A pandemia causada pela COVID-19 trouxe muitos desafios. O meio cultural, já sufocado com a instabilidade e a ausência de políticas públicas, também teve que procurar maneiras de se reinventar no atual cenário. Dessa forma, promover uma exposição digital de produções artísticas é de suma importância para fazer com que a comunidade possa reconhecer a importância da classe artística e acesse outras modalidades de produzir cultura, para além das plataformas de streaming.
Apesar de já utilizar o espaço editorial para dar destaque à produção baiana, essa é a primeira vez que a Revista Fraude investe numa mostra de artes integradas e oferece sua plataforma digital para a exposição dos trabalhos. Dessa forma, a 1ª MOSTRA FRAUDE DE ARTES VISUAIS E LITERATURA tem como objetivo possibilitar o acesso à cultura através do digital, buscando transpor barreiras espaciais e físicas e potencializar a produção artística baiana nesse período conturbado.
Aqui estão 5 de 10 obras literárias selecionadas para compor nossa Mostra. Para visualizá-las, basta clicar num dos títulos da lista abaixo. Aguardem as próximas e boa leitura!
quando eu ouvi aquele trote todo vindo lá de longe como um enxame terrestre em minha direção eu pensei que não restaria fêmur meu que pudesse denunciar à história. por isso mesmo eu me adiantei e pisoteei-me sozinha, com minhas próprias patas, convencida da tritura inevitável; ergui os lençóis como se bandeiras desertoras e enrosquei-me neles. ainda assim o trote alarmado não deixou de adiantar-se estridente e profético, pensei é hoje que eu morro, de hoje eu não passo, o medo do medo oraculando a minha morte e eu a crendo irreversível. os cavalos vinham vindo amontoados e convulsivos em rumo à ponta do meu nariz, pensei de hoje eu não passo!, e enquanto içava a bandeira e afundava na cama dizendo eu desisto, eles chegaram retumbantes e passaram por mim sem rasgar-me um fio, como um sopro a refrescar o rosto morno, e eu pensei então era só isso?
Por Júlia Grilo
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As retas nos perseguem. Em qualquer lugar que queremos entrar, as portas são retas. No horizonte que queremos olhar, colocaram uma janela: reta. O contato social, os abraços, os amigos, as relações, retas. Na superfície, todos ao redor querem que a linha da vida seja: reta.
Sem empecilhos; sem pedras no meio do caminho; sem curvas. Sempre há a tentativa planificar, retificar as coisas. Deixar a vida simples, a linguagem simples, os amores simples. “Se enquadre aqui, se mude ali, não faça isso, faça aquilo”. Os sentimentos ficam enclausurados em expressões matemáticas e (di)retas. Mas essa moldura dói. Você sabe disso. Incomoda, coça, e volta e meia, naquele domingo fim de tarde, mesmo quando tudo está no lugar, quando a vida está em ordem. A família, os amigos, os estudos, os objetivos, tudo tranquilo. Nesse teórico mágico momento. Um vazio surge, o estomago remexe. Você questiona sua sanidade e ela vem e te questiona de volta.
Por isso comecei a me indignar, chorar, sem entender o que de errado havia comigo. Mas, depois de quase quebrar minha coluna de tanto tentar deixa-la (e)reta, de sentir a dor de olhar no espelho e não gostar nem do que sou nem do que estava tentando ser, um sentimento começou a metamorfosear-se. De uma pseudoaceitação, consegui ter certeza do que sempre suspeitei. Portanto, hoje, nesse texto, nesse periódico venho a público dizer que luto. Eu luto, por um direito básico: o direito à tortidão. Que se danem as retas, aliás, que se entortem!
Eu cansei das retas
Não as suporto mais
“ih, mas não era em prosa?”
Foda-se, agora é poesia.
Quero poder ser voyer
Do mais belo e torto beijo
O metabeijo da linguagem
A metalinguagem do beijo
Estou cansado do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado,
Ou até mesmo do lirismo descrito
No poema que quase plagiei.
Eu quero um lirismo torto
Lirismo de gente, gente que sente, gente como a gente
Que faz rima mal feita,
Por quê? Porque sim.
Eu quero que não me esconder mais,
Quero gritar para o mundo,
“eu sou torto” (demasiadamente torto, graças a deus)
E vocês também!
O poema da minha vida terá muito mais de sete faces.
Pois quando eu nasci um anjo torto visitou meus sonhos,
Um desses anjos que vivem entre o deleite e o delírio,
chegou à minha cama e disse.
