texto Pascoal de Oliveira e Verena Guimarães
fotos Gabrielle Guido/Labfoto
“O corpo de um dançarino não pode mentir”. A frase da dançarina e coreógrafa americana Martha Graham reflete-se na vida de todas as pessoas que têm a dança como profissão, mas tem mais potência na daqueles dançarinos que estão na terceira idade. Mulheres e homens com cerca de 60 anos, cujos corpos expressam não apenas sentimentos e histórias através da arte, mas também podem ser considerados exemplos de resistência contra as limitações físicas impostas pelo tempo.
Esse processo de envelhecimento incluiu, por exemplo, o letão Mikhail Baryshnikov, considerado um dos melhores dançarinos do século XX. Em entrevista ao jornal LA Times quando tinha 61 anos, o bailarino acrescentou à frase de Graham o fato de ter um “corpo de um homem mais velho: você não pode fingir exuberância ou tecnicidade”. Mas a experiência obtida com o tempo resgata a beleza de um dançar mais autêntico: “você é quem você é. De certa forma, menos é mais”.
A experiência dá o passo
“Enquanto bailarina, a dança é meu alimento, minha forma de conhecer o corpo e de trabalhar minha sensibilidade”. É desta forma que Roquidélia Silva, 56, enxerga a dança, arte da qual é professora e coreógrafa. A dançarina, que atualmente ministra aulas de Dança Afro-Brasileira na Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), dá início a sua aula em meio aos olhares atentos e movimentos sincronizados de alunos em sua maioria jovens.
Com a carreira iniciada ainda na infância, a professora defende que a idade pode ser um diferencial positivo no resultado de uma performance: “apesar do condicionamento físico dos idosos influenciar, a experiência adquirida ao longo dos anos pode ajudar a ganhar destaque nas apresentações”.
Para Antrifo Sanches, 53, professor da Ufba e diretor do Balé do Teatro Castro Alves (BTCA), os dançarinos mais velhos têm maior conhecimento sobre as capacidades do próprio corpo. Ele, que convive com bailarinos de diversas faixas etárias, afirma que “os mais novos ainda não conhecem totalmente a musculatura e restrições do corpo. Estar em cena não é limitante, a limitação é só em alguns movimentos’’.
SE ME PERGUNTAREM ‘VOCÊ DA UM GRAND JETÉ, COM AS PERNAS EM 180 GRAUS?’, DIREI NÃO. MAS HÁ OUTRAS FORMAS DE ME EXPRESSAR COM O CORPO
LÍCIA MATOS
Lícia Matos, 65, que também trabalha no BTCA, é uma bailarina que frequenta os corredores do local desde 1963. Ainda criança, iniciou seu contato com a dança sendo incentivada pela família que é composta, em sua maioria, por artistas. Ela se recorda das suas primeiras aulas no local que ainda está se recuperando do incêndio. Inicialmente, a escola de balé foi criada para que as meninas consideradas da “sociedade” aprendessem movimentos leves próprios da dança clássica. Dessas meninas, poucas se firmaram na arte, e hoje Lícia é uma das que ainda sobem ao palco.
Lícia tem postura de bailarina: enquanto se expressa, até os movimentos mais banais mostram certo grau de destreza. “Se você me perguntar: você consegue dar um grand jeté (salto em que o bailarino abre as duas pernas no ar), com as pernas em 180 graus? Direi não. Mas eu encontro outros caminhos de expressividade com o meu corpo’’. Ela explica que o bailarino não tem a mesma força muscular de quando era jovem, mas consegue transpor o movimento para a realidade corporal atual.
O mercado da dança
Grandes nomes da história da dança brasileira, como Carlinhos de Jesus, dançarino de salão e Ana Botafogo, bailarina, respectivamente com 64 e 60 anos, continuam ativos. Um dos motivos que explicam isso, segundo o profissional de relações públicas e fisioterapeuta Cássio Aragão, 43, é “que apesar do idoso remar contra a maré do envelhecimento, a saída para resistir ao processo é aceitar as mudanças e minimizar as características do corpo fazendo aquilo que se gosta”. Para ele, os artistas de sucesso “reconhecem a importância da aparência física, porém dão foco à ação profissional”.
ATRAI MAIS PÚBLICO COLOCAR NO
PANFLETO O CORPO DE UM JOVEM
TAMIR SILVA
A bailarina Lícia defende que houve uma mudança no pensamento dos próprios profissionais: “na minha época, aos 30 anos o dançarino já era considerado velho. Hoje já temos outra mentalidade”. Apesar disso, o Mapeamento Nacional da Dança de 2016, relatório produzido pela Universidade Federal da Bahia e a Fundação Nacional das Artes (FUNARTE/MINC) a partir de um perfil dos profissionais da dança, mostra que apenas 4,5% dos dançarinos estão acima de 56 anos.
A partir das suas experiências em grupos covers de k-pop, que reproduzem e adaptam coreografias de videoclipes da cultura pop coreana, o dançarino Tamir Silva, 22, acredita que “apesar de ser um assunto pouco debatido entre nós [profissionais], há uma tendência a valorizar os mais jovens”. Ele atribui isso ao modo de se enxergar o corpo idoso, porque “a sociedade geralmente associa o belo à juventude. Atrai mais público colocar num panfleto o corpo de um jovem”, lamenta.
Ainda para Tamir, a relevância dessa discussão envolve diferentes faixas etárias porque envelhecer é um processo natural. “Os jovens não têm o costume de pensar na terceira idade, e sim no aqui e agora. Mas como todos nós iremos chegar lá, é importante tocar nesse assunto, até mesmo pra abrir o mercado para essa faixa etária”, alerta o coreógrafo.
Além do físico
Pina Bausch foi uma dançarina alemã considerada uma das mais influentes da sua geração. Ela era adepta do conceito de “dança-teatro”, do movimento expressionista alemão, que explora a junção de elementos teatrais - como figurino, roteiro ou até falas - à dança. No auge da sua carreira, Lícia passou dois anos no corpo de balé de Bausch e sintetiza que essa forma de enxergar a prática cria novas possibilidades para os profissionais porque “dançar é o princípio da vida”.
E completa: “você pode considerar o gesto, o pulsar do corpo ou o ato de falar como uma dança. Mas, para ser arte, devemos trazê-la para a dimensão estética, porque é um movimento que precisa de sentido”. Sentido que habita tanto os movimentos mais refinados quanto os mais simples e demanda algo além da fisicalidade do dançarino. Por isso, não se restringe a nenhuma faixa etária.