A mandioca como protagonista na cultura e na cozinha baiana
texto Breno Bastos e Luiza Gonçalves
multimídia Isabelle Carvalho
diagramação José Ivan
narração Breno Bastos
colagem Stella Ribeiro
O conceito de planta-civilização, proposto pelo historiador francês Fernand Braudel, refere-se à classificação das espécies vegetais que serviram de alicerce para o desenvolvimento de populações humanas ao redor do mundo. É o caso do trigo na formação dos países da Europa ocidental, do arroz para países asiáticos como China e Japão e do milho para as civilizações mesoamericanas. Ao longo da história brasileira, uma raiz tem desempenhado esse papel fundamental: a mandioca. Não à toa, o antropólogo Luís da Câmara Cascudo, um dos principais pesquisadores da cultura alimentar do país, dedicou a ela um capítulo de sua maior obra, “A História da Alimentação no Brasil”, em que a saudava como a rainha nacional.
Nativa do território brasileiro, com o passar dos anos a mandioca se consolidou como marco histórico, econômico e cultural de norte a sul do país. Na Bahia, especificamente, assumiu protagonismo culinário na expressão de identidade e memória afetiva, firmando-se como parte tanto das refeições mais corriqueiras como também do cardápio de ocasiões festivas. Especialmente na forma de farinha, a mandioca compõe o prato de grande parte das famílias do estado. O tempero do feijão ou a receita da moqueca podem variar, mas uma coisa é quase certa: ela estará lá para acompanhar, engrossar e sustentar.
Raiz primeira
A presença da mandioca por aqui foi registrada pela primeira vez na carta de Pero Vaz de Caminha, em 1500. Relatando suas primeiras impressões da costa brasileira, o escrivão destaca que: “eles (os indígenas) não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.”
Mas o que não foi registrado nessa observação foi o fato que, na verdade, as populações indígenas já possuíam o domínio das técnicas de cultivo e preparo desse alimento. Originária do território amazônico, tendo seu centro de dispersão entre as regiões Centro-Oeste e Norte, a mandioca foi disseminada por grande parte do território brasileiro pela ação desses grupos, que conheceram e valorizaram suas variedades. Ao longo desse processo foram criados diversos utensílios para transformação da raiz nos seus primeiros subprodutos.
Joselito Motta, 74, engenheiro agrônomo especialista em mandioca e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), descreve um pouco do processo: “eles ralavam a mandioca, às vezes com um ralador de madeira com dente de macaco ou jacaré, às vezes com conchas, e depois jogavam no tipiti, um trançado de palha comprido. Dali saia o líquido, chamado manipueira, e se formava uma massa, que era esfarelada, passada num arupemba, uma peneira, e levada ao fogo. Pronto, tinha o primeiro produto: farinha de mandioca.”
Farinha essa que teve um papel muito importante na constituição do território nacional tal qual o conhecemos atualmente, sendo o principal insumo e mantimento durante a expansão da colonização para o interior do Brasil. Durante esse mesmo período, tornou-se um dos maiores produtos de exportação do reino de Portugal. O número de casas de farinha nas fazendas multiplicou-se e as plantações de mandioca passaram a ser riquezas estimadas pela elite. Tanto que na Constituição de 1824, batizada de Constituição da Mandioca, o voto, ainda censitário, era permitido apenas para donos de ao menos 150 alqueires de farinha. Cobiçada pelo seu valor comercial e nutricional, a cultura de mandioca logo ultrapassou as fronteiras territoriais do Brasil e foi implantada em outros continentes, em especial na África e na Ásia, sendo atualmente produzida em mais de 80 países.
Lá no fundo do quintal tem um pé de macaxeira
Existem algumas variedades de mandioca e maneiras diversas de se valer de cada uma delas. Em termos mais amplos, dois tipos da planta são reconhecidos, de acordo com a concentração de compostos cianogênicos em suas raízes. A mandioca mansa, também conhecida como aipim ou macaxeira, possui baixo teor desses compostos tóxicos, enquanto na variedade brava eles são encontrados em maior concentração.
Se ingeridas em altas quantidades, essas substâncias podem ser letais, mas no processo de produção de farinhas são rapidamente volatilizadas. Por isso, a variedade brava costuma ser utilizada para esse fim. Além disso, outros de seus preparos de destaque também consideram a necessidade de reduzir a sua toxicidade, como no caso da maniçoba. Muito consumido nos estados do Pará e da Bahia, esse prato, conhecido também como “feijoada paraense”, pode chegar a levar dias para seu preparo.