Vá lá meu filho, vá ser Morfeu
Então o nosso única saída é a literatortura, porque quanto mais as vísceras são expostas em formato de palavras. Quanto mais a loucura, a tontura, a tortura é liberada dos calabouços das mentes de cada um, menos culpa assombrará nossas almas. Culpa de ser assim, meio que humanos. Que possamos então, juntos, celebrar o que nos une. A minha, a sua, a nossa: tortura.
por Thiago Aguiar Jesuíno
Uma página da minha diária em folha avulsa solta improvisada
O caderno acabou dias atrás e ainda não costurei outro
Só hoje consegui folhas novas e ideias velhas foram pro papel
Só hoje depois de parecer que o tempo seria aquele nublado parecido com o de ontem e de antes de antes de ontem
Só hoje abriu neste início junino uma nuvem e um sol quentinho bateu cinco horas da tarde na sola dos meus pés e com as canelas pra cima deitada na rede entrei em tempo mais lento longe dos fios que conectam as ondas elétricas na sala perto do modem longe dos barulhos da reforma na laje vizinha
E quando entro na conversa o assunto é justamente o vai e vem das ondas do mar
Nossa vida não metáfora
Vida que pulsa e narra
Vida condicionada agora a tantas falhas e atravessamentos virtuais quanto possível nessa realidade tecnológica de comunicação que em grande parte mostra sua ineficiência seu capricho e que não fomos adequadamente ensinadas a usá-las afinal não foram feitas pra nós a não ser pra nos monitorar
Desviar nossa atenção
E o que fazemos dela não não não está só na nossa mão
Somos muitas as primeiras das nossas a ter acesso a elas
A ter acesso a lugares e espaços como aquela escrita besta rebuscada da Academia em falência sendo remendada
Minha mãe não sabe ler muito bem
Só lê a bíblia e frequentou a escola só até a quarta série e criou suas duas filhas para que estudassem e não tivessem como seu trabalho servir como o dela sempre foi servir
E eu aqui num mestrado matutando como subverter normas escritas?
Só se for com o alfabeto pretoguês que ela minha mãe me ensinou cantando bê cê dê é fê guê
i lê mê nê pê quê
rê sí tê i de novo recitarei recriarei de a a zê o b com a bá da zona temperada com cominho colorau e alho pilado com semente de coentro fresca e sal
Até hoje ela diz que temos que buscar ser sal da terra e luz no mundo como a palavra manda
Qual palavra manda ? Que mestre mandou eu me curvar?
Eu levanto e voo e aprendi a cantar
Como fazer pra ela acessível o conhecimento que eu mesma produzo é desafio maior que a estrada do meu caminhar
A pergunta o que faço com o que tentaram fazer de mim me lembra o riso na boca da patroa dela quanto alegremente disse da minha entrada na Universidade…
Aquela mulher que sempre me doou os livros que suas próprias filhas não queriam mais
Como suas roupas usadas e seu deboche fingido de despretencioso…
Eu passava horas apagando as respostas para reescrevê-las depois e lembro dos farelos da borracha branca caindo no chão
As marcas incompreensíveis das respostas à lápis que me obrigaram a ter a letra forte a mão firme ainda mais
Ainda mais
O porque escrevo agora minhas próprias palavras vem desse sentimento
Vêm da memória do meu corpo
Que hora ou outra me sopra no vento
Da imaginação para além da visão nas leituras que abriram meus horizontes e mostraram outras possibilidades de vida que levei tanto tempo e dor pra entender
O que eu faço sou eu e minhas ações mostram qual papel quero marcar com letra que não é só minha
Minhas ancestrais vem antes de mim
Meus versos numa página não são mais importantes do que quem eu de fato sou nas linhas da vida
Quando assumi o compromisso com minhas palavras disse o presente vivido o passado que corre em minhas veias os sentimentos do agora ao andar aqui longe de onde nasci
A naturalidade do viver cotidiano aprendido em meio a tudo que é só artificial
Escavo chão e sou raiz
Não quero o superficial
E agora sinto o que sempre quis
Ultimamente isolada sinto que a relação mais próxima que consigo ter com a natureza minha mãe é com o tão distante céu acima da minha cabeça e isso é estranho pra minha própria natureza dependente de pé e mão na terra
Plantamos juntas ontem a semente de abacate no quintal
Meditar todo dia tem feito bem pra cabeça e pra tudo
E tudo tá tão de cabeça pra baixo e ainda é preciso girar e chacoalhar mais e muito pra ver se a mente do mundo muda de frequência pra ver na diferença potência e beleza
Fazer a roda girar na gira que segue seu fluxo de rio correnteza que nunca deixa de seguir
Circular e anti horário no relógio universal do centro do mundo abalado
Centro do quê? O umbigo do mundo se vê de cabeça pra baixo dançando em torno do próprio eixo
Quando as telas apagam e na mente tantas referências ditas em voz alta em nomes femininos
brilho
Brilho vendo o sol se pôr atrás das nuvens a lua mesmo sendo dia ainda brilhar e a primeira estrela noturna pontar
Sim é contraditório estar aqui e estar lá na escrita na academia na tela do celular
Mas brilho de outra forma e a partir de outra forma quero forjar meu viver por ver esse lugar de enunciação que me faz CRIA AÇÃO
