selo fraude de qualidade
texto Brenda Santos e Victoria Lenoir
Publicado em 30.07.2020.
Se você não viveu numa caverna pelos últimos três anos, provavelmente sabe o que é Dark. Criada por Baran Bo Odar e Jantje Friese, a primeira produção alemã original Netflix teve sua última temporada lançada na plataforma no dia 27/06 e foi um dos tópicos mais debatidos na internet naquele fim de semana. A série de drama e ficção científica repercutiu entre espectadores principalmente por ser fonte para criação de teorias, reflexões sobre a vida, destino e existência humana.
Caso ainda não tenha assistido, a primeira parte dessa resenha é sem spoilers. A história começa em 2019 numa cidade do interior da Alemanha chamada Winden, onde algumas crianças estão desaparecendo. A partir disso, fenômenos estranhos começam a assombrar os habitantes da chuvosa cidade. Porém não se deixe enganar, a premissa similar a várias histórias que já conhecemos para por aí e dá lugar a um mistério recheado de conceitos físicos e filosóficos que vão fazer você mergulhar na narrativa e não querer mais sair. Os méritos de Dark são inúmeros: a fotografia que dá um tom soturno à história; a trilha sonora densa e pontual; as atuações brilhantes; a escolha do elenco; a direção cuidadosa e inspirada… Mas nada disso seria o suficiente para colocar Dark no posto de provavelmente a melhor série original Netflix se não fosse pelo seu esplêndido roteiro. E é sobre isso que vamos falar a seguir, com spoilers.
Se você ainda está aqui, subentende-se que já assistiu à série e sabe que a pergunta não é “onde?”, mas sim “quando?”. O que faz Dark se destacar entre as obras de viagem no tempo é o seu caráter cíclico, deixando parcialmente de lado o conceito do efeito borboleta e da linearidade do tempo que estamos acostumados.
Determinismo
“Não somos livres nas nossas ações porque não somos livres nos nossos desejos”. Stranger
Durante a série, vemos os personagens lutando contra o tempo e viajando para tentar alterar os fatos e eventos de acordo com suas motivações pessoais, mas ao passar dos episódios compreendemos que isso é quase impossível. O tempo em Dark é apresentado de forma cíclica e imutável, onde tudo que acontece é fruto de eventos passados que possibilitaram que o presente e o futuro ocorram da forma que ocorrem.
No episódio “Você Colhe o Que Planta”, da primeira temporada, somos apresentados ao fato de que, em Winden, não é só o passado que afeta o presente, mas o futuro e o presente alteram o passado. Tudo está fadado a acontecer da mesma forma que já aconteceu antes. Ou seja, as tentativas de alterar o tempo são na verdade o que mantém o ciclo intacto. Não entendeu? Okay, explicamos:
No supracitado episódio, Ulrich retorna a 1953 e, na tentativa de impedir o desaparecimento de Mikkel, acerta Helge Doppler, ainda criança, na cabeça com pedradas. O que nem Ulrich nem nós sabíamos era que justamente esse ato de violência foi o que causou o eventual encontro de Helge com Noah, que futuramente viriam a sequestrar as crianças. O tempo é imutável, o que faz com que as ações de cada pessoa não sejam oriundas simplesmente de livre-arbítrio. Dark utiliza da teoria determinista para explicar esse acontecimentos e suas causalidades, onde não há aquela ideia de voltar no tempo para mudar os fatos.
É como se, no presente, a viagem no tempo de certa pessoa já tivesse ocorrido, então o que acontece hoje não vai mudar. Na verdade, pior ainda, foi a viagem no tempo que causou o próprio evento.
Na terceira temporada fica bem claro a completa impotência que os personagens têm sobre seu destino. Quando Jonas jovem tenta se matar, Hanno o salva e diz que ele não vai conseguir, porque não é a hora dele morrer. E isso fica provado quando Jonas tenta atirar na própria cabeça com a arma carregada que Hanno lhe entregou, e a arma falha todas as vezes. Ele não tem escolha nem sobre a hora da própria morte.