A chef Angélica Moreira, 62, cozinheira à frente do restaurante Ajeum da Diáspora, em Salvador, diz que o prato é um dos destaques do seu cardápio. Ela prefere comprar a folha verde na feira e realizar por conta própria a desintoxicação, que requer diversas etapas de lavagem e cozimento da maniva, como é conhecida a folha da mandioca. “É um processo longo e bem demorado, mas também quando acaba eu sou a primeira a comer”, brinca.
Já a raiz possibilita a obtenção de diversos subprodutos. De seu caldo se produz o tucupi, a tiquira (destilado de alto teor alcóolico) e os polvilhos doce e azedo. Da massa fibrosa se produz as farinhas tradicionais e, se fermentadas, de carimã (também conhecida como puba). Cada um desses subprodutos dá origem a uma profusão de sabores, texturas e possibilidades gastronômicas.
Olha a farinha da boa!
Todos os subprodutos “mandioqueiros” têm seu destaque, mas quando citamos a raiz um deles vem logo à mente: a farinha. De Cruzeiro do Sul, no Acre, ao litoral catarinense ela compõe o prato de muitos brasileiros. Mas nem toda farinha é igual, como ressalta a pesquisadora da Universidade Federal da Bahia e mestra em Nutrição, Lara Pena, 29: “a farinha aparece de norte a sul com uma variedade muito grande, porque temos uma diversidade de povos indígenas no Brasil. Além disso, essas populações fizeram trocas com outras culturas. Por exemplo, no Sul a farinha fina é favorita, por conta da influência italiana.”
“por isso que eu falo: a melhor farinha do Brasil são várias”
joselito motta
Dependendo da região, há preferência por farinhas fermentadas e mais grossas, como em Uarini, no Amazonas; mais polvilhadas, no estado de Santa Catarina; ou mais “beijuzadas”, no Mato Grosso. Para o pesquisador Joselito Motta, essas preferências regionais são justificadas, pois “no plano da gastronomia nós temos uma memória afetiva. Você pode pensar ‘ah, eu tenho minha favorita’, mas se você começa a se acostumar com determinado tipo, com suas características, começa a achá-lo também interessante. Por isso que eu falo: a melhor farinha do Brasil são várias.”
Se preferência é algo regional, na Bahia muitas pessoas, em especial na região do Recôncavo, parecem ter escolhido sua favorita: a farinha de Copioba. Nomeada dessa forma pela primeira vez nos anos 1930, tem origem na região do Vale da Copioba, que abrange os municípios de Nazaré, São Felipe e Maragojipe.
“há orgulho desse trabalho familiar, porque é uma farinha que fala da história da cidade, da história pessoal”
lara pena
Caracterizada pela sua granulometria fina e alta crocância, fez sua fama nas feiras e mercados dos arredores de Salvador, onde também é conhecida como farinha “da boa” ou “especial”. Para atingir a qualidade ideal, os produtores utilizam menos massa, com tempo de torra lento e forno controlado. É preciso “sentir, olhar, virar, saber-fazer. É tradição na própria comunidade, e o pessoal costumava comprar com produtores reconhecidos. Há orgulho desse trabalho familiar, porque é uma farinha que fala da história da cidade, da história pessoal”, aponta a pesquisadora Lara Pena.
Comprei um quilo de farinha pra fazer farofa
“quem reina aqui é a mandioca. Não tem jeito, ela é fundamental na minha cozinha”
leila carreiro
Presente nas refeições caseiras desde a infância, não é de surpreender que a farinha seja parte da identidade gastronômica de vários cozinheiros e cozinheiras profissionais. A chef Leila Carreiro, 52, proprietária do restaurante Dona Mariquita, declara sem mais: “quem reina aqui é a mandioca. Não tem jeito, ela é fundamental na minha cozinha.”
Leila utiliza farinha na maioria de seus pratos, principalmente para preparo de farofas e em criações autorais, como a Poqueca, uma espécie de pamonha feita com caldo de moqueca e farinha, cozida na folha de bananeira. Uma de suas especialidades é o pirão, tanto que essa preparação serviu de base para a conceituação de seu mais novo restaurante, o Dona do Pirão. “Aqui em Salvador muita gente gosta de pirão, tem esse costume de comer papa. As pessoas mais antigas têm esse hábito. Elas saem do peito da mãe e já substituem por mingau, por engrossante. Ficam acostumadas e querem tudo com pirão, com creme. Lá no Dona Mariquita eu via isso. Então, achei que estava na hora de ter aqui em Salvador uma casa de pirão. Veja que toda comida com pirão vai bem. Lá no restaurante temos rabada com pirão, mocotó com pirão, pirão de sururu.”
