Fotógrafos que registram histórias, personagens e acontecimentos pelas ruas de Salvador
texto Antonio Dilson Neto
multimídia Antonio Dilson Neto e Luiza Gonçalves
diagramação Lila Sousa
narração Jade Oliveira
colagem Isis Cedraz
Henri Cartier-Bresson, fotógrafo francês do início do século XX considerado pai da fotografia de rua, via “o homem e sua vida, tão curta, tão frágil, tão ameaçada” como assunto mais importante a ser registrado. Entendia o ser humano como urgente, efêmero, em comparação à eternidade das paisagens. Enquanto os retratos são um registro bem ensaiado de uma história, sejam casamentos, nascimentos e até funerais, a fotografia de rua é o registro do agora, do momento, sem possibilidade de segundas chances.
Ela carrega um caráter temporário, mostra uma cena passageira, geralmente (mas não necessariamente) corriqueira, que tende a nunca mais se repetir da mesma forma. São histórias e cenas comuns mas que, aos olhos desatentos, podem passar despercebidas.
Sejam denúncias, documentações, descobertas ou registros das pessoas em seu cotidiano, de equipamento em punho fotógrafos vão às ruas em busca de narrativas, desvelando indivíduos, lugares e acontecimentos.
Arquitetura da narrativa
Como se identifica o momento certo para apertar o botão? Rafael Rodrigues, 29, fotógrafo e artista visual, diz que o segredo está na observação detalhista. Para ele, é necessário ficar de olho para captar o movimento certo. É estar ali, presente e atento, analisando com paciência o ambiente que o cerca. Cita um exemplo do Carnaval, quando percebeu uma foliã sofrendo enquanto um trio elétrico tocava arrocha. “Esse é um momento ótimo para fazer a foto, cabe uma história inteira ali.”
Além do ambiente, analisar o comportamento das pessoas é fundamental na fotografia de rua. “Você sente que vem um registro bacana. A gente tenta várias vezes, vai tentando, até chegar no ponto certo que você imaginou”, explica Rafael.
“não é só apertar um botão. O obturador é o final da foto, a última etapa”
felipe iruatã
Para Felipe Iruatã, 30, fotojornalista, também é muito importante compor um repertório. “É necessário ter um processo de estudo, de muita foto vista. Você forma seu estilo e, a partir da observação, deixa a criatividade trabalhar. Não é só apertar um botão. O obturador é o final da foto, a última etapa”. Criatividade e sensibilidade são ferramentas tão indispensáveis quanto as lentes na criação dos registros.
Quebrar o estranhamento inicial é um passo que também não pode deixar de ser adotado. Iruatã acredita que chegar com câmera em punho gera um distanciamento, assustando as pessoas e causando uma possível fuga. “Você chega, conversa, às vezes toma uma cervejinha, cria um vínculo momentâneo. Isso é fundamental para o fotojornalismo.”
Rafael cita que essa aproximação é a chave para que abracem a ideia e recebam bem o trabalho. “Eu fui fazer uma matéria na Estação Mussurunga, para o Dia da Fotografia. Quando eu chegava para tirar foto das pessoas, elas ficavam intimidadas. Então, dei um ‘rolezinho’ pela estação, fiquei observando e fotografando de longe, para depois chegar e mostrar a imagem pronta. Geralmente elas ficam muito surpresas. Tinha um menino, por exemplo, que vendia tapioca e depois que me viu tirando a foto, falou ‘pô, negão, tô nem arrumado’. Mas, quando eu mostrei o resultado, ele ficou apaixonado. São momentos bons pra caramba.”
Pelas ruas da cidade
Utilizando câmeras e olhares para apresentar fatos, o fotojornalismo é um capítulo à parte na fotografia de rua. Numa combinação entre técnicas da fotografia e habilidade de contar histórias do jornalismo, os profissionais da área observam atentos as várias realidades simultâneas que os cercam, noticiando o mundo.