“Você ainda não faz ideia de como esse jogo funciona. Você quer destruir o nó, mas a cada passo que você dá, o mantém intacto”. Claudia
Referências bíblicas
A primeira referência clara à bíblia que Dark nos apresenta é quando, na primeira temporada, Noah diz que a máquina do tempo no bunker é a arca e ele é Noé (o que fica mais óbvio quando sabemos que “Noah” é “Noé” em alemão). Isso sem mencionar toda a simbologia em volta do número 33, que representa a idade em que Jesus Cristo é crucificado, é a idade em que o anticristo prospera… e por aí vai.
Mais adiante na série, somos apresentados a Adam, que em português é Adão. Daí surge entre os fãs a teoria que em algum momento haveria uma Eva, que seria a Martha. Na terceira temporada, isso não só é confirmado como expandido e desenvolvido.
Adão e Eva, na bíblia, são os responsáveis por povoar o mundo. Nada mais justo que, em Dark, a união de Jonas e Martha seja a razão da maioria dos habitantes de Winden existirem. São pouquíssimos aqueles que não nasceram da linhagem de Adam e Eva, e, consequentemente, esses poucos são os únicos que sobrevivem ao final da série.
Assim como na bíblia, aqui em Dark Adam e Eva são seduzidos e manipulados pela serpente. E quem mais seria a serpente senão aquela chamada de diabo branco? Cláudia se apresenta tanto como mentora dos viajantes no tempo como, em diferentes temporalidades, antagonista a eles. E no final nos é revelado que a própria manipulou tanto Adam quanto Eva nos dois mundos para que tudo acontecesse como ela queria.
Indo além nas referências, na bíblia vemos que Adão e Eva têm dois filhos, Caim e Abel. Em algum momento, Caim mata seu irmão e lhe é colocado no rosto um estigma, uma marca que o identifique como um assassino. E Dark esfrega na nossa cara a confirmação que o personagem sem nome (“infinito”) é filho de Jonas e Martha desde a primeira cena da temporada ao caracterizá-lo com uma cicatriz sobre o lábio. E, como descobrimos depois, é ele que perpetua a linhagem que dá origem aos personagens que conhecemos, nos dois mundos. Assim como Caim na bíblia.
Nem tudo é perfeito
Mesmo com um final aclamado pela crítica e pelos fãs, a forma que Dark encerrou sua última temporada deixou algumas pessoas confusas ou insatisfeitas, mas com indagações pertinentes. As três temporadas da série dialogam e explicam o conceito de viagem no tempo de maneira magnífica mas com tantas linhas do tempo, realidades, laços pra acompanhar, é normal que você não tenha processado tudo de uma vez ou tenha sentido falta de maior explicação em algum ponto. Por exemplo, muita gente ficou intrigada com o fato de que Claudia Tiedemann é a responsável por revelar onde está a origem baseado apenas em anos de observação do ciclo. E venhamos e convenhamos, poderiam ao menos ter colocado uma cena dela visitando o terceiro mundo para comprovação. Outro ponto que nos deixa curiosos é: onde está Boris Niewald nesse terceiro mundo, o original? Sabemos que ele nunca deve ter conhecido a Regina e é apenas isso.
Algumas pessoas reclamaram também do excesso de informação nos episódios e de que as vezes isso causava mais confusão do que esclarecimento. É que com tantas pessoas conectadas ao nó, a série teve que amarrar tudo certinho para que no final todas as relações fizessem sentido e mostrassem porque no mundo original algum desses personagens nem nasceram.
Uma possível solução para o amontoado de informações seria fazer uma temporada final com dez episódios ao invés de apenas oito. Além do mais, o mundo original poderia ter sido introduzido mais cedo na narrativa, com inserções de cenas bem curtinhas desde o quarto ou quinto episódio, por exemplo. Cenas essas que deixariam o espectador instigado e teorizando sobre a existência desse tal terceiro mundo. E então, no último episódio seriamos recompensados com a confirmação. Um bom plot twist não necessariamente precisa pegar todos 100% de surpresa, mas sim dar uma virada na trama de maneira coerente, mesmo que já fosse de certa forma esperado.