Angélica Moreira também é grande entusiasta da mistura entre farinha e caldo, por imprimir uma identidade “bem baiana, bem nossa” nos pratos. Ela se diz uma “mulher do pirão”. Além disso, as farofas ocupam papel crucial no seu restaurante, variando nas refeições de acordo com a preparação ou proteína. O prato também é muito requisitado em sua casa: “tenho três filhas farofeiras, então sempre tem.”
A cozinheira é ekedi no Ilê Axé Opô Afonjá e chama atenção para o uso da farinha na religião, traço muito importante da identidade afro-baiana. “Começa pra Exu, tem que fazer as farofas de azeite, de água, de mel e de cachaça. Ele é o primeiro que come, o primeiro a ser despachado, o primeiro a ser saudado. E quem saúda ele? A mandioca. A farinha está dentro da religião em vários aspectos. A mandioca é parte da cozinha do axé.”
Ambas as chefs, quando perguntadas sobre uma receita com mandioca que guardam na memória afetiva, não disfarçaram a alegria e emoção ao relembrar vivências marcantes de suas infâncias, quando a mandioca era a cura da doença, amparo da fome e afago no coração:
Angélica: “Minha avó, quando a gente estava doente no interior, fazia uma coisa chamada Engana Besta. Era como se fosse uma panqueca, um bolo… não sei, lembro do sabor mas não lembro o que era. Ela pegava essa farinha bem fina e passava na peneira. Era uma puba assim molhadinha e ali ela botava um pouco de açúcar e um pouco de leite. Eu sempre digo que era a melhor parte da doença. É chamada de Engana Besta, por que você pensava que era uma coisa, mas era outra.”
Leila: “Tem uma coisa que eu adoro. Não tem no meu restaurante, nem todo mundo gosta, mas eu adoro. Se chama mingau de cachorro. Minha mãe servia quando a gente tava meio gripado, adoentado. Ela acreditava que esse mingau ia fortalecer. Às vezes ela servia como lanche da tarde porque não tinha outra comida pra merenda, então isso é muito afetivo. Para que fosse mais atrativa, ela colocava doce de goiaba. O mingau de cachorro quando a gente estava doente era só água, alho e farinha. Mas quando ela colocava doce de goiaba, virava o mingau do doce, que enganava qualquer criança.”
Saudação à mandioca
Embora sempre presente ao longo da história do Brasil, a farinha de mandioca nem sempre foi bem-vista por parte da população, como revela a pesquisadora Lara Pena: “no início havia certa vergonha. Não se comia farinha pura na frente das visitas. Ela aparecia apenas como farofa ou em outras preparações, quando era considerada algo mais sofisticado.”
Foi apenas recentemente que a mandioca começou a ser redescoberta e ganhou notoriedade como patrimônio alimentar. Um dos principais motivos para o aumento de sua procura é a possibilidade de substituir o trigo em diversas receitas, até mesmo na panificação. Além de criar versões de receitas acessíveis para pessoas que não consomem glúten, essa substituição também pode ser vantajosa no quesito econômico, já que parte do trigo importado seria substituído pela produção nacional de mandioca.
O redescobrimento da mandioca não para no âmbito nacional. No ano de 2013, a planta foi eleita como alimento do século pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e sua produção tem se intensificado nos outros continentes, especialmente na África e na Ásia. Segundo a FAO, em 2016 os maiores países produtores da planta eram Nigéria, Tailândia, Indonésia, Brasil e Gana.
No plano gastronômico, a farinha de mandioca tem chamado cada vez mais a atenção de chefs por conta de dois efeitos físicos principais: a sua capacidade de gelatinização e a crocância. No universo das farinhas, abre-se um grande leque de possibilidades gustativas. Pensando nisso, Lara Pena defende que para utilizá-las da melhor maneira, é preciso lembrar que: “cozinha não é só ingrediente. É um conjunto de técnicas, estratégias alimentares, modos de produção e preparação ”. Considerada pela chef Angélica como “o sustentáculo da gastronomia brasileira”, a mandioca, raiz e rainha do Brasil, tem tudo para acrescentar sua história, sustância e versatilidade às cozinhas do mundo.
Para aprofundar mais nessa temática, separamos algumas receitas simples com os subprodutos da mandioca:
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