Com quantos caracteres se faz literatura? Conheça a produção de autores de micronarrativas nas mídias sociais
texto Rute Souza Cruz e Kelvin Giovanni
diagramação Luiza Gonçalves
multimídia Kelvin Giovanni
narração Rute Souza Cruz
colagem Isadora Sarno
Não é segredo para ninguém que as mídias sociais tem como objetivo conectar pessoas. Mas quando alguém diz que está numa rede social, no que você pensa? Muitas coisas devem vir à mente, mas estar em contato com seu autor favorito e suas publicações, provavelmente não é a primeira. Nesta edição, a Fraude conversou com @oliviapilar, @tantotupiassu e a dupla do @microcontando, escritores que utilizam as redes sociais como espaço de criação, difusão e fruição literária e que, ao notarem o potencial de troca e interação dessas plataformas, transformaram suas publicações numa experiência única de escrita de contos na internet.
Caso não saiba, o conto é um estilo narrativo curto, de poucos personagens, que desenvolve o enredo utilizando-se de um conflito central. Se destoa do romance por não ser de grande extensão e por usar o mínimo de detalhes necessários para criar o clímax, momento de maior tensão na narrativa. É possível encontrar esse gênero textual nas obras de Machado de Assis, Conceição Evaristo e Lygia Fagundes Telles, alguns dos mais reconhecidos contistas brasileiros. Quer saber mais? Vem com a gente!
“ precisa ter fôlego e mexer com as palavras de forma certeira, para deixar o leitor amarrado e, ao final, surpreso”
fernando gurjão
Quantas narrativas cabem em 280 caracteres? À primeira vista, pode parecer muito pouco, mas Fernando Gurjão, 42, prova que não. O advogado paraense cresceu entre a biblioteca dos pais e os corredores de livrarias. “Talvez eu sempre tenha escrito, mas foi a partir de 2010 que passei a escrever de forma mais organizada e focada”, conta. O esforço valeu à pena: em 2016 inscreveu seus contos de fantasia e horror no Prêmio Literário da Fundação Cultural do Pará. Ganhou na categoria Contos e teve um livro publicado, “Ladir Vai ao Parque e Outras Histórias”, hoje esgotado.
Em 2018, Fernando começou a escrever no Twitter, rede social cuja principal característica é a quantidade limitada de caracteres por tweet. Lá, ele é conhecido como @tantotupiassu, um cavalo que aprendeu a escrever e adora contar histórias. O pseudônimo é uma junção de Tanto, seu apelido de infância dado pelo irmão, e Tupiassu, nome da família de sua mãe. Seus textos fazem tanto sucesso que o autor já alcançou mais de 98 mil seguidores.
“Há de tudo. Textos românticos, existencialistas, textos sobre filhos e relações diversas. Crítica social e muito texto histórico”, explica. Mas foi com os contos que @tantotupiassu ficou conhecido. Fernando os escreve porque sempre gostou dessa forma de narrar, “em que você precisa ter fôlego e mexer com as palavras de forma certeira, para deixar o leitor amarrado e, ao final, surpreso”.
Foi ao sentir necessidade de se adaptar às características do Twitter, que o autor começou a escrever minicontos. Estes são narrativas ainda menores que os contos, com quantidade reduzida de caracteres e pouca descrição. Na correria do dia a dia, quanto mais breve e direta for a informação, maior a probabilidade de consumo. São escritos desde o século XX, mas foi na internet que esse gênero diversificou suas possibilidades e se tornou altamente difundido. As obras literárias no Twitter vêm ganhando tanto destaque que foi criado o termo “twitteratura” para se referir a essas produções. Essas obras buscam ampliar a possibilidade de sentidos a partir da redução de descrições e proporcionam interatividade em tempo real com os leitores.
Nem sempre um relato inteiro cabe nos 280 caracteres de um único tweet. Uma alternativa utilizada por Fernando para driblar essa limitação são as threads, vários tweets conectados em sequência para contar uma história. Pode parecer complicado, mas não é. Para postar uma thread, basta publicar um tweet original e, em seguida, ir clicando no botão “+” para agregar novos blocos e adicionar outros comentários na ordem desejada. Agora é só trabalhar no textão. Para finalizar, basta clicar em “Tweetar tudo”. Simples, não? Ficou curioso? Segue o fio!