“a rua é uma grande escola, ensina tudo. Basta você estar atento aos sinais, às imagens, e ter muita paciência. Eu nunca gostei de escrever: eu escrevo através da imagem”
shirley stolze
Shirley Stolze, fotojornalista, 61, vem de uma geração que desenvolveu seu primeiro olhar através da leitura de jornais. Depois disso, foi nas ruas que aprimorou suas técnicas, estilo e entendimento do que é a vida ao vivo. “Para mim, a rua é uma grande universidade e ela te dá sempre a foto. Para quem fotografa, para a vida da gente: a rua é uma grande escola, ensina tudo. Basta você estar atento aos sinais, às imagens, e ter muita paciência. Eu nunca gostei de escrever: eu escrevo através da imagem”, conta Shirley.
Fonte: Shirley Stolze / Reprodução: Instagram
Caminhando, de câmera a postos, os fotojornalistas noticiam a cidade e seus acontecimentos. Dessa maneira Shirley, que se vê como “andarilha fotógrafa”, diz ser possível perceber a temperatura da cidade: “se há mais ou menos moradores de rua, lojas fechadas ou abertas, agressividade, fiscalização… Se há mais ônibus, se estão mais cheios, se as pessoas estão caminhando mais por falta de grana, para economizar. Você percebe tudo numa caminhada dessas.”
Mesmo com essa marca do imediato, as fotografias de rua têm um roteiro, há uma ideia antes de pendurar a câmera no pescoço. É preciso refletir para estar pronto na hora do clique, como explica Iruatã: “saio de casa pensando: quero fotografar a feira de São Joaquim ou, sei lá, a festa de São Roque. Você vai andando e pensando o que essa festa vai te dar. O que vou encontrar? O que esse lugar vai entregar para mim? E nessa, você vai vendo. Anda, fotografa, anda mais, muda o ângulo. Nem sempre a foto está pronta, acontecendo.”
No fotojornalismo, pessoas, cores e rostos tornam-se notícias. Shirley conta que, em um final de semana, cobrindo a Feira do Peixe, na Liberdade, viu-se em meio a um cenário de assalto a ônibus, correria, troca de tiros e desespero. “Nessa hora, o fotojornalista não pensa na segurança, só quer fazer a foto. Mandei o motorista do nosso carro parar, saí correndo para fotografar o ônibus. As pessoas descendo desesperadas, pulando a janela, uma loucura. Houve um tiroteio e o assaltante atirou na cobradora e, nessa confusão, acho que o ladrão até passou por mim e não vi. No dia seguinte saiu na primeira página o ‘cineminha’ que fiz, a pauta inicial acabou caindo. O fotojornalismo tem dessas: você sai com uma pauta e, no meio do caminho, aparece outra coisa.”
Realidade sem filtros
A fotografia de rua apresenta um universo que, embora real, permanece invisível em alguma medida: a realidade de favelas e periferias da cidade.
“mostrar essa parte da favela pra outras pessoas que não conhecem essa realidade é meu trabalho”
vulgojr
É o que faz @vulgojr. Nascido e criado na mesma comunidade, ganhou destaque por trazer uma realidade que outros fotógrafos podem ter receio de mostrar. Seus registros vão desde crianças brincando até a livre circulação de armas e drogas pela favela. “Não é todo mundo que gosta desse estilo de foto, mas o público ama ver algo fora do que eles estão acostumados. E mostrar essa parte da favela pra outras pessoas que não conhecem essa realidade é meu trabalho.”
São registros fortes de uma realidade dura, que podem até chocar quem não vive nesse ambiente. É um trabalho que, em sua descrição, gera aflição e frio na barriga na hora de registrar – mesmo para quem já tem algum costume. “Já me aconteceu de estar em lugares fotografando e ter que dar ‘pinote’ em meio a tiroteios e outras situações”, conta o fotógrafo, sobre episódios de tensão que viveu para fazer suas imagens.
