A Sociedade da Neve e a perpetuação da memória
texto Juliana Barbosa
publicado 19.03.2024
Como uma boa entusiasta da cultura audiovisual, após saírem as indicações ao Oscar 2024, resolvi assistir alguns dos filmes que concorriam aos prêmios. Comecei por A Sociedade da Neve, filme que disputava a categoria de Melhor Filme Internacional e fui assistir sem muitas expectativas, sem ao menos saber se gostaria ou o que esperar e terminei o filme em lágrimas.
Foi ao final dos créditos que pude perceber o quanto a memória é importante não só para o desenvolvimento da história, mas também na relação que o filme tem com as vítimas reais do acontecido.
Sendo assim, relembrando todo o longa enquanto via as letrinhas finais subindo, me dei conta do porquê chorei tanto enquanto assistia. Afinal, existe algo mais afetuoso – tomo aqui como significado de afeto aquele trazido por Spinoza de que o afeto refere-se a como as coisas repercutem em nós – do que a memória? Ora, se ao lembrarmos de um passado distante ou não, geralmente nos sentimos saudosistas, muitas vezes chegando a lacrimejar e ter o desejo de reviver aquilo que lembramos. Ou ainda, percebemos o quanto aquela lembrança é importante para que possamos aprender a evoluir como seres sociais. A questão é que, assistir ao filme e entender o motivo do meu choro, diz respeito a como aquela obra chegou em mim.
Então veio a vontade de escrever este ensaio. Não para falar sobre meus sentimentos, mas para mostrar como as pequenas coisas que estão presentes neste produto audiovisual trabalham para que a experiência daqueles que assistem seja minimamente semelhante em todos os casos. Pontuo ainda que essa não é uma característica exclusiva de A Sociedade da Neve e nem uma estratégia recente. Relembro, por exemplo, da trilha sonora do filme Psicose (1960) que atingiu – e atinge – a todos os consumidores da mesma forma, criando a cena de tensão e, consequentemente, de medo.
Começo então resumindo a sinopse do filme para aqueles que ainda não assistiram (mas aviso que se você não quiser ler spoilers, recomendo voltar a este ensaio após assistir). A Sociedade da Neve é um filme de 2023, dirigido por Juan Antonio Bayona e baseado no livro homônimo de Pablo Vierci. O filme retrata o acidente de avião que levava um time de Rugby do Chile para o Uruguai e que caiu na Cordilheira dos Andes em 1972. O longa acompanha todo o ocorrido até a chegada do resgate, cerca de 72 dias após o acidente.
Logo no início do filme, o narrador-personagem, Numa Turcatti, diz: “O que acontece quando o mundo te abandona? […] A resposta está na montanha. Temos que voltar ao passado.” A partir disso, é possível perceber a relação entre passado e futuro (digo futuro em relação ao passado) que o filme irá fazer durante toda sua narrativa, pois, se na montanha, que é o local no qual ocorreu o acidente, é onde está a resposta, mas para entender precisamos assistir os acontecimentos passados, a noção de temporalidade do filme está a todo momento entrelaçada. Aqui eu arriscaria a dizer sobre o tempo espiralar, mas acredito que seja assunto para outro momento. O que me interessa neste ponto é que o desenvolvimento dos afetos e das memórias é construído desde a primeira narração. Se volta ao passado, você chega na montanha (o futuro) tendo um sentimento pelos personagens que já foram apresentados e isso, definitivamente, é um dos pontos principais desta narrativa.
Passarei direto para o pós acidente. Quando pela primeira vez os personagens conversam sobre os feridos e os mortos, aparece um elemento que se repetirá várias vezes ao longo do filme. Em letras simples e monoespaçadas, tal qual as de uma máquina de escrever, os nomes daqueles que não sobreviveram aparecem juntamente com as suas idades. Ao mesmo tempo, o plano escolhido mostra os amigos, colegas e parentes, carregando os corpos, o que deixa a cena ainda mais dramática. Lembro que a cada vez que um nome aparecia, eu pausava e lia por completo a estrutura nome, sobrenome e idade. Esse é mais um dos elementos do filme que, na minha concepção, ajudam a preservar a memória das vítimas e fazer com que seus nomes sejam sempre lembrados.
Lembram quando eu falei sobre a apresentação de personagens antes do acidente? O filme retoma esta apresentação quando, por exemplo, o Numa encontra seu amigo Gastón, que morreu com o impacto da queda da aeronave. Ao achar o corpo do rapaz, Numa lhe dá um abraço e em seguida são inseridos flashbacks de quando o menino ainda estava vivo. O que, mais uma vez, tem completa relação com o afeto e o que o diretor nos quis fazer sentir ao colocar essa sequência passado-futuro.
Saindo da narrativa, não existe a menor possibilidade de querer falar sobre a memória no filme, sem citar Gustavo Zerbino, o personagem que guardou lembranças de cada um daqueles que morreram. Incluindo quando, ao chegar o resgate, Zerbino se recusou a subir no helicóptero se não pudesse levar sua mala com todos os pertences de seus amigos. O personagem fez isso para permitir que as famílias pudessem viver o luto de suas perdas, levando, posteriormente, cada objeto de casa em casa.
Enfim, são alguns dos pequenos detalhes que tentei citar neste ensaio que levaram a minha percepção de como a memória é importante para o desenvolvimento da narrativa e como nós nos relacionamos com ela. A obra por si só é um grande exemplo de como a memória é colabora para a perpetuação de uma história e para fazer com que as vítimas do acidente não sejam esquecidas. A frase que o narrador Numa diz e finaliza o filme é: “Continuem cuidando uns dos outros. E contem a todos o que fizemos na montanha.” Acho que isso resume bem o que tento trazer ao longo do texto.
Para quem ainda não assistiu A Sociedade da Neve deixo aqui minha recomendação. O filme está disponível no serviço de streaming Netflix e tem em torno de 2 horas e 10 minutos de duração.
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