Produtores independentes transformam roupas e acessórios em arte
texto Eduardo Bastos e Maria Fernanda Paixão
diagramação Eduardo Bastos e Isadora Sarno
foto de capa Luisa Calmon/Labfoto
narração Gabriel Caino
Já pensou em adicionar ao look um brinco de lâmpada que acende de verdade? E vestir uma camisa estampada com arte abstrata? Quem sabe uma jardineira que se molda ao formato do corpo? Ou talvez usar um colar escrito “meu cu” em miçangas? Se você respondeu ‘sim’ para alguma dessas perguntas, saiba que é possível! Essas e outras propostas inusitadas contribuem para dar mais personalidade ao cenário da moda de Salvador.
Modus, termo de origem latina, se refere a “modo” e “costume”. É daí que vem a palavra moda. Relacionada a comportamento e expressão, a moda acompanha os contextos social, ideológico e político de seu tempo. “Vivemos em um momento de contestação, de repensar o consumo de uma forma geral”, afirma Gina Reis, pesquisadora de Cultura e Sociedade. Nesse cenário atual de necessidade de criação de novos espaços e produtos, está inserido o trabalho de Carla Santos, Dante Freire e da dupla Pedro Batalha e Hisan Silva, produtores independentes de Salvador.
“eu, mulher preta, gorda, lésbica, já comi o pão que o diabo amassou até chegar aqui. mas se hoje faço acessórios tão diversos e coloridos, é porque encontrei a minha maneira de transmutar.”
carla santos
“A moda, para mim, é um ato político. O que você veste mostra sua identidade e representa o que você pensa.” Essa premissa norteia o trabalho da artista e empresária Carla Santos, 28. Os acessórios da sua marca @soclosebb enunciam expressões autoafirmativas com irreverência. “Sou viado”, “sou sapatão”, “lésbica futurista” se formam no conjunto de miçangas coloridas que viram brincos, colares ou pulseiras.
O termo “só close, bebê” é uma expressão do pajubá, dialeto LGBTI+. “Close significa você estar plena, bem consigo mesma, chamando atenção”, explica a artista. “Dar close” também é uma forma de empoderar-se diante das opressões sociais. “Eu, mulher preta, gorda, lésbica, já comi o pão que o diabo amassou até chegar aqui. Mas se hoje faço acessórios tão diversos e coloridos, é porque encontrei a minha maneira de transmutar”, completa.
Carla iniciou fazendo as peças a partir de objetos quebrados, como um hobby, para uso pessoal. A customização se tornou uma forma de aplicar sua individualidade nos acessórios. Assim, os brincos de lâmpadas, tijolos e pompons foram surgindo e chamando a atenção dos amigos, que começaram a fazer encomendas. “O que normalmente só eu usava ganhou destaque porque também existiam outras pessoas com vontade de transmitir sua identidade por meio da moda”, diz.
A dupla multiartista que assina a marca @Dendezeiro, Hisan Silva, 21, e Pedro Batalha, 22, combina elegância com versatilidade. Eles iniciaram com um brechó e lançaram sua primeira coleção autoral em janeiro de 2018. As peças da marca, que segue na linha do agênero, do street e do afro, são de tamanho único e reguláveis do P ao GG, feitas com amarrações e tecidos elásticos. “É legal ver que as roupas ficam embrulhadinhas no seu corpo, do jeito que você quiser”, diz Hisan.
E quem vê a leveza das fotografias oficiais da Dendezeiro, talvez, não esteja atento à minúcia com a qual elas são elaboradas. Pedro e Hisan planejam e executam tudo que é necessário para o lançamento de uma nova coleção. Desde a escolha do tecido e da costura até o estudo de como as cores podem influenciar no humor. “É um projeto no qual não trabalhamos só com a venda de roupa. Vendemos sonhos, conceitos, um estilo de vida”, pontua Pedro.
Já para o artista transexual Dante Freire, 26, a criação da sua marca @inf3rnin está atrelada ao seu processo de transição hormonal. O que sentia por dentro, transformou em arte abstrata por fora. Suas ilustrações são, principalmente, de rostos estampados artesanalmente no tecido de camisetas e ecobags. “Também personalizo peças de brechó porque a pintura muda toda a estética da roupa. Gostaria de provar que roupas negligenciadas podem ser lidas de outra forma”, diz o artista.
“eu tento imprimir o quão sufocado me sinto no que eu pinto. a minha bagunça mental está toda ali no que faço”
dante freire
Seu processo criativo é principalmente sensorial. Sem depender apenas do resultado, ele se deixa levar pela obra enquanto a cria. Essa é a sua técnica para transmitir o que sente dentro de si. Dante considera a arte intuitiva e a interpretação dela cabe a cada um individualmente. “Eu tento imprimir o quão sufocado me sinto no que eu pinto. A minha bagunça mental está toda ali no que faço”, revela.
