Arquitetos revelam suas construções favoritas em Salvador
texto Catarina Carvalho e Sarah Cardoso
diagramação Catarina Carvalho, Kelvin Giovanni e Matheus Vilas
foto de capa Benedito Cirilo/LABFOTO
narração Victoria Lenoir
Na velocidade do dia a dia, dos carros, dos ônibus, as construções podem passar batidas, se integrar à paisagem como membros inertes da cidade. Mas, nos olhos daqueles que projetam e dão corpo a traços, os prédios tomam forma de memória e afetividade. Nessa edição, a Fraude descobriu como é se apaixonar pelo concreto conversando com seis arquitetos sobre suas construções favoritas em Salvador.
Mosteiro de São Bento
Não faltam motivos para Cecília Góes Cardoso explicar por que o Mosteiro de São Bento a atrai tanto: desde a cúpula com óculos que clareiam o interior aos claustros e jardins. Encantada pela arquitetura religiosa, já na época da faculdade, ela refletia sobre o ideal por trás da construção. “O homem, através da arquitetura, buscava transcender, ter essa ligação com o céu, com Deus. Por exemplo, a arquitetura gótica, com torres sempre muito altas, busca aquela linguagem e comunicação.”
Fundado em 1575, o Mosteiro só chegou à configuração atual com o projeto do novo prédio, em estilo neoclássico, do monge arquiteto Frei Macário de São João. As obras foram iniciadas no século XVII e concluídas no final do século XIX. Sua importância se acentuou ao longo do tempo pela localização estratégica, que, para Cecília, agora, ofusca a construção. “Ela é tão grandiosa, tão bela, tão linda, e fica escondida dentro da confusão do centro da cidade. Entre camelôs, lojas e gente que estaciona em qualquer canto. Termina que ela não aparece como antigamente.” Apesar do caos urbano, a Igreja continua sendo um lugar sereno, que lhe traz paz. “Chega a ser mágico”, diz a arquiteta.
Graduada em Desenho na Universidade Católica de Salvador (UCSAL) e Arquitetura na Faculdade de Arquitetura da UFBA (FAUFBA), Cecília Góes Cardoso trabalha na CONDER, atuando com habitações de interesse social.
Paróquia Ascensão do Senhor
Localizada no Centro Administrativo da Bahia e projetada pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, a Paróquia Ascensão do Senhor situa-se no ponto mais alto de uma colina, simbolismo de aproximação com o divino. A construção é a preferida do arquiteto Joaquim Nunes em Salvador, pois “ela consegue trazer uma linguagem mais orgânica, acompanhando a topografia e se misturando com a paisagem”. A igreja é uma espiral formada por pétalas e toda sua estrutura é feita de concreto, sem revestimento. É nesse ponto que a construção forma um interessante paradoxo analisado por Joaquim: “apesar de ser concreto, que é um material muito pesado, ele consegue quase desaparecer na paisagem. Além de trazer a tecnologia, mostra o material como ele é de uma forma bruta, fazendo disso um desenho muito leve, integrado à natureza, ao lugar que foi colocado”
Por ser um edifício religioso, a questão simbólica é muito presente e Lelé brinca de forma sinestésica nesse projeto com o jogo de iluminação que se dá no percurso do batistério, um local escuro, ao altar, amplamente iluminado. Essa sensação de ir ao encontro do caminho da luz e, consequentemente, de redenção se dá através da arquitetura. “Tem toda uma dramaticidade da arquitetura que fornece isso para as pessoas mudarem as sensações. Quando chega a luz vem uma grande surpresa, né? É quase uma relação cenográfica”, diz Joaquim.
Joaquim Nunes é arquiteto graduado pela UFBA e, atualmente, é professor de conforto, ateliê e práticas profissionais na Unime, o que concilia com o mestrado em habitação social.
Casa do Comércio
Os espaços guardam uma memória e foi uma lembrança querida que marcou o arquiteto Marcos Queiroz. Durante o curso na UFBA, sua turma visitou a Casa do Comércio Deraldo Motta, ainda em construção. “Eu era estudante na época que esse prédio estava no auge.” Marcos conta que participou de um curso gratuito na faculdade promovido pela Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) para estimular a construção em aço em Salvador. “Até hoje meus colegas conversam pelo WhatsApp, lembram de quando a gente foi visitar a Casa do Comércio e a gente pulava na estrutura. Naquela parte mais distante do centro, pulava e via como balançava, todo mundo morrendo de medo de cair e, mesmo assim, a construção aguentava.
Ícone da arquitetura moderna em Salvador, a Casa do Comércio completou 30 anos em 2018. Projetado pelos arquitetos Otto Gomes, Jader Tavares e Fernando Frank, o prédio foi inovador desde a base ao acabamento. A construção contava com um aço de ponta, desenvolvido pela CSN, e pintura elastomérica, que diminui o calor interno das edificações. Para Marcos, a Casa do Comércio rompeu mais um tabu ao enfrentar as temidas infiltrações e investir em jardineiras, gerando uma “humanização” na convivência com o aço, um material “frio”. Há, entre o arquiteto e a construção, uma relação afetiva que, para além da memória, perpassa uma admiração por sua ousadia vanguardista.
Arquiteto, paisagista e professor da FAUFBA, Marcos Queiroz pesquisa a teoria das cores aplicada à arquitetura e os processos psicológicos de criação e concepção de projetos.
Centro de Convenções
Quando voltou da França, o arquiteto Eduardo Carvalho deu de cara com um novo amor. “Em 1979, quando eu cheguei aqui, estava de táxi e vi o Centro de Convenções em construção. Minha filha, com quatro anos e meio de idade, chegou para mim e disse: ‘Olha, papai! Olha o Beaubourg!’ Coisa linda, né?” E não foi só ela que reconheceu no Centro de Convenções do Estado a antiga paixão francesa. Para Eduardo, consciente ou inconscientemente, a referência da construção baiana é o Centro Nacional Georges Pompidou (também conhecido como Beaubourg), aonde ia ler enquanto estudava em Paris.
O prédio das lembranças de Eduardo já teve dias melhores. Antes, chamava a atenção por suas estruturas metálicas inovadoras e obras gigantes de Bel Borba. Hoje, depois do desabamento de algumas estruturas, a destruição fala mais alto. Para Eduardo, o Centro de Convenções está sendo jogado no lixo por causa do descuido do governo. “Não preservar aquele edifício, que é um marco da cidade, é extremamente lastimável. É uma indigência cultural”.
Graduado na FAUFBA, onde é, atualmente, professor, Eduardo Carvalho atua principalmente com desenvolvimento urbano e habitação de interesse social e urbanização de favelas.
Edifício Nossa Senhora do Loreto
A relação afetiva da arquiteta Any Brito com os projetos de Pasqualino Magnavita é tão forte que ela decidiu residir no Edifício Nossa Senhora do Loreto. “Fui morar lá porque era uma obra assinada por Pasqualino e é um prédio cheio de histórias da família dele. O pé direito duplo na parte de baixo do prédio foi em função de um lustre que a família tinha e um piano de cauda que a mãe dele tocava.” Localizado nos Barris, o prédio começou a ser construído nos anos de 1950 e foi finalizado em 1960.
A construção tem grande generosidade de espaço e é uma das primeiras a trabalhar com longarina (estrutura de sustentação) em laje pré-moldada. Para a arquiteta, tal feito realizado na década de 1960 é considerado uma vanguarda. O responsável pelo projeto, o arquiteto Pasqualino Magnavita, completa 90 anos este ano e ainda leciona na Faculdade de Arquitetura da UFBA.
Graduada em arquitetura e direito, Any Brito atua como professora na FAUFBA e pesquisa cidades latino-americanas.
Arcos da Ladeira da Conceição
Objeto de estudo em seu projeto de extensão na Faculdade de Arquitetura da UFBA (FAUFBA), os Arcos da Ladeira da Conceição formam o conjunto arquitetônico soteropolitano favorito da arquiteta capixaba Gabriela Leandro. A construção, finalizada em 1879, foi projetada para dar sustentação à Ladeira da Montanha, uma das principais ligações entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa.
Para Gabriela, o diferencial desses arcos é sua forma de ocupação. “Descobri que ali era uma oficina de marmoristas, ferreiros, serralheiros e o que já era bonito enquanto composição da paisagem passou a ter um significado maior pra mim”, conta. Os arcos são as oficinas de mestres trabalhadores, majoritariamente negros, que desenvolvem um ofício herdado do próprio período da escravidão e, hoje, são herdeiros do saber e do espaço. Ainda segundo a arquiteta, a relação do espaço com o ofício é de transmissão de conhecimentos, numa lógica que contraria o processo industrial. “Ele existir é muito bonito”, conclui Gabriela.
Graduada em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Gabriela Leandro é professora da FAUFBA e pesquisa a presença negra no Centro Histórico de Salvador.
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