A gastronomia dos povos originários como representação da memória, ancestralidade e pertencimento.
texto Luiz Felipe Sena e Mariana Passos
multimídia Lucas Matutino
diagramação Pedro Hassan Palmeira
narração Lucas Matutino
colagem Nadja Anjos
Peixe na folha de patioba, farinha de puba, pisada de murici, pirão dos praiás, são muitos os pratos indígenas que pertencem à raíz da culinária brasileira. Primeiros habitantes da então chamada Pindorama, palavra de origem tupi, que significa “país ou região das palmeiras”, os nativos do Brasil se alimentavam da caça, pesca e frutos, partilhados com todos da comunidade. Ao longo dos anos, as aldeias criaram um laço existente entre os alimentos e seus antepassados, como uma maneira de reafirmar pertencimento aos territórios e adquirir conhecimento.
Na Bahia, grupos indígenas como Pataxó, situados no extremo sul, e Pankararé, que residem em Santo Amaro, têm diferenças específicas quanto aos costumes, rituais e festividades. Mas em qualquer ocasião, até mesmo em dias corriqueiros, os alimentos típicos estão presentes, para nutrir e promover momentos de união.
Da terra que vivemos
De acordo com Aktxawã, 22, estudante de gastronomia na Universidade Federal da Bahia (UFBA), nativo da aldeia Pataxó, o peixe na folha de patioba (palmeira) é o prato mais consumido em sua aldeia. Preparado com qualquer fruto do mar, no princípio, a forma mais usual de temperá-lo era usando água e sal, mas, atualmente, alguns indígenas acrescentaram o uso de temperos como cebola e tomate. Durante o processo de cozimento, a folha solta um óleo que dá mais sabor ao peixe e é servido com farinha de puba (mandioca) e kawí.
Na aldeia, a farinha de puba é o elemento base para produzir o beiju, o kawí e o bolo de fubá. No processo das receitas, é utilizada a mandioca brava, que é utilizada para fazer a farinha. A produção é um dos momentos de coletividade que envolve toda família. Segundo o estudante de gastronomia, o primeiro passo é a espera da colheita do tubérculo, depois a mandioca é ralada e torrada. O processo de torrar deve ser feito em fogo médio e exige ajuda de uma pessoa com maior aptidão física, por causa da grande quantidade de massa colocada na farinheira, além da necessidade de rapidez no manejo para não empelotar.
O líquido que sobra da massa é usado para produzir o kawí. Antes, para as confraternizações havia ritual específico de produção da bebida: Uma mulher indígena ficava isolada por um mês na própria casa ou oca, não podia consumir qualquer tipo de alimento e nem ter relações sexuais. Depois disso, mastigava a mandioca, cuspia num recipiente e a raíz ficava no processo de fermentação por no máximo uma semana, em seguida misturava-se com o caldo da cana-de-açúcar. Hoje, os pataxós encontraram maneiras mais simples de produzir a bebida, principalmente para festividades como o casamento, no qual os noivos trocam o cocar e o kawí na presença do cacique, que consagra a união, afirma Aktxawã.
Na aldeia Pankararé, a alimentação tem grande diversidade de frutas nativas como caju, umbu, murici e também de caças. Patricia Krin Si Atikum, 43, sub-coordenadora geral do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (MUPOIBA) menciona que o milho, o feijão e a mandioca são os alimentos mais usados na culinária cotidiana da comunidade. Por causa da terra mais árida e à escassez de uma fonte de água próxima, esses são os alimentos que mais se adequam à terra.
Em especial, o murici, um fruto pequeno e amarelo com sabor agridoce, forte e ligeiramente oleoso, é utilizado para fazer pisada do murici, uma farofa produzida com farinha e açúcar, que se diferencia nos sabores e nas texturas a depender do modo de preparo de quem cozinha. Outro alimento muito consumido é o beiju, feito nas casas de farinha a partir da fécula da mandioca, conhecida popularmente como polvilho doce ou goma.
Da partilha do comer e do contar
Patricia Krin Si Atikum, relata que há pessoas responsáveis pela comida preparada para todos. “A comida no geral tem toda uma ciência e responsabilidade. Aquilo que está no fogo tem que dar para todos. Sem medidores, no olhômetro, os responsáveis por fazer a comida preparam a quantidade certa para que haja esse compartilhamento e todos os outros conseguem identificar quem cozinhou a partir dos temperos”, diz.
A sub-coordenadora acredita no fortalecimento das novas gerações por meio dos saberes, transmitidos a partir da ritualidade para perpetuação da organização, do território, festejos e rituais. Acredita também no legado das lutas dos mais velhos para continuidade da terra, da comunidade e dos seus direitos que foram assegurados com o Art. 231, inciso 2, da Constituição Federal do Brasil de 1988, no qual consta que as terras ocupadas pelos indígenas: “destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.”