Com o sucesso da Dendezeiro, Pedro e Hisan saíram de seus empregos formais para se dedicar integralmente à marca. “É engraçado que eu fico mais exausto do que antes, só que sou mais feliz. A gente sente menos do que se estivesse trabalhando em outro lugar”, confessa Pedro. Eles também são estudantes e aplicam os conhecimentos da universidade na assessoria de comunicação e na produção fotográfica do próprio negócio.
Ainda que a dificuldade de se manter apenas com esse trabalho seja algo apontado pelos artistas, o lucro não é o principal objetivo. Carla acredita ter colocado o seu lado emocional em primeiro lugar ao invés do racional quando o assunto é dinheiro. Os acessórios são vendidos pensando no poder aquisitivo do seu público, predominantemente de estudantes LGBTI+. “Eu tento colocar as coisas muito acessíveis. Não ao ponto de sair no prejuízo, mas, para mim, o lucro é a movimentação da ideia.”
Dante não produz pensando em vender. O processo criativo vem em primeiro lugar, junto com sua subjetividade expressa nas ilustrações das roupas. Outra recompensa é a representatividade. Sua intenção é influenciar mais pessoas trans a fazerem arte, uma vez que ele foi inspirado por esses artistas a começar. “Acho importante transexuais falarem a frase ‘sou trans e estou tentando me inserir no mercado da arte’”, diz.
Por conta do recurso que permite vendas no próprio aplicativo, o Instagram tem sido um dos principais difusores de trabalhos independentes na internet. Para Dante, o Inf3rnin funciona principalmente como portfólio. Lá, ele conhece pessoas interessadas em suas roupas e as vende por mensagens diretas. No caso de Hisan e Pedro, além da plataforma, as vendas também são realizadas no site oficial da marca. Já o Só Close BB tem recebido pedidos de fora da Bahia e pretende ampliar seu negócio. No entanto, por fazer tudo sozinha, Carla ainda não conseguiu inserir os Correios na sua rotina.
Através também dessa rede social, por meio de mensagens diretas e marcações em posts, os produtores têm maior contato com o público. Em dois anos trabalhando com moda, Hisan e Pedro já acumularam mais de 6,7 mil seguidores no @dendezeiro_ e vestiram artistas como Márcia Castro, Maria Gadú, Majur e Hiran. “As pessoas nos marcam quando a roupa chega, tiram fotos e nos mandam. Esse feedback é muito positivo”, diz Pedro.
“já vendi uma gargantilha escrito ‘meu cu’. por que eu fiz isso? porque eu sei que tem pessoas com vontade de dizer ‘meu cu’ para o mundo”
carla santos
Além das lojas virtuais do @soclosebb e @inf3rnin, ambos também expõem seus trabalhos no evento mensal nu_quintal, que engloba performance, música, exposição e brechó, e tem acontecido no Mukunã Lab, no bairro da Saúde. Produzido independentemente, o nu_quintal é um espaço de fortalecimento de artistas como Carla e Dante. Os dois têm presença garantida nas edições, onde vendem suas peças pessoalmente.
O processo de produção dos artistas se confunde com suas trajetórias pessoais e carrega fortemente questões relativas às suas vivências. A afinidade com a proposta das marcas e com seus criadores é algo comum no seu público, que se reconhece nessa produção. Hisan percebe isso nos consumidores da Dendezeiro: “Não é à toa. As pessoas se conectam com o trabalho que a gente faz porque a trazemos o que muita gente sente falta”, afirma com relação à proximidade da marca com o público negro e LGBTI+.
“é um projeto no qual não trabalhamos só com a venda de roupa. vendemos sonhos, conceitos, um estilo de vida”
pedro batalha
O contato físico com os clientes assume uma grande importância para Carla. Além de poder conhecer pessoas novas, ela descobre na prática o que as pessoas acham dos seus acessórios. “Acho que, por serem inusitados, elas veem de uma forma muito divertida, isso é massa. Mas a melhor parte é quando enxergam a identidade delas nos produtos.” Ela completa com uma situação engraçada: “Já vendi uma gargantilha escrito ‘meu cu’. Por que eu fiz isso? Porque eu sei que tem pessoas com vontade de dizer ‘meu cu’ para o mundo”.
“A moda é extremamente libertária para se pensar a questão das identificações”, Gina Reis afirma sobre o reconhecimento do público nas peças e acessórios, mas além disso o interesse por produções como a de Só Close BB, Inf3rnin e Dendezeiro se relaciona, também, ao que a pesquisadora coloca como “preocupações contemporâneas” dos consumidores: a origem das peças e acessórios e seu processo de criação são pontos que passam a interessar o público e intermediar seu consumo.
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