desde então foi criado um plano de valorização do ciclismo na Bahia, que engloba pautas como a redução da velocidade nas vias e a capacitação de motoristas de ônibus e táxi para lidar com ciclistas no trânsito. O Diretor de Educação para o Trânsito do Detran-BA, Eliezer Cruz, se mostra otimista: “Estamos em um processo de articulação junto aos ciclistas e órgãos públicos. Temos nos aproximado cada vez mais da prefeitura no sentido de provocar, influenciar, discutir melhorias”.
O uso da bicicleta, seja como meio de transporte, lazer ou atividade física, se apresenta como uma alternativa perante diversos problemas enfrentados na vida urbana. Sair do sedentarismo, ter mais autonomia em sua mobilidade, diminuir o impacto sobre o meio ambiente ou até mesmo se divertir: qualquer que seja o motivo que leva as pessoas a ingressarem nessa prática, a bicicleta acaba fazendo parte de seu estilo de vida. Junto com a bike vem um novo olhar sobre a cidade, uma nova forma de encarar o dia a dia, e a vontade de continuar pedalando.