As histórias de ginastas baianas que representam o Brasil pelo mundo
texto Anna Luiza e Stella Ribeiro
multimídia Nadja Anjos
diagramação Nadja Anjos
narração Micaele Santos
colagem Stella Ribeiro
Três arcos e duas bolas. Cada um dos objetos sobrevoa o tablado de 13×13 metros para logo serem capturados por mãos ágeis e talentosas. Ao som de “Bamboo” e “O Desconhecido”, Ana Maria Maciel, Dayane Camilo, Fernanda Cavalieri, Jennifer Oliveira e Larissa Barata ocupam o centro das atenções no Estádio Galatsi, em Atenas.
Em meio a saltos complicados, os aparelhos são alçados e apanhados de diferentes formas por mãos, pernas e braços. O importante é não deixá-los cair. Entre arrastos, passadas e jogadas, quase um deslize: um dos arcos se projeta para fora do tablado. Uma correria começa. Em menos de cinco segundos, Larissa, sem sair do ritmo, dá duas passadas para o lado e com habilidade evita uma possível tragédia em rede internacional de rádio e televisão. Suspiro.
A elasticidade de seu corpo impressiona. Ao contrário da anatomia convencional, pé e cabeça se encontram constantemente. Entre elevações de pernas, giros e saltos de dança elaborados, passa a existir um corpo conectado, em que o limite é quase inexistente. Mas não basta ser elástica, tem que ter beleza. E a graciosidade se espalha em Atenas pelo andar na ponta do pé, pelo gingado e pelo sorriso.
Em frente à televisão de tubo, os olhos de Marcela quase não piscam. No visor, um close em Larissa Barata revela sua simpatia e alívio por ter dado tudo de si no tablado. Mas teria sido suficiente? Marcela acredita que sim. Um placar surge abaixo na tela e, com um bom tom de mistério, o resultado aparece. Festa brasileira em Atenas. O país se classifica para a final por equipes de ginástica rítmica nos Jogos Olímpicos de 2004.
Tela preta. Rebobina-se a fita.
Era dessa forma que a menina em frente à televisão alimentava seu sonho de criança. Em fitas VHS emprestadas pela treinadora, ela assistia a antigas apresentações da equipe brasileira de ginástica rítmica em Olimpíadas. As gravações serviam para lembrá-la do encanto e do fascínio de seus olhos ao perceber o amor pela ginástica pela primeira vez.
Soteropolitana, Marcela Menezes, 35, iniciou sua carreira esportiva no Colégio ISBA (Instituto Social da Bahia). Traquina desde muito nova, chegou a praticar Ballet e Jazz como uma tentativa de extravasar sua energia, mas foi na ginástica rítmica que fixou raízes. Por incentivo da mãe, iniciou os primeiros passos no esporte aos 9 anos, idade já avançada para os padrões atuais, e aos poucos foi tendo a certeza de que continuaria por muito tempo.
A facilidade da iniciação gerou bons frutos. Marcela se tornou parte da equipe da escola e logo começou a participar dos principais campeonatos do país. Mas, como acontece com quase todos os atletas iniciantes, havia um conflito entre ela e suas competições que não sabia contornar. Demorou muito até que compreendesse que o nervosismo fazia parte do processo, o que lhe rendeu o rótulo de amarelona por colegas de escola. Para se motivar em meio às críticas, recorria às fitas VHS da treinadora, onde acompanhava Larissa Barata, especialista em driblar a ansiedade e atrair atenções.
“Como uma boa baiana, a gente é bem amostrada”. Era assim que Larissa Barata, 34, se apresentava para o mundo desde criança. Apaixonada por dança, era ela quem puxava as coreografias em todos os aniversários realizados em seu condomínio na Pituba. E foi através da dança que Larissa chegou à ginástica: “Quando você vê uma ginasta interpretando e dançando, isso chama a atenção de qualquer menina e comigo não foi diferente. Eu era uma criança que gostava de me movimentar. Eu me identifiquei, era isso que eu queria”, relembra.
Aos 8 anos, Larissa se mudou com a família para Aracaju e entrou no Colégio Arquidiocesano Sagrado Coração de Jesus. Naquele ano, o time de ginástica rítmica da escola fez uma apresentação que lhe encheu os olhos. Implorou para a mãe matriculá-la, mas não aceitavam alunos de sua série. Teve de esperar um ano, até que a professora de ginástica tomasse coragem para desrespeitar o diretor e fizesse uma seletiva secreta. Larissa se inscreveu de primeira. Escondida no fundo do ginásio, em meio a 200 meninas, reluziu como boa amostrada que era. Conseguiu aprovação da técnica e da mãe para iniciar o treinamento.
