Entre o samba e o reggae, um oceano de sons liga a Bahia ao Caribe
texto Breno Bastos
pesquisa e entrevistas Breno Bastos e Maya Fernandes
multimídia Breno Bastos
diagramação Breno Bastos
narração Maya Fernandes
colagem Stella Ribeiro
Ao nos debruçarmos sobre a história da música baiana, logo notamos sua permeabilidade e propensão a trocas culturais e sonoras com tradições de outras regiões. São diversos os momentos em que ocorrem tais relações.
O frevo pernambucano, que chegou por aqui na década de 1950, logo foi ‘eletrizado’ por Dodô e Osmar, gerando o frevo baiano. O rock estadunidense e inglês, anteriormente rejeitado por parte significativa do público brasileiro, foi integrado à música do país a partir da obra do “grupo dos baianos” (como eram conhecidos artistas da Tropicália como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa). O merengue caribenho, reinterpretado pela Timbalada, serviu de inspiração para alguns dos maiores hits do carnaval soteropolitano, completamente em casa no cenário da axé music, entre outros exemplos.
Nas últimas décadas, um local em especial tem sido uma constante influência para os processos de renovação da música baiana: a Jamaica. Com seu reggae, ragga, rocksteady, ska, dancehall e dub, a ilha de Jimmy Cliff, U-Roy, Burning Spear, Bob Marley e Peter Tosh propiciou, e ainda propicia, o desenvolvimento de alguns dos movimentos mais interessantes da recente música do nosso estado.
Nas Ondas do Reggae
A música jamaicana transformou-se ao longo da segunda metade do século XX. Após sua independência da Grã-Bretanha no ano de 1962, o país passou por um período de efervescência criativa entre as décadas de 1960 e 1970, quando alguns de seus principais gêneros desenvolveram-se e constituíram novas identidades culturais.
Inicialmente, os ritmos caribenhos calypso e mento encontraram-se com o rhythm and blues e o jazz dos Estados Unidos tocados nas rádios, formando o que se chamou de ska. Dançante e ancorado nos timbres de sopros, guitarra, baixo e bateria, esse gênero serviria de base para movimentos musicais subsequentes. Por volta do ano de 1966, algumas bandas começaram a experimentar maneiras de tocar o ska mais lentamente, e aos poucos desenvolveram o rocksteady, que por sua vez viria a fundamentar a criação do reggae.
Próximo do fim da década de 1960, começaram a surgir em Kingston, capital da Jamaica, grupos como os Toots and The Maytals e Wailers, que tocavam variações de rocksteady e ska caracterizadas pela presença forte das pulsações do baixo e da bateria, assim como da marcação rítmica feita pelas guitarras base. Com letras que versavam sobre as dificuldades enfrentadas pela população e reivindicavam justiça social, as novas canções lançadas à época amalgamaram os desejos de mudança de grande parte da sociedade jamaicana e constituíram-se como um novo gênero, o reggae.
A disseminação do reggae ao redor do globo se deu principalmente a partir do início dos anos 1970. Por conta da situação política e socioeconômica da Jamaica, muitos artistas migraram para outras nações, em especial a Inglaterra, onde começaram a chamar a atenção de músicos e produtores com suas formas autênticas de compor e tocar. Com os primeiros sucessos do grupo Bob Marley and The Wailers, o gênero tornou-se conhecido mundialmente. Foi a partir desse movimento de expansão que o reggae alcançou a Bahia. Discos desse estilo começaram a chegar ao estado e a partir dos anos 1980 consolidou-se ainda mais no cenário cultural.
Na Bahia, além de Salvador, outra cidade integrou fortemente o gênero no seu repertório musical: Cachoeira. Analisando essa aproximação, a cientista social e pesquisadora Bárbara Falcón, 45, ressalta a importância das trocas culturais entre a capital baiana e a cidade do Recôncavo: “apesar de ser uma cidade do interior, Cachoeira fica a apenas uma hora de Salvador. O fluxo entre essas duas cidades foi um dos fatores que contribuiu para que o processo de reafricanização, de fortalecimento da negritude e da contracultura que estava se desenvolvendo no mundo e em Salvador chegasse à juventude cachoeirana da época.”