“é reconhecido que vivendo esses valores, a memória ancestral é honrada, mantendo acesa a chama da origem na vida comunitária”
florêncio almeida
Para Florêncio Almeida, 58, indígena do povo Maytapu e professor de Antropologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), o cordão umbilical estabelecido com os antepassados dos indígenas por meio das histórias contadas na comunidade, reproduz hábitos, práticas e receitas. Esses ensinamentos foram adotados em seu cotidiano como “modos de se comportar, respeitar e cuidar dos mais velhos, porque é reconhecido que vivendo esses valores, honramos a memória ancestral, mantendo acesa a chama da origem na vida comunitária.”
O estudante de gastronomia Aktxawã diz que os alimentos estão associados a algumas de suas memórias afetivas. Quando criança, os anciãos reuniam outras pessoas da comunidade para contar histórias de resistência e luta, vivida por eles e seus antepassados, momento sempre acompanhado de peixe assado e kawí, bebida típica da comunidade.
“comer é um ato essencialmente coletivo”
florêncio almeida
Segundo Florêncio Almeida, comer é um dos atos mais prazerosos da essência humana e envolve questões afetivas atreladas ao pertencimento. “Os grupos indígenas desenvolveram comidas e maneiras de comer de acordo com sua cultura. Quando os integrantes repetem essas práticas, acionam a memória individual, mas também coletiva, associada àquele território. Comer é reforçar a identidade de um povo. Comer é um ato essencialmente coletivo”, afirma.
Da força da natureza
O ritual dos praiás é um dos mais importantes para a aldeia Pankararé, pois é uma forma de conexão aos Encantados, espíritos da natureza e forças ancestrais, que através das tradições, ajudam, orientam e unem a comunidade. “É necessário para a sobrevivência da minha comunidade viver, comer, estar e fazer as obrigações do terreiro. É o momento de fé, de compartilhamento, de comunhão que alimentam a nossa alma e espírito”, pontua Patrícia.
Os Encantados são representados fisicamente pelos praiás, homens que usam uma veste ritual. De acordo com a sub-coordenadora, a vestimenta é composta por duas partes: a máscara ou casaco, chamado Tanam, que tem o objetivo de preservar a identidade do dançador e a saia, feitos de fibra de croá. Os homens seguem os preceitos religiosos ao vesti-la e se tornam o próprio Encantado.
Anailda Maria Nascimento, 46, cozinheira da aldeia Pankararé há mais de 30 anos, descreve que o pirão dos praiás, comida presente no ritual, é produzido a partir da carne do bode e do pirão, feito com farinha de mandioca, alho, pimenta do reino e sal. Há também um procedimento de validação após o preparo, do qual ela é responsável desde o início: “ao final do processo de fazer o pirão, ele é dividido em quatro pequenos tachos, para os praiás, as crianças, as mulheres e outro para os homens do terreiro”, conta.
O consumo do prato é feito através do compartilhamento, onde a carne e o pirão são colocados no centro dos grupos. “Fazemos o pirão e comemos com os dedos, mesmo sendo quente. Antes de comer a gente reza, depois de comer a gente reza também. Entrega para a natureza o que resta e oferece a nossa gratidão àquela pessoa que ofereceu o pirão, pedindo força e proteção para ela”, explica Patrícia.
Para Florêncio Almeida, os grupos indígenas desenvolveram pratos e hábitos alimentares de acordo com práticas ancestrais. A memória afetiva, nesse sentido, é mantida viva através da perpetuação desses costumes por meio dos seus descendentes. “No contexto indígena, as pessoas não comem sozinhas, elas partilham o alimento em casa, com a família reunida. Elas também comem em grandes festas.”
“desde pequena, eu via como o ritual e a comida era feita, e agora, já mais velha, faço o pirão como forma de continuar a história do meu povo”
anailda maria
Anailda explica que o ritual dos praiás é uma tradição muito antiga, de quando o território de Santo Amaro foi ocupado pela aldeia Pankararé. “Fazemos o pirão há muito tempo, eu não era nascida. Continuamos a fazer porque temos fé nos Encantados e acreditamos que nossos pedidos podem ser atendidos. Desde pequena eu via como o ritual e a comida eram feitos, e agora, já mais velha, faço o pirão como forma de continuar a história do meu povo.”
Nas duas comunidades, os alimentos estão envoltos por elementos simbólicos de ancestralidade e fé. “Comer é relembrar a identidade de um povo que vive naquele local”, afirma o professor Florêncio Almeida. É assim que as aldeias indígenas encontram no comer uma forma de reafirmar a conquista de seu território em momentos carregados de espiritualidade e afeto.
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