Vida e trajetória do diretor da Cia Baiana de Patifaria
texto Antonio Dilson Neto e Lila Sousa
multimídia Breno Bastos
diagramação Pedro Hassan Palmeira
narração Glaucia Campos
colagem Nadja Anjos
Por mais clichê que pareça, os tempos são difíceis e vivemos um pandemônio. Cenário que se configura caótico principalmente pela perda de direitos civis conquistados décadas atrás, além dos constantes vetos às leis de incentivo à cultura. Talvez por isso o humor ganhe destaque, por ser revolucionário. E, para o primeiro patife da Bahia, as palavras do saudoso Chico Anysio se tornaram um lema:
O humor é irmão da poesia, o humor é quem denuncia, eu não tenho possibilidade de consertar nada, mas eu tenho obrigação de denunciar tudo, o humor é tudo, até engraçado. Não tenho medo de morrer; tenho pena, porque são tantas as ideias para realizar. Sorrir é, e sempre será, o melhor remédio.
Seguindo os ensinamentos de Chico, Lelo Filho, 60, reúne em cada um dos seus personagens um pouco de tudo que tem apreendido da vida. A partir dos conhecimentos que adquiriu nas Ciências Sociais, o que observou e leu contribuiu para desenhar um caminho fundamental no cenário baiano através das suas interpretações e produções. Nem mesmo a ditadura militar ou a pandemia foram capazes de parar a potência artística que é Euclides Valério Filho.
Em cena, o homem sério projeta em seus personagens toda a possibilidade de irreverência que se esconde sob seu jeito tímido na vida fora dos palcos. Com 40 anos de carreira, o ator, diretor, produtor e dramaturgo passeia por papéis e espetáculos marcantes no teatro baiano. “Adoro, adoro, adoro!”, diria Fanta Maria, entre outros bordões que preenchem os palcos em meio às gargalhadas da plateia.
A vida é arte do encontro
A origem do artista dita o tom de sua trajetória. Por isso, o gosto pela arte e ciências humanas ganha uma relação familiar especial. Com a inauguração do SESI Itapagipe na década de 1960, localizado no Caminho de Areia, um de seus tios tentava incentivar o futuro artista a participar de todas as atividades que aconteciam. “Natal, São João, qualquer festividade que tivesse uma apresentação temática, ele tentava me incluir desde muito pequeno”, conta Lelo.
Criado na Cidade Baixa por pais batalhadores, com três irmãs e um irmão, o ator se recorda de muitos tios e tias, primos e primas que marcaram a sua infância. Descreve uma família grande que tinha encontros repletos de muita música e arte. No período de férias escolares, a mãe o mandava para casa de tios no interior. “Eram nove primos nessa família, de várias faixas etárias. Esse tio acabava criando coisas envolvendo a arte com a gente, ele era muito ligado à literatura.”
A conexão com o teatro aconteceu um pouco mais tarde, no segundo grau. Quando interpretou o papel do padre Bernardo, personagem de Dias Gomes em “O Santo Inquérito”, acendeu-se uma chama que ainda permanece acesa. Foi durante esse trabalho para matéria de literatura que também revelou outras habilidades ao planejar a construção do cenário. “Como não tinha recursos, eu lembro que a gente pegou todos os jornais que tínhamos e fomos colando aquelas folhas. Criamos paredes para subdividir a sala de aula em ambientes”, recorda o dramaturgo. Uma visão quase que realista do teatro.
A interpretação, ainda que breve, chamou atenção de um professor que plantou uma semente em seu caminho, ao questioná-lo sobre qual carreira iria seguir. Queria estudar Antropologia e se debruçar sobre as causas indígenas, ser ator não era uma ideia. Aquele professor contribuiu para o futuro do teatro baiano ao dizer: “bom, eu não vou te falar o que deve fazer. Mas você poderia fazer teatro. Você poderia ser ator.”
Em 1980, Lelo passou no vestibular para Ciências Sociais na UFBA, e dentro da universidade estabeleceu contato com pessoas dos cursos de Comunicação, Filosofia e Teatro. Como a voz do professor repercutia internamente, essas novas experiências resultaram em um jeito mais intenso de assistir peças teatrais. Foi a partir desse instante que seu olhar para as artes cênicas mudou.
“O teatro é uma arte de encontros, uma arte coletiva”
lelo filho
Uma virada de vida no segundo ano de faculdade. É assim que o ator descreve sua inscrição no Projeto Rondon, que contava com participação voluntária de estudantes universitários em busca do desenvolvimento e bem-estar de comunidades carentes de todo Brasil. Durante o processo de preparação, logo após ser selecionado, os organizadores do projeto perceberam habilidades no jovem estudante para trabalhar com o teatro infantil. Lelo foi enviado para a Baixada Fluminense, onde propôs e executou trabalhos artísticos. Essa escolha tornou-se irreversível. “O teatro é uma arte de encontros, uma arte coletiva”, Lelo encontrou seu lugar. Entre as peças teatrais e filmes que assistiu, foi construindo seu repertório e bagagem.
No verão de 1982, quando já havia retornado para Salvador, no Teatro Castro Alves, fez o teste para o Curso Livre de Teatro, e passou. Durante os estudos atuou em duas peças, mas em seguida os trabalhos foram esporádicos e junto com outros atores percebeu que não se encaixava nos grupos já existentes. Nesse momento, conheceu o inesquecível Moacir Moreno, com quem fundou a Companhia Baiana de Patifaria, um dos grupos de teatro mais tradicionais do país, que surgiu dessa inquietação. Em seus quase 35 anos de história, a companhia encenou espetáculos de sucesso estrondoso, como “Abafabanca”, “Noviças Rebeldes” e “A Bofetada”, que esteve em cartaz durante 29 anos.
Saudoso, o ator relembra os primeiros ensaios, improvisos e estreias da Companhia que fizeram história. Em janeiro de 1991, arriscaram levar a peça “A Bofetada” para o Rio de Janeiro. A convite, ficaram em cartaz no Teatro Ipanema e durante esse período os integrantes do grupo se dividiram para execução de todas as funções. Um outro momento marcante foi a apresentação de Noviças Rebeldes no circuito Off-Broadway, em Nova York. Sem esquecer do monólogo “Fora da Ordem”, que caracterizou um momento emblemático. Sozinho no palco, estranhou o silêncio da plateia que refletia a um texto denso, repleto de problemáticas sociais como a ditadura, racismo, homofobia, violência, guerras santas e intolerância social.
Arte e resistência
Chico Anysio, Jô Soares e Paulo Gracindo são inspirações para seus personagens quando o assunto é crítica social. Por conta da censura imposta pelo regime militar, a comunicação com o público exigia criatividade para protestar. Em suas falas, o dramaturgo destaca as entrevistas de Chico Anysio, que sempre repetia: “o humor é tudo, até engraçado.” Para Lelo, o humor é revolucionário. “Talvez as pessoas não percebam, mas Fanta Maria, desde que estreou, em 1988, já queria mobilizar a plateia pra ir à reitoria da universidade fazer uma passeata pra melhoria do ensino.”
Quem conhece o artista sabe que seus personagens são únicos e com características marcantes em cada interpretação. Fernando Guerreiro, 60, ator e diretor baiano, concebeu a ideia de Fanta Maria, um dos personagens mais marcantes do teatro baiano. Deu “pitacos”, criticou e lapidou, mas Lelo foi fundamental para construção da personagem. “Se fosse outro ator, não seria essa Fanta, seria outra Fanta completamente diferente”, explica Fernando.
“Não me interessa o Brasil melhor, Salvador melhor ou a Bahia melhor, me interessa o mundo melhor”
lelo filho
Através do humor e do drama, busca abrir “janelinhas” na cabeça das pessoas, para que enxerguem além de suas realidades e lutem por uma vida mais justa. “Não me interessa o Brasil melhor, Salvador melhor ou a Bahia melhor, me interessa o mundo melhor”, diz. Com a família envolvida em movimentos estudantis em defesa da Amazônia, viu tios serem perseguidos durante a ditadura. “Minha mãe morria de medo”, conta o diretor ao lembrar que viveu a época da faculdade de forma intensa, correndo da polícia e participando dos congressos da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Tendo vivido momentos históricos de repressões, o dramaturgo não foge à luta por igualdade e mais direitos. Para o artista, o sonho de todo ator é que seu trabalho seja o mais visto possível. Atuar é, portanto, uma plataforma de comunicação para o mundo. Lelo acredita que nasce aí a responsabilidade social e política de quem trabalha com as artes. Não dá para estar nesse lugar sem levantar debates e propor mudanças. Seja na escolha dos textos, na proposição das performances ou na atualização dos espetáculos antigos, o ator não pode fugir do que está na essência da profissão: comunicar.
Utilizando o humor como principal instrumento, o ator vem, ao longo de seus quase 40 anos de carreira no teatro, discutindo temas atuais e de relevância social. Quem já assistiu “A Bofetada” deve lembrar de Fanta Maria reclamando do preço das frutas ou de Pandora eternamente insatisfeita com o baixo salário de professora e a qualidade do ensino. Além de gerar identificação imediata com o público que lida com essas problemáticas diariamente, a atualização constante do texto permite que o debate esteja sempre aceso, mesmo após o fim dos espetáculos.
Com o fechamento dos teatros e espaços culturais no auge da pandemia, a vida de quem se dedica exclusivamente à arte tornou-se incerta. Além da distância do público, parte fundamental do trabalho do ator, Lelo viu de perto as demandas financeiras não deixarem de existir. Era preciso reinventar-se, pensar novos jeitos de contar as mesmas histórias. Como diretor e membro da Cia Baiana, buscou com o grupo formas de sobreviver neste novo cenário. Diante das impossibilidades, em dezembro de 2021 e às vésperas dos 35 anos de história, a companhia precisou anunciar o encerramento das atividades. Sendo o teatro uma arte coletiva, Fernando Guerreiro, junto à Fundação Gregório de Matos (FGM), se propôs a ajudar o grupo, que se tornou destaque na programação de 2022 do projeto Diversão de Verão.
Mas, como bom artista que é, tendo sobrevivido à ditadura militar e outros momentos duros em sua história, não desiste. Segue pensando, incansável, estratégias para manter acesa a chama da cultura. Aos poucos, Lelo vê a vida se ajustando, em novas cores e formatos, um dia de cada vez. O certo é que o menino do Caminho de Areia, que tornou-se um dos maiores nomes do teatro baiano, segue fazendo o que faz de melhor: arte.
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