O estilo musical aportou no recôncavo em meio a um contexto de valorização da negritude ao redor do Brasil. Era um momento de chegada do movimento Black Power, do funk e do soul, e o crescimento da militância e das manifestações culturais negras brasileiras, a exemplo do surgimento dos blocos afro em Salvador, do Black Rio e dos bailes black. Simbolizando a luta contra a desigualdade racial desde o seu surgimento na Jamaica, ao chegar no Brasil, o reggae logo foi incorporado enquanto elemento de resistência e crítica social.
Segundo Bárbara, essa foi uma das razões que fizeram com que em Cachoeira a onda do reggae “batesse de um jeito diferente, mais forte”, junto com a relação de proximidade centenária da cidade com as suas tradições musicais. “Cachoeira tem todo um ambiente propício a esse desenvolvimento (do reggae), por ser uma cidade onde a cultura negra é pulsante, e a cultura musical é muito importante. Dizem que o samba nasceu em Cachoeira. A tradição de filarmônicas da cidade também é expressiva, assim como o canto afro-barroco das festas populares e a obra de grupos incríveis, como Os Tincoãs. A música negra permeia toda a cultura da cidade”, afirma a pesquisadora.
Foi nesse contexto que o cantor e compositor Edson Gomes começou a ser conhecido. “Reggae Resistência”, seu álbum de estreia lançado em 1988, é um marco da história regueira nacional, e sua discografia fez com que Edson fosse considerado um dos principais reggaemen brasileiros. De “Malandrinha”, cantando o amor nas caixas de som de um bar no fim de tarde, a “Liberdade”, incentivando a luta social e política nos alto-falantes dos protestos na cidade, o repertório de Edson Gomes parece caber perfeitamente no cotidiano soteropolitano, animando a noite de festa e guiando o dia de luta.
Assim como Edson, tanto em Cachoeira quanto em Salvador, outros artistas construíram a cena autoral de reggae na Bahia. Entre eles, Sine Calmon, Nengo Vieira, Marco Oliveira e Tintim Gomes, integrantes de um dos principais grupos desse movimento, Os Remanescentes, que também mantiveram carreiras solo e realizaram trabalhos com outras bandas.
Embora não seja necessariamente um artista de reggae, um dos músicos que mais desenvolveu a relação Bahia-Jamaica nesse período foi Lazzo Matumbi, 64. Não à toa, o cantor, compositor e percussionista soteropolitano, reverenciou a ilha caribenha já no lançamento de seu primeiro compacto solo, em 1981, com a canção “Salve a Jamaica (homenagem a Bob Marley)”. De todo modo, o início da relação de Lazzo com a música não foi ligado à Jamaica, mas sim ao samba. Enquanto o artista tocava em grupos do gênero durante sua juventude, buscava sempre ouvir as novidades internacionais para reinterpretá-las nos shows e, assim, acabou conhecendo a produção do reggae.
“ nesse período entendi que Jamaica, Brasil, África e Estados Unidos tinham linguagens parecidas entre si, mas a Jamaica chegava mais perto de nós por conta da similaridade com o samba”
lazzo matumbi
“Minhas experiências começaram com rodas, grupos e blocos de samba. Quando eu ouvi reggae pela primeira vez, o que me chamou a atenção foi sua sonoridade, que parecia muito com a dos sambas que eu ouvia e dos blocos afro que tocavam um samba mais ralentado. Enquanto na Bahia a gente tinha a batida do coração, os surdos, os big drums como mola impulsora, lá os contrabaixos faziam esse papel. Depois também comecei a conhecer as letras, que alguns amigos traduziam para mim. Nesse período entendi que Jamaica, Brasil, África e Estados Unidos tinham linguagens parecidas entre si, mas a Jamaica chegava mais perto de nós por conta da similaridade com o samba”, diz Lazzo.