Sal da terra é água do mar mamãe
Sal da terra é água do mar mamãe
Poder falar e ser ouvida escutar
Luz do mundo é saber
Luz do mundo é fazer
Ninguém nos encorajou a fazê-lo senão nossas mães desletradas contando apenas com suas vozes nosso passado presente futuro inspiração de sonho e labuta
Mãos de mãe mãos de tempero mãos de trabalho mãos de terra mãos de costura e sim mãos de escrever
Ninguém disse que seríamos capazes a não ser elas
Se dependesse desses olhos brancos acadêmicos realmente nem aqui estaríamos
Mas é por elas que ultrapassamos as contradições desse estar
Quando penso no que faço do que tentaram fazer de mim pé torto coluna envergada e voz falha renasço e floresço todo dia mostro minha cara minha língua meu corpo minha palavra
A linha marrom que costuro cadernos e histórias das de antes soprando em meu ouvido fazendo sentido em meu mover
Nesse encontro escreviver poder falar dizer gritar me leva a música que escrevi outro dia e diz
VOZ E ASA pra voar e extravasar
Ultrapassar fronteiras
Transformar como planta folha flor
Escrever com a escrita que nos inscreve e a língua que nos molda e o que fazemos com isso
É poesia
Passo
Gesto
Sem forma pronta
Sem norma posta
Costurando sentir e viver
Luz no mundo é sal da terra
Agradeço por trocar e poder me refazer
por Carol Dia
Instagram: @estarsol
Site: https://diasdecarol.wixsite.com/estarsolartevida
eu sempre tive medo
de achar uma gilete
nas balas de gengibre
vendidas em ônibus
por pais de família
motivados pela fome
e choro das crianças
que saem na labuta
diária na cidade,
cruel selva de pedra
que não tem gilete certa
que dê conta de abrir
os muros e paredes
das casas onde moram
fome e sede curiosas
de sete ou de oito anos
que estudam um pouquinho
e têm grandes olhos duros
como quem vê coisas dentro
da gilete no gengibre
que derrete na garganta
do rapaz que só queria,
dentre todas essas coisas,
emprego bom e segurança
pra andar com celular
tirar foto do oceano
e dizer que, na esperança
de um dia ser artista,
vai trazer para a criança
e para o pai de família
saúde, paz e temperança,
mas é nada garantido
porque ele só tem esse real
esse porco celular
e na câmera frontal
ele tenta se olhar
se não ficou preso entre
um dente ou outro da boca
a gilete da memória
do nome do vendedor
pai de família no ônibus
com dois filhos pra criar.
O gengibre desce ardente
e nada dele se lembrar
do nome do pai que vai
levar pão, leite e presença
para os filhos que, na escola
enganam a própria fome
com o fundo do lápis Bic
verde, mole e todo roído,
porque a fome vem
vestindo preto todo dia
que nem o rapaz vem estudar
uma hora de busão
pra conseguir chegar
uma hora de busão
para conseguir voltar.
Mas ele nunca achou gilete
em gengibre nenhum desses
achou foi um pai de família
com dois filhos pra criar.
por Hilário Zeferino
Medium: https://medium.com/@hilariozeferino
Objeto de indeterminada e turva conclusão
Solstício desejado por mim mesmo, me inclino em uma latitude que alcance os faróis e as fagulhas
Que chegue até bem perto de onde se começa o começo de uma reta mais sucumbida à métrica
Do que a própria linha do Equador
Do que a própria densidade de um beijo áspero nas pálpebras
Que só um olhar escarrado pode oferecer a um corpo como o meu
Contornos iguais a esse nunca foram metalinguagem do desejo
Manequim esculpido por um bronze-lápide
Por um ouro vencido e envenenado por uma ferrugem que só o tempo é capaz de carregar
Finda essa angústia de ter que ser sempre chuva
Porque eu também danço entre sóis
Eu dissipo mais do que o dobro de um todo
E em mim caminham fogos de artifício dentro de um poro entreaberto
Que de vez em quando se arrebata na pouca ventania de Salvador e nas ruas do Centro
Eu prefiro olhar mais para as pétalas
Pro caule
Pro espetáculo entre a delícia e o desespero
Pra dicotomia nada dualística de ser mais de um
As minhas partes todas se desembaraçam com qualquer gota de verniz-afeto
E sempre sobra mais do que um palmo
Pra segurar uma haste
Que me permite voos em que tiro pra dançar a pressão atmosférica
As fendas arquitetônicas brindam com o paisagismo colonial dessa cidade
E cada viaduto pede socorro quando a pilastra não suporta o choro de uma criança
E eu sinto espasmos
Cada vez que uma amiga preta travesti aparece com a voz fanha
E as mãos descascando
De tanto rastejar por existência
E quanto a isso
Me falta proso-poesia que descreva o cuspe que só a pele é capaz de sentir
Nunca tive interesse em aprofundamentos viscerais
Passeio por possibilidades e deixo livre a derme de quem sente
Deixo livre o corte e o conforto
Me amedronta dissertar
Poesia, pra mim, é escuta
E eu agradeço por cada aroma que já tocou os meus ouvidos e fez um barulho sísmico
Agradeço por cada toque que provocou arrepios nos meus calos
Porque só assim eu poderia escrever sobre mim
Porque as palavras que uso também são espelhos
Porque só assim eu poderia escrever.
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