A triquetra
“Nosso raciocínio é marcado pela dualidade […]. Mas isso está errado. Sem uma terceira dimensão, nada está completo”. Claudia
Apesar dos fatores que citamos anteriormente, o final de Dark não deixa de ser memorável e pertinente, trazendo à tona um elemento que acabamos por esquecer, tal qual Adam e Eva, que existia. Nunca foi sobre binaridade. Nunca foi sobre o símbolo do infinito, que atava os dois mundos. Nunca foi sobre preto e branco, em cima e embaixo. Dark sempre foi sobre a triquetra.
Ao sermos apresentados a um segundo mundo, fomos levados a pensar de forma dual, enxergando Adam e Eva como oponentes, Jonas e Martha como equivalentes, e nos esquecemos, assim como os personagens, de que sempre há um terceiro fator.
Quando Cláudia introduz o terceiro mundo, o mundo origem, nós somos puxados de volta a um dos mais fortes conceitos da série. Há o preto, o branco e o cinza. Há em cima, embaixo e no meio. Há o passado, futuro e presente. E há três Windens. E isso, apesar de ter sido revelado muito de repente, faz todo o sentido.
Dark inclusive brinca com nossa percepção de forma sagaz ao introduzir o quadro de Adão e Eva na Sic Mundus como algo que a primeira vista parece ser sobre dois componentes. Mas se prestarmos atenção, no topo da pintura é possível ver a serpente, no caso, Cláudia. A temporada está sempre nos mostrando que Jonas e Martha são importantes, mas não são os únicos. E é Cláudia que mostra o caminho para a resolução de todo o conflito da série. Adam, Eva e o diabo branco salvam Winden, encerrando de forma tocante toda a dor e sofrimento que os personagens passaram. Eles estão, enfim, no Paraíso.
A mensagem da triquetra é provavelmente a mais importante mensagem da série. Dark não é maniqueísta. Desde o princípio conhecemos personagens repletos de nuance, o que os faz tão críveis e cativantes. Se em algum momento achamos que Jonas é o mocinho, em outro momento o enxergamos como vilão, e nos últimos instantes da série percebemos que ele não era nem um, nem outro, e ao mesmo tempo ambos.
Martha, Jonas, Cláudia, Noah, Ulrich, Egon, Agnes, Katarina, Charlotte, Elizabeth… todos têm seus lados bons e maus apresentados. Mas mais que isso, Dark nos mostra que suas ações não necessariamente são marcadas por essas qualidades binárias. São somente ações calcadas na motivação daqueles determinados personagens, e às vezes nós espectadores concordamos com eles e às vezes discordamos. Somos nós que vemos como dois lados, mas Dark faz questão de nos lembrar que há sempre algo no meio.
Conclusão
A terceira temporada faz jus a todo o universo construído nas duas primeiras temporadas. Se havia algum medo de que a inserção de um outro mundo estragaria a série, foi embora nos primeiros episódios. Baran Bo Odar e Jantje Friese provaram a sua brilhante capacidade de contar histórias e mostraram o quanto é importante ter planejamento para uma série.
Aos fãs, só resta a certeza de que Dark vai deixar saudades. Mas foi ótimo acompanhar a vida desses personagens nos últimos três anos e sempre valerá a pena revisitá-los.
Talvez você tenha ficado triste com o final, talvez não tenha sido tão feliz, ou talvez não tenha sido o que você esperava. Mas aí é que tá: não foi o final que a gente queria, mas o que a gente precisava. E foi o encerramento que Dark merecia.
Muito bom texto. Amei a narração.
E adoro Dark.
Excelente. Vou precisar rever as temporadas pra perceber melhor tantas “amarrações”. Parabéns Vivi