A partir de então, o reggae e a música jamaicana em geral passaram a fazer parte do seu universo de referências, desenvolvido ao longo de mais de 40 anos de carreira. Em meados dos anos 1980, Lazzo integrou a banda de Jimmy Cliff em uma série de turnês internacionais. O astro havia se encantado com a cultura baiana, chegou a viver em Salvador nesse período e convidou Lazzo para acompanhá-lo, buscando reproduzir em suas apresentações o ritmo de samba-reggae que pesquisava em sua estadia na Bahia.
Mesmo se sentindo realizado por estar tocando junto de um de seus ídolos, no intervalo de uma turnê Lazzo decidiu partir em uma empreitada própria para desenvolver sua expressão autoral, e pediu para passar uma temporada na casa do artista na Jamaica, onde gravaria algumas demos novas. Com a permissão do músico, foi para a ilha, onde realizou uma imersão pesquisando o mundo do reggae. Em 1989, Lazzo lançou o álbum “Arte de Viver”, fruto dessa experiência, contendo as canções “Alegria da Cidade”, “Tudo me Faz Sentindo” e um cover de “Gostava Tanto de Você” e “Azul da Cor do Mar”, entre outras 11 faixas. Neste trabalho, Lazzo se aproximou ainda mais da identidade reggae, mas não sem imprimir a sua própria raiz baiana.
“quando eu faço um reggae é com a minha leitura, não é jamaicano e nem é essa a intenção. A influência desse gênero, passando por mim e através da minha percepção, acaba virando algo bem brazuca, com gosto e tempero de Bahia”
lazzo matumbi
“Eu sempre digo que eu faço uma fusão musical, porque eu tenho mania de pensar, por exemplo, na bateria de um samba, em uma linha de baixo de reggae, uma guitarra mais pro soul, a percussão com toque de determinado orixá… E então vou misturando, experimentando, fazendo um laboratório pra ver o resultado que dá. Quando eu faço um reggae é com a minha leitura, não é jamaicano e nem é essa a intenção. A influência desse gênero, passando por mim e através da minha percepção, acaba virando algo bem brazuca, com gosto e tempero de Bahia”, explica o cantor.
Assim como Lazzo, Edson Gomes, Sine Calmon e outros artistas dessa geração, cada qual à sua maneira, desenvolveram o reggae baiano, transitando entre momentos mais próximos da matriz clássica e outros mais abertos a influências diversas. Daí pra frente, foi apenas uma questão de tempo para que o “yeah!” jamaicano se tornasse “êa!” – que por sua vez tornou-se um cumprimento cotidiano – e que “reggae” virasse sinônimo de festa em Salvador, marcando para sempre a cultura da cidade, assim como de todo o estado.
No samba, no samba-reggae
Enquanto o reggae conquistava seu espaço na cena baiana, outros movimentos também tomavam conta do estado. Entre eles, o surgimento dos blocos afro. Em 1974, foi criado no bairro da Liberdade um bloco de carnaval voltado para a cultura e identidade negra de seus integrantes, o Ilê Aiyê, que saiu às ruas pela primeira vez em 1975. Ancorado em tradições musicais e culturais afro-baianas como o ijexá e o candomblé, e inspirado pelas lutas de independência africanas e pelo movimento Black Power dos Estados Unidos, o Ilê deu início a uma tendência de retomada de manifestações culturais de matriz africana no carnaval de Salvador, principal evento do calendário da cidade.
Em 1979, como parte desse movimento, surgiu no bairro do Pelourinho o Olodum. Nas quadras do grupo, percussionistas e regentes como Neguinho do Samba, Mestre Jackson e Ramiro Musotto davam forma a seus experimentos rítmicos, que buscavam inovar os padrões já conhecidos. Ralentando o samba e aproximando-o do reggae, criaram então o samba-reggae. O ritmo passou a marcar os ensaios e as apresentações do Olodum, e logo caiu no gosto do público soteropolitano.
Em 1987, outro país foi integrado a essa mistura: o Egito. A cultura e mitologia faraônica foram selecionadas como tema do Festival de Música e Artes do Olodum (FEMADUM), e a partir da apostila sobre o assunto o compositor Luciano Gomes deu origem a aquela que provavelmente é a canção mais lembrada ao se falar em samba-reggae: “Faraó (Divindade do Egito)”. Com seus 57 versos ambientados no universo mitológico egípcio, “Faraó” revolucionou a música baiana já nos seus primeiros meses de existência. Nos ensaios do bloco a plateia cantava a canção do início ao fim, entoando a plenos pulmões o seu refrão (“eu falei faraó!”), e no carnaval daquele ano não foi diferente.
