A representatividade do corpo de pessoas com deficiência e nanismo na moda é possível
texto Emilly Tiffany e Ray Lucca Pio
diagramação Marcelo Azevedo
foto de capa Arquivo pessoal de Vitória Souto
narração Rute Souza Cruz
Desconforto, inquietação, necessidade de ajustar aqui e ali, incômodo na pele: as causas de tudo isso pode ser uma roupa desajustada. Vitória Souto, 23, cadeirante há três anos, revela: “Se você veste alguma coisa que não te cai bem, você não está consumindo moda, você está sendo uma vítima dela”. Formada em Design de Moda, ela se dedica a pensar num fashion integrativo para corpos com deficiência.
Pelo menos 24% da população brasileira possui algum tipo de deficiência¹, o que enfatiza a necessidade de garantir que essa parcela da população seja atendida em todos os setores. Na arquitetura e na construção civil, a possibilidade e condição de utilização dos espaços físicos por todos é prevista em lei . Não há esse tipo de obrigatoriedade no mundo da moda. Com a proposta de integrar os corpos que a produção industrial não contempla, a moda inclusiva surge.
Pode parecer simples adquirir uma roupa nova: ir até uma loja, encontrar uma peça ideal, experimentar e comprar. Mas, para pessoas com deficiência (PCD), o simples é quase sempre um desafio. Para cadeirantes, por exemplo, roupas com zíperes e tecidos sem elasticidade podem causar ferimentos, camisas ou blusas com ombros estreitos podem atrapalhar os movimentos, saias muito longas podem se prender nas rodinhas. Na vestimenta ideal, “o fecho, geralmente, é na frente, com acesso ao botão, zíper ou velcro. Algo que pode ser vestido com mais facilidade”, define Vitória.
Baseada nas suas próprias dificuldades, a designer produziu uma coleção de moda integrativa como produto do seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Seu intuito era criar uma marca “que trabalhe a funcionalidade, o conforto da roupa, o contato com a pele, o uso de tecidos antibactericidas, de preferência tecidos que não amassam com facilidade”, conta. As peças ainda não são comercializadas, mas Vitória pretende, no futuro, abrir uma loja com estrutura acessível.
“se você veste alguma coisa que não te cai bem, você não está consumindo moda, você está sendo uma vítima da moda.”
vitória souto
Pensar a moda inclusiva é pensar na estética, no conforto e na autonomia, o que inclui a possibilidade de comprar a roupa desejada, independente da condição física, e usá-la sem a necessidade de fazer adaptações posteriores. Esses ideais se identificam com uma nova dinâmica de produção, o slow fashion. No slow, as pessoas procuram comprar peças que durem mais e que atendam às suas necessidades pessoais, ao invés de se ater apenas à tendência e ao consumo excessivo.
De forma oposta, há o fast fashion, um padrão de produção e consumo no qual os produtos são fabricados, consumidos e descartados rapidamente. A maioria dos produtos em lojas populares de departamento seguem essa dinâmica de produção, que barateia os custos, tornando as peças mais acessíveis, porém não abrange as diferentes variantes corporais.
A estilista Saadia Passos, 23, de Vitória da Conquista, foi selecionada, em 2018, para a 9º edição do Concurso de Moda Inclusiva, que acontece em São Paulo. No evento, foi apresentada sua coleção “A Moda está em Baixa”, voltada a pessoas com nanismo. “Para fazer as roupas, eu tive que adaptar a modelagem para o tamanho do portador. Eles têm os membros superiores maiores que os membros inferiores e as coxas também são maiores”, afirma Saadia. “Tive de pensar o uso de tecidos específicos que se adaptam ao corpo, mas que sejam finos e bem arejados, pois eles transpiram mais e tem certa dificuldade de respirar”, acrescenta. O concurso, que ocorre anualmente, é promovido pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo e vem impulsionando a pesquisa e o desenvolvimento da área.
“não há um corpo padrão, mas um padrão para cada corpo.”
fernanda brasil
Saadia conta que durante o processo, sua maior facilidade foi a colaboração das mulheres que atuaram como corpo molde para as roupas. A principal modelo e inspiração para o desenvolvimento das peças foi a estudante Fernanda Brasil de Almeida, 23. Sobre ter modelado para a criação das roupas, num contexto de hegemonia do corpo alto e magro, a portadora de nanismo desabafa: “Nunca acreditei que fosse possível por causa dos estereótipos. Quando Saadia me convidou para modelar, foi a comprovação de que não há um corpo padrão, mas um padrão para cada corpo”.
A moda é comunicação e o corpo é o seu principal veículo. Cada um se comunica de forma diferente e tem seu próprio estilo ou o define diariamente de acordo com o seu humor, buscando no que veste conforto, autonomia e representatividade. A maior possibilidade de opções não deveria se restringir apenas ao corpo alto e magro, classificado como ‘padrão’, já que a inclusão de opções confortáveis e bonitas para pessoas com deficiência, também, é possível. A inviabilidade da integração, de forma massiva, de diversas variantes corporais leva a refletir: a deficiência não está, na verdade, na indústria da moda?
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