Daí em diante os astros se alinharam. Em sua primeira competição, no campeonato sergipano, ficou em sexto lugar, já na segunda participação se consagrou campeã. Em 1997 se tornou vice-campeã brasileira e em 1998 campeã, com direito a convocação para a Seleção Brasileira de ginástica rítmica. Depois foram mais 5 anos sendo campeã brasileira consecutivamente. “Na época, a Federação Internacional de Ginástica escreveu uma nota sobre mim falando que ‘nascia uma estrela da ginástica nas Américas’.”
O ponto de interseção entre as trajetórias de Larissa e Marcela não se limitava apenas ao prodígio e ao estado. A devoção à ginástica exigia horas infindáveis de treinos e gerava uma tensão emocional semelhante ao peso de um ginásio inteiro nas costas. Era como um ciclo vicioso em que quanto mais você ganha, maior se torna a pressão.
O processo de competição não ficou mais fácil com o passar do tempo. Além da dificuldade de disputar o topo, havia também a cobrança de se manter nele. Larissa era a única hexacampeã brasileira consecutiva, e os títulos não trouxeram acalento. Pelo contrário, tornaram-se padrões de exigência para continuar vencendo. Com treinos de oito a dez horas por dia, desde os onze anos, Larissa estava em um processo de cobrança que nem ela entendia. A técnica, com a missão de elevar seu rendimento ao máximo, enxergava a oportunidade de também ser reconhecida: “a minha treinadora via um talento que precisava ser lapidado e quando percebeu que estava funcionando, ela queria mais, sempre mais”, confessa.
A inserção em um ambiente competitivo e a ausência de acompanhamento psicológico faziam parte do percurso profissional de Larissa. O destaque e a atenção que recebia das treinadoras causava ciúmes nas outras meninas. A atleta conta que: “em um campeonato brasileiro que ocorreu em Aracaju, tinha uma ginasta paulista que me encarava e torcia para que eu quebrasse a perna, porque sempre ganhava o campeonato brasileiro e ninguém queria competir comigo.”
Em meio às cambalhotas, espacates e saltos, os treinamentos de Marcela também apresentavam problemas. Para suas treinadoras, não bastava ter flexibilidade, a magreza era indispensável para as ginastas. Porém, mesmo se a atleta já alcançasse o limite permitido, a técnica continuaria advertindo as meninas quanto ao peso. A fascinação por corpos magros em collants delineava o seu esporte. Não havia uma definição de peso ideal, sempre seria necessário perder, independentemente de quanto se tinha.
“Algumas garotas precisavam emagrecer e para isso tomavam Lactopurga escondido. Quando você as olha fazendo isso, você pensa: ‘Vou fazer a mesma coisa’. E já foi. Já está fazendo um monte de maluquice sem supervisão”
larissa barata
Com Larissa acontecia o mesmo. Ao chegar à Seleção Brasileira de ginástica com 48 quilos, também foi orientada por treinadores a emagrecer mais. Essa era uma imposição que a perseguia desde criança. No início de seus treinamentos, aos 11 anos, via as meninas mais velhas obcecadas com o peso, praticando hábitos danosos à saúde. “Algumas garotas precisavam emagrecer e para isso tomavam Lactopurga escondido. Quando você as olha fazendo isso, você pensa: ‘Vou fazer a mesma coisa’. E já foi. Já está fazendo um monte de maluquice sem supervisão.”
Além desses desafios diários, outro obstáculo bloqueava o caminho de Marcela até a Seleção Brasileira: sua situação financeira. A ginasta batalhava junto à família para arrecadar dinheiro a fim de pagar pelos collants, viagens e alimentação durante as competições que participava. O esforço gerou pequenos resultados, e, aos poucos, passou a chamar atenção nos eventos estaduais. O mesmo não acontecia no campeonato brasileiro – competição conhecida por destacar atletas da Seleção. Restava-lhe sempre a trigésima ou a quadragésima colocação.
Foi apenas após sua primeira competição internacional, em Portugal, que a chave girou para Marcela. Com o primeiro patrocínio, conseguido pela mãe através de um programa de apoio da COELBA a filhos de funcionários, Marcela aterrissou em solo lusitano junto à treinadora e competiu com meninas que lideravam o ranking mundial de ginástica. A partir dessa experiência, ela notou uma enorme evolução: na volta ao Brasil, conquistou a final por aparelhos nas bolas, e o segundo lugar na final das maças no Campeonato Brasileiro Adulto.
Mas o sonho de integrar a seleção ainda era nebuloso. Um racha político assombrava a Confederação Brasileira de Ginástica Rítmica (CBG) devido a uma série de injustiças na escolha de ginastas. “A Seleção ficava no Paraná e a maioria das integrantes eram do Sul, escolhidas independentemente dos resultados em competições. E isso era muito criticado”, conta Marcela. Por ordem da CBG, a Seleção Brasileira foi desfeita e a base mudada para o Espírito Santo, sem nenhum sinal de reordenamento.
“Para mim [a inscrição] foi tudo ou nada. Eu tinha 18 anos, havia terminado o terceiro ano e precisava investir em uma profissão. Se eu não passasse na seletiva, eu largaria o esporte”
marcela menezes
Alguns meses depois, a CBG abriu uma seletiva para todo o país e Marcela se inscreveu. “Para mim (a inscrição) foi tudo ou nada. Eu tinha 18 anos, havia terminado o terceiro ano e precisava investir em uma profissão. Se não passasse na seletiva, eu largaria o esporte”. Após duas sessões de testes, foi convidada a integrar a Seleção Brasileira de conjunto de ginástica rítmica.
A partir daí o nível de exigência triplicou. Uma cena que nunca saiu da cabeça de Marcela foi a tensa reunião em sua primeira participação nos Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro, em 2007. Assim que a equipe chegou na vila dos atletas, as treinadoras e a presidente da CBG fizeram uma reunião e exigiram nada menos do que a vitória brasileira. Em casa, a pressão era grande, mas a ginasta não decepcionou, ajudou a conquistar o tricampeonato para o Brasil e a vaga para as Olimpíadas de Pequim no ano seguinte.
A chegada da comissão brasileira na China marcou a realização do desejo da menina que sonhava em ser ginasta em frente à televisão. “Eu lembro da gente entrando na vila olímpica e falando: ‘Isso não é verdade, me belisca’. É uma experiência única, todo atleta quer estar lá e, quando você chega, passa uma retrospectiva na cabeça”. Mas, com a realização, vieram as inseguranças: como se igualar às ginastas da fita cassete que a inspiraram?
No caso de Larissa, o caminho até sua Olimpíada também não foi sereno. O Pan-americano de Santo Domingo de 2003 era a porta de entrada para a classificação para os Jogos de Atenas. Larissa chegou à República Dominicana como favorita, mas pegou caxumba, não conseguiu treinar e desempenhou uma apresentação abaixo do esperado. Essa foi a primeira e única vez que voltou com uma derrota para casa. No entanto, sua trajetória ainda não acabava aí. Mais tarde, foi convocada pela Seleção para integrar o time de conjunto da ginástica.
Sua chegada ao país olímpico também foi marcada pelo encanto. “Minha ficha só caiu na abertura quando vi as bandeiras dos países e percebi que estava entre os melhores atletas do mundo”, afirma Larissa. E de fato estava. Sua estreia em Olimpíadas levou o Brasil para sua segunda final consecutiva na ginástica rítmica. “Eu me arrepiava em cada vez que a gente lançava e recuperava (algum aparelho). Me arrepiava de ter feito o nosso trabalho, por toda a dedicação e horas de treinamento. Tudo valeu a pena, demos conta do recado”. E assim estava marcado o melhor desempenho brasileiro na história da ginástica rítmica.
Era esse recorde que Marcela tentava superar. Porém, no dia de sua estreia olímpica, um fato nos bastidores perturbou os ânimos da equipe. A treinadora discutiu com uma das ginastas e sobrecarregou as meninas. Ao chegarem no tablado, as performances não ocorreram como deveriam. Na apresentação das cordas, a equipe conseguiu uma boa pontuação, mas na de arco, um erro de centímetros de distância arruinou a chance de levar o time brasileiro a mais uma final olímpica. Mesmo assim, a decepção não abalou Marcela. Para ela, o retorno para casa foi vitorioso. Mesmo com uma meta frustrada em Pequim, havia conseguido uma participação de sucesso no Pan-americano e realizado seu sonho de criança.
“A ginástica pode ser um esporte ingrato, porque é muita dedicação e na hora podemos não ter a sorte de executar da forma treinada. Mas, eu sou muito grata a tudo o que ela me proporcionou. Gosto de lembrar da ginástica com alegria”
larissa barata
Entre trajetórias tortas, Marcela e Larissa foram capazes de sonhar o mesmo sonho e alcançar o inimaginável. “A ginástica pode ser um esporte ingrato, porque é muita dedicação e na hora podemos não ter a sorte de executar da forma treinada… Mas eu sou muito grata a tudo o que ela me proporcionou. Gosto de lembrar da ginástica com alegria”, afirma Larissa. E aos poucos a vida revela a Marcela o mesmo. Sua vitória não se encontrava naquela final olímpica, mas na batalha por lutar pelo que acreditava, por desfrutar de uma seleção destaque em diversidade regional e por se tornar uma inspiração para outras meninas atrás de televisores, assim como ela.
Uau! Que incrível poder conhecer um pouquinho mais desse esporte tão maravilhoso, representado pela nossa equipe brasileira! Que histórias incriveis. Excelente matéria!
Amei a matéria e a forma que foi escrita❤️. Despertou meu interesse.
Matéria incrível!
Que matéria sensacional! É muito bom ver como o esporte muda a vida das pessoas 🥰