Após o sucesso do carnaval, a faixa foi registrada em estúdio por Djalma Oliveira e Margareth Menezes em 1987, tornando-se a primeira gravação de um samba-reggae na história. No mesmo ano, o próprio Olodum incluiu a faixa no seu LP Egito Madagascar, que também possuía outra composição voltada para o Egito faraônico (e para a Jamaica regueira): “Reggae dos Faraós”. Além das duas faixas temáticas, o álbum era composto por outros clássicos, como “Madagascar Olodum” e “Salvador Não Inerte/Ladeira do Pelô”.
Além do Olodum, outro bloco afro soteropolitano destaca marcadamente a influência jamaicana em sua obra: o Muzenza. Criado no dia 5 de maio de 1981, na Ladeira de São Cristóvão, Liberdade, o grupo, que atualmente tem sede no Pelourinho, foi fundado por ex-diretores do Olodum e reverencia a cultura reggae desde seu surgimento. Pouco após a criação do Muzenza, Bob Marley faleceu, no dia 11 de maio. Por isso, a primeira saída do grupo no carnaval soteropolitano foi organizada como um tributo ao cantor. Também foi em homenagem ao artista que Nego Tenga compôs um dos maiores clássicos do Muzenza, “Brilho de Beleza”, que desde então ecoa no repertório de Salvador e Brasil afora, com a sua interpretação por artistas como Gal Costa, Margareth Menezes e Chico César.
Inovadores musical e artisticamente, esses blocos embalam as festas de Salvador, “integra(m) no canto toda a massa, que vem para a praça se agitar”, ao mesmo tempo em que dão voz a anseios de mudança social e atuam como símbolos de resistência. “Salvador se mostrou mais alerta, com o Afro Olodum a cantar”.
A união entre festividade e luta político-social, aliás, é um traço marcante da música baiana como um todo, assim como da tradição jamaicana. Não deixa de ser revolucionário unir em um só repertório canções como “Nossa Gente (Avisa Lá)”, “Vem Meu Amor”, “Protesto do Olodum” e “Revolta Olodum”.
“o próprio racismo, o próprio sistema faz com que isso se dilua. Não tem jeito, a gente tem que reivindicar esse amor. Se já somos fortes sozinhos, juntos seremos poderosos”
lazzo matumbi
Lazzo Matumbi ressalta essa confluência em seu próprio trabalho, mas bem que se pode expandir essa percepção à obra do Olodum, do Muzenza, de Edson Gomes… Diz o cantor e compositor:
“Nas minhas músicas, mesmo festivas, tem sempre um toque, um beliscão dizendo ‘fique atento’, ‘abra o olho’. Em ‘Me Abraça e me Beija’, por exemplo, que parece uma música festiva, tem um toque de dizer ‘Vem, dia 20 de novembro. Se todo dia é dia santo’. Ou seja, dizer ‘façamos com que todos os nossos dias sejam um 20 de novembro, um dia de reflexão’. Além disso, as músicas românticas também tocam num lado político muito forte e sério da nossa necessidade de troca de amor, de carinho e de carícias. O próprio racismo, o próprio sistema faz com que isso se dilua. Não tem jeito, a gente tem que reivindicar esse amor. Se já somos fortes sozinhos, juntos seremos poderosos.”
Sem duvidar do samba-dub-reggae
O movimento de expansão tanto do reggae quanto do samba-reggae influenciou o meio cultural baiano como um todo. Em Salvador, especificamente, multiplicaram-se os espaços voltados para a música de influência jamaicana, de largos e casas de show a bares e lojas de discos especializadas. O bairro do Pelourinho foi uma das regiões da cidade que mais abraçou essa cultura.
O jornalista e pesquisador musical Luciano Matos, 47, relembra essa relação: “o Bar do Reggae era um lugar muito marcante. Havia várias coisas diferentes acontecendo no Pelourinho, mas tinha esse espaço que sempre estava funcionando. Havia uma cena muito própria ali, que também era fortalecida pela Praça do Reggae, mantendo essa presença do gênero no bairro. Nessa época, por volta dos anos 1990, havia uma questão de Salvador não receber muitos shows internacionais, mas os grandes nomes do reggae costumavam vir aqui. Me lembro de ter ido pra um show de Alpha Blondy, que era um dos maiores artistas do gênero, como se ele fosse parte da rotina cultural de Salvador. Depois também surgiu a República do Reggae… Esses espaços e eventos formaram essa tradição na cidade.”
Outros movimentos musicais que estavam acontecendo na Jamaica acabavam ficando de fora do radar baiano. Dub, ragga e dancehall, por exemplo, não se destacavam por aqui. A partir dos anos 2000, no entanto, coletivos de artistas passaram a dar atenção a esses movimentos, interessados principalmente por uma manifestação em particular: a cultura Sound System. Os primórdios desse movimento se deram ainda nos anos 1950, quando os DJs seletores de Kingston ainda não tocavam discos locais, mas sim as gravações de rhythm and blues estadunidenses a que tinham acesso.
Com o passar do tempo, entraram em cena as novidades sonoras do reggae, ragga e dancehall, com as próprias produções jamaicanas ocupando as pickups dos DJs. As equipes de sistemas de som desenvolveram-se, abrangendo um número maior de integrantes, responsáveis pela construção do equipamento sonoro – que por vezes chega a medir metros de altura – e pela aquisição de material para o repertório. Paralelo a isso, artistas como U-Roy, Lee ‘Scratch’ Perry e King Tubby desenvolviam as técnicas de produção de dub. Parte importante desse trabalho foi voltada para a criação de riddims, faixas instrumentais sobre as quais os MCs faziam o “toast”, como ficou conhecido o ato de falar e improvisar ao vivo nas apresentações.
“a partir do Ministereo se fincou esse espaço mais sólido da Jamaica contemporânea, não mais daquela Jamaica clássica só de reggae roots”
luciano matos
Na Bahia, esse movimento chegou de forma mais marcante a partir dos anos 2000, principalmente com o trabalho do coletivo Ministereo Público Sistema de Som, como aponta Luciano Matos: “eu sinto que a partir do Ministereo se fincou esse espaço mais sólido da Jamaica contemporânea, não mais daquela Jamaica clássica só de reggae roots, mas também outra coisa. Eles traziam dancehall, dub e raggamuffin, com elementos daqui da Bahia.”
O coletivo surgiu a partir da união de colecionadores de disco, em sua maioria moradores da região da Boca do Rio. Inicialmente mais voltados para a música brasileira, os integrantes do grupo passaram a adentrar cada vez mais o universo da cultura musical jamaicana ao conhecerem os riddims e as suas possibilidades de experimentação. Russo Passapusso, 38, atual vocalista da banda Baiana System e ex-integrante do Ministereo, relembra o início da trajetória do grupo:
“Quando adotamos esse formato de Sound System, a gente foi crescendo, pesquisando e se aprofundando na música jamaicana. Íamos nos bairros periféricos, onde a polícia não prendia nosso som, pra puxar o fio do poste e ligar nas caixas. Fazíamos workshops, dávamos aulas de como tocar discos na escolinha, os grafiteiros pintavam o bairro e a gente tocava na rua. No final, passava o chapéu pra poder pagar o carreto de volta. Todo mundo tinha outro emprego. Eu trabalhava com telemarketing e passava o fim de semana fazendo isso. Cada um pegava seu dinheiro pra investir nessa engenhosidade.”
O trabalho do Ministereo passou a ser mais conhecido na cena musical e começaram a surgir outros grupos voltados para estéticas similares, como o Bemba Trio, o DubStereo e o Roça Sound. Eventos como o Quintas Dancehall ganhavam mais relevância e público, e mesmo grupos não necessariamente voltados para a música da Jamaica, como o Ifá Afrobeat, também incorporaram essas referências em seus projetos.