Antes da foto, a pessoa
Antonello Veneri, professor e fotógrafo italiano, 48, acredita que tirar uma foto de alguém exige respeito e cuidado. Além disso, é preciso ter bem claro o motivo para estar ali fazendo as imagens. “Não pode passar a ideia de que você está ali para fotografar o exótico, o estranho. Eu quero contar algo e, obviamente, tenho que explicar o que estou fazendo. É como se você estivesse entrando na casa de alguém, precisa pedir licença antes, dizer porque quer entrar”. Defende que os registros são muito mais ricos quando existe uma proximidade que permite entender a relação entre pessoas e seus ambientes.
Para Antonello, a ideia de observar de perto a vida das comunidades é a parte mais essencial da fotografia de rua. “Há um ditado em italiano: ‘prendi l’arte e mettila da parte’ que quer dizer ‘pega a arte, a técnica, e deixe-a de lado.’ Não significa que você vai abandonar os conceitos mais técnicos ou bons equipamentos. É sobre você entender as histórias e observar pessoas, como elas se relacionam com os ambientes em que vivem. Não adianta saber tudo de luz e não capturar um momento importante”, afirma.
Entre fotógrafo e retratado geralmente é estabelecida uma relação de troca. “Sempre que alguém aceita que você tire uma foto, está te presenteando com algo. É importante ter atenção com isso. É nessa troca que você conhece as histórias e o mundo das pessoas”. Conta, também, que uma das estratégias que utiliza para reforçar o laço com as pessoas de quem faz os registros é imprimi-los e entregá-los. Mesmo quando essas fotos não combinam com a ideia que o retratado tem de uma imagem bonita, servem para aproximar os mundos. “Uma vez fotografei um pescador com os olhos aparecendo através dos peixes que segurava. Imprimi a foto para levar para ele, todo orgulhoso porque realmente achei uma imagem belíssima. Ele olhou a imagem e ficou claramente meio decepcionado, sem querer falar e disse: ‘poxa, meu rosto nem aparece nessa foto, cara’. Dei razão e fiz outra mostrando bastante o rosto dele e, dessa vez, ele adorou. Eu vejo isso como uma forma de cuidado.”
Não reproduzir o visível, tornar visível
Diante do caleidoscópio da vida sobreposta, milhões de imagens perdem-se em função de outras. É o fotógrafo quem organiza essa grande confusão simultânea para contar histórias que observa. “Não é que eu fotografe algo que as pessoas não veem na rua. Elas não fotografam, não registram, é diferente. Todo mundo vê o que eu vejo, o fotógrafo não é um visionário. É mais a habilidade de perceber pequenas coisas que, às vezes, não chamam a atenção. Talvez por serem muito corriqueiras, ou não serem marcantes em comparação com outras coisas que as pessoas se deparam no cotidiano”, explica Antonello.
Paul Klee, pintor expressionista suíço do fim do século XIX disse que “a arte não existe para produzir o visível, e sim para tornar visível o que está além”. A fotografia de rua não foge à máxima. É uma arte que não se ocupa de criar um mundo novo, mas de explorar as relações invisíveis entre o ser humano e seu ambiente e contexto. É o instante que ilustra a vida, mostrando que sempre há muito mais para ser visto.
A Fraude é uma revista laboratorial do Programa de Educação Tutorial em Comunicação (PETCOM) da Facom, UFBA e não possui fins lucrativos. Caso uma das imagens te pertença ou em caso de dúvidas, entre em contato pelo e-mail revistafraude@gmail.com para acrescentarmos a referência ou retirarmos da publicação.
Excelente produção textual e recortes. Um trabalho de qualidade e primoroso. Matéria não apenas informartiva, mas inspiradora. Parabéns pelo trabalho da equipe. Resultado final denota não só a parceria bem como uma unidade singular para alcançar o objetivo final. O profissional faz toda a diferença.