Lembro bem de quando entrei no táxi e, após cumprimentar o motorista, pedir:
— TANTO (@tantotupiassu) 9 de agosto de 2019
– O senhor me leva em Ipanema, na Rua Joana Angêlica, 97, um quarteirão antes da Lagoa.
– Sim senhor, vamos lá.
Apesar do Prêmio Literário, Fernando não tomou iniciativa para publicar livros. “Por enquanto, mesmo tendo surgido conversas, não me sinto bem preparado para publicar algo novo – ainda mais nesse tempo de pandemia e estranhamento.” Fernando acredita que as redes sociais permitem a existência de um mundo paralelo ao mercado editorial. “Houve texto meu que alcançou quase 3 milhões de pessoas no Twitter. Talvez, se a gente transportasse esses números para o mercado editorial, tivéssemos um sucesso de venda, mas, fato, as editoras parecem estar apartadas desse mundo”.
Fernando afirma não conseguir escrever nada de forma mecânica e planejada. Apenas o que o emociona. “Gosto mesmo é de escrever sobre visagens e assombrações, e sobre crimes misteriosos. Sempre um pé no mistério, no oculto e no que faz a pele arrepiar. Mas acho que cada um tira um olhar diferente do que escrevo. Talvez seja o caso de passar lá e dar uma lida, e, quem sabe, criar sua própria opinião.”
A literatura sempre esteve presente na vida de Olívia, 29. Interessada por leitura e escrita, acreditava que seu caminho fosse o jornalismo. Não à toa, se formou na área pela PUC-MG e é mestranda em Comunicação pela UFMG. “Alguns anos depois, em 2016, comecei a descobrir que meu caminho na verdade era outro: a escrita literária”, afirma. Hoje, com quatro contos publicados, “Entre estantes”, “Dia de domingo”, “Pétala” e “Tempo ao tempo”, Olívia afirma que escreve sobre garotas negras que amam outras garotas. “Acho que é uma forma que eu encontrei de falar pro mundo que nós, mulheres negras, podemos amar e devemos ser amadas.”
Em 2017, fez seu primeiro conto. Antes dele, escrevia fanfics no Wattpad, rede social onde os amantes da literatura se reúnem para escrever e divulgar textos autorais. Na plataforma, os usuários também podem seguir, interagir e acompanhar seus escritores favoritos. É possível encontrá-la por oliviapilar_, perfil onde expõe suas obras. Seu primeiro romance, “Dois a dois”, já conta com mais de 57 mil leituras, e seus leitores acompanham e interagem em sua coleção “Minicontos”, um conjunto de histórias curtas e independentes.
Se tornar uma escritora só foi possível por meio da superação das suas inseguranças enquanto uma mulher negra. “É difícil justificar por que comecei a escrever. Na época me pareceu certo. Não sei, não consigo dizer exatamente o porquê de ter começado. Acho que era a parte de mim que faltava para eu me entender”, diz Olívia.
Para ela, as mídias sociais trazem uma proximidade entre escritor e leitor e retira o pedestal em que esses artistas são colocados. Ser vista na posição de apenas uma pessoa normal que escreve histórias é incrível, conta. “Entretanto, acho que isso ainda pode ser um pouco uma interação de nicho, já que escrevo para o público jovem.”
“num ambiente bastante povoado de mentiras, propagação de ódio e discriminação, queremos ser um caminho inverso através da literatura”
adriano salvi
Foi após uma parceria interrompida que Marcio conheceu Adriano, e juntos deram início ao Microcontando. “Começamos os dois a depurar o estilo para embarcar na rapidez e sagacidade do microconto”, afirmam. O @microcontando é um coletivo de escritores encabeçado por Marcio Markendorf, 39, professor no curso de Cinema e na pós-graduação em Literatura da UFSC,e Adriano Salvi, 42, também professor, mediador de leitura e escritor.
Marcio conta que começou a escrever quando criança, pois se divertia contando histórias. Aos nove anos, numa entrevista para o suplemento infantil do jornal da cidade que participava, quando questionado sobre o que queria ser quando crescer, respondeu: poeta ou pintor. Coincidência ou não, a poesia foi seu primeiro campo de trabalho. “Hoje não sou nem poeta nem pintor, mas vale lembrar o aforismo de Horácio: ut pictura poesis (como a poesia a pintura). Acho que a gente escreve porque desenha em palavras a paisagem”, explica.
Adriano também já escrevia e tinha um blog. Sua razão para escrever em redes sociais está no ambiente mais democrático e na possibilidade de ser um meio de divulgação da literatura, compartilhando arte e cultura com os internautas. “Num ambiente bastante povoado de mentiras, propagação de ódio e discriminação, queremos ser um caminho inverso através da literatura”, afirma. Desta forma, iniciou a parceria com o colega, e escolheram o microconto como objeto de pesquisa e trabalho. Segundo Marcio, “o microconto é uma forma bem contemporânea e moderna, afeita à dinâmica do nosso mundo social”.
Atualmente, Marcio tem contos publicados em coletâneas e uma novela. Por que então aderir à rede social? Ele nos conta que as facilidades das redes estão na autopublicação e a interatividade imediata com os leitores, diferente do universo editorial. “Nas redes sociais você publica e tem uma pronta resposta, sabe logo se estão gostando ou não. Sem contar que escritores(as) que publicam nas redes tendem a ser mais solidários(as) entre si, lendo uns aos outros.”
Mas nem tudo são flores. Marcio conta que a literatura ainda é um lugar institucionalizado e o livro impresso ainda confere uma aura de consagração ao autor. “Claro que a vida literária mudou muito a partir do impacto da internet, o florescimento dos blogs, as possibilidades de autopublicação em plataformas, a fertilidade das editoras independentes. No entanto, as redes sociais dificilmente produzem o mesmo tipo de consagração”, afirma. Ele explica que quando escrevia arduamente e publicava em seu blog, as pessoas não o viam como escritor, mas como blogueiro. Em sua opinião, há um olhar classista e ritualista na validação do escritor com um processo de reconhecimento e aceitação que vem da academia e da crítica ainda hoje.
Para publicar seus textos, optaram pelo Instagram, rede social que ocupa o quarto lugar entre as mais utilizadas no Brasil, segundo dados do relatório Digital in 2019. O Instagram é uma rede social com apelo estético e visual por natureza, e, semelhante ao Twitter, há uma limitação de caracteres por postagem.
Diante dessa valorização da imagem você pode estar se perguntando: o que levou um microcoletivo literário a essa rede? Segundo Adriano, “a micronarrativa estabelece um contato direto com o público leitor graças à possibilidade do diálogo do texto com a imagem na representação da mensagem; à sua concisão, a objetividade e efeito estético que provoca no leitor”. E funcionou. Contam que ao migrarem do blog para o Instagram, saíram de menos de uma centena de leitores para cerca de três mil. Além disso, suas histórias já circulam até em materiais didáticos.
Há escritores que comparam suas obras às de outros autores na tentativa de descrever seu estilo, mas não é o caso de Adriano. “Prefiro deixar que os leitores descrevam os meus textos, quanto a mim cabe escrevê-los”, afirma.
Do impresso para a rede
A venda de livros impressos está em queda. Segundo dados divulgados em 2019 pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, a indústria editorial encolheu sua tiragem de livros em 11% em um ano. Esse índice deve cair ainda mais se o projeto de lei da Reforma Tributária que pretende retomar a taxação sobre os livros for aprovado, tornando mais alto o valor das obras. Mas ainda há esperança. Segundo pesquisa recente do Painel do Varejo de Livros no Brasil, com dados apurados pela Nielsen e divulgados pelo Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL), no primeiro semestre de 2020, a venda dos e-books aumentaram.
Pelo visto, o futuro literário também está online e nas mídias sociais. Incentivar autores como Olívia, Fernando, Marcio e Adriano, que pensam e produzem para essa lógica dinâmica das redes sociais, é, antes de tudo, popularizar a literatura e suas narrativas em formatos diversos, promovendo uma cultura participativa com o leitor e uma democratização da leitura. Afinal, esse universo literário está bem aqui, a um clique de distância.
Parabéns pelo texto, pela pesquisa e por divulgar o trabalho maravilhoso e instigante desses escritores que se dedicam à arte da micronarrativa!