Russo rememora que, durante esse processo de aproximação, a recepção do público soteropolitano por vezes oscilava dependendo do som que era tocado.
“botava uns discos de dub e o pessoal não entendia muito, mas quando começamos a tocar dancehall, não queriam saber se era jamaicano, as meninas vinham e começavam a dançar pagode ”
russo passapusso
“A gente pegava as caixas de som e levava pro Bairro da Paz, por exemplo. Botava uns discos de dub e o pessoal não entendia muito, mas quando começamos a tocar dancehall, não queriam saber se era jamaicano, as meninas vinham e começavam a dançar pagode. Eu olhava aquilo e falava ‘poxa, não tem nada a ver’. A gente tá ouvindo Jamaica, Jamaica e a galera vem e faz Bahia, Bahia. Não querem saber se o cantor é um jamaicano, mexeu aqui e eu sei dançar dessa forma. Então a expressão corporal como movimento começou a ditar cada vez mais as letras e o processo. Nós tínhamos que saber como é que se mexia naquela história e passamos a pensar diferentes aspectos da nossa realidade nos trabalhos.”
Além dessa identificação do dancehall com o pagode, outros elementos assemelham a Bahia e a cultura Sound System. Por exemplo, enquanto Duke Reid e Sir Coxsone popularizavam o movimento em Kingston, Dodô e Osmar revolucionavam o carnaval soteropolitano com o trio elétrico, nosso sound system por excelência, à sua maneira. Mais tarde, a proliferação dos paredões apenas reforçaria essa conexão.
Se por um lado essas relações favorecem a inclusão das referências, por outro também favorecem a compreensão de como nossas próprias tradições podem modificar a informação que recebemos de fora, gerando a novidade. Na trajetória de Russo, foi justamente essa percepção que moldou seus próximos passos no mundo da música: “eu vim do sertão, e quando eu cantava ‘divi-divi-divi-divi-di Salvador’ (na música “Duas Cidades”, do Baiana System), meio Shabba Ranks, todo mundo olhava e falava ‘Ah, é um repente.’ Eu dizia ‘Não, é um ragga’, e a galera: ‘Não, é um repente’. Ali fui entendendo que eu não precisava fazer nada do internacional em detrimento do local, mas era o local que formatava o externo, e comecei a bater nessa tecla até umas horas. Quem gerou essa união de um jeito muito legal foi o samba-reggae, porque ele não abre mão de sua cultura, é samba primeiro, reggae depois.”
Com isso em mente, muitos grupos que têm movimentado o cenário baiano nos últimos anos absorveram o legado dos clássicos do reggae, do samba-reggae e das referências trazidas pela geração do Ministereo, e as transformaram de acordo com a multiplicidade de inspirações baianas disponíveis. Por exemplo, a banda BaianaSystem, da qual Russo faz parte desde 2009, que destaca-se no cenário musical com sua transposição do conceito de sound system para os tradicionais trios elétricos do carnaval de Salvador. Suas experimentações relacionam elementos orgânicos e eletrônicos, guitarra baiana, programações, baixo, guitarra e percussão, enquanto o grupo transita entre momentos mais próximos do dub, do frevo, do rock, do reggae, do ijexá ou, mais recentemente, da música latina.
Assim como o Baiana, nomes como OQuadro, ÀTTOOXXÁ e Afrocidade, frutos em parte da mais recente experiência de consumo e adaptação da cultura jamaicana realizada nos anos 2000, mostram como essa relação, iniciada há mais de 40 anos, ainda pode ter muito potencial criativo. A Jamaica está presente em toda a música global, tanto nos seus gêneros próprios, como nas raízes da eletrônica e do rap, e, como vimos, em movimentos essenciais da criatividade baiana. Não sabemos ao certo quais serão os próximos passos dessa relação, mas, olhando para o passado, eles parecem certamente animadores.
A Fraude é uma revista laboratorial do Programa de Educação Tutorial em Comunicação (PETCOM) da Facom – UFBA e não possui fins lucrativos. Caso uma das imagens te pertença ou em caso de dúvidas, entre em contato pelo e-mail revistafraude@gmail.com para acrescentarmos a referência ou retirarmos da publicação.
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