texto Yan Inácio
publicado em 31.05.2023
“Algumas palavras antes de começar. Risadas e gritos são muito parecidos.”
Assim como na música homônima dos Beatles, o mangá Helter Skelter de Kyoko Okazaki carrega a desordem, os ruídos e a loucura da mente de Lilico (Ririko na versão japonesa), uma atriz em ascensão. Esculpida perfeitamente através de incontáveis cirurgias plásticas, a jovem procura subir degraus sociais dentro do cruel mundo do show business, ao mesmo tempo, seu corpo começa a ruir e os efeitos colaterais dos procedimentos estéticos abalam seu psicológico já castigado.
Naomi Wolf, no seu livro O Mito da Beleza explica que a obsessão pelo corpo perfeito é uma junção de esperança, autoconsciência e auto-desprezo que aprisiona as mulheres modernas na busca pela inalcançável aparência perfeita. Na trama, Lilico escolhe o espelho para confidenciar suas próprias guinadas de ego, imperfeições e ansiedades, que estão relacionadas diretamente à sua aparência. Também é olhando para si mesma que a protagonista decide seus próximos passos.
O mangá tem traços esguios e despreocupadamente explícitos, sua simplicidade colabora com uma grande expressividade no rosto dos personagens. Assim, retrata vividamente a ode à beleza perfeita perpassada pelo amor ao dinheiro, temas caros à juventude yippie das metrópoles japonesas dos anos 1990. A ruína do corpo de Lilico reflete no seu psicológico e quando percebe que pode estar próxima do fim, busca estabilidade na tentativa de atrair o filho de uma família rica para um casamento.
Reverberando as manobras de manutenção do poder no decurso do tempo, assim como na época feudal do Japão medieval, quando se arranjava casamentos para manter territórios e influência, o pretendente da popstar se casa com a filha de um político conservador. Sutilmente, de um quadrinho para outro, Kyoko Okazaki também demonstra as relações de poder, o fetichismo de mercadoria e a instabilidade mental inseridos no cotidiano da alta classe japonesa
Nas inúmeras entrevistas que dá à imprensa, Lilico expõe a superficialidade do mundo dos famosos e das fofocas, mostrando um lado sutil inexistente em sua personalidade real, mas ainda infectado pelo exagero do consumismo. O ideal de materialismo capitalista e o domínio da individualização presentes na juventude nipônica do final dos anos 90 contrastam com valores como o de trabalho em primeiro lugar e a construção de laços comunitários marcados no imaginário social desde a reconstrução pós-guerra.
A opinião pública habita alguns quadros que funcionam como interlúdios, neles, os próprios fãs da celebridade comentam sobre sua própria aparência em relação à dela, explicitando uma das maneiras como os padrões de beleza se mantêm, através da reprodução nos meios de prestígio social. Assim, com a ruína física de Lilico, uma nova candidata para o posto dela começa a ser abraçada pelo público e pelo empresariado. Kozue Yoshikawa tem 15 anos e possui naturalmente todos os atributos que a protagonista conseguiu através das cirurgias plásticas.
Uma cena mostra uma mulher que recusa as investidas sexuais de seu companheiro por conta de um problema de auto-estima: ao costurar enredos com personagens alheios à narrativa central, Okazaki também tece comentários sobre a maneira como o ideal do corpo perfeito repercute no cotidiano das mulheres em geral. Watts reflete essa questão quando comenta que a “pornografia da beleza” mina o amor próprio sexual, direito fragilmente conquistado após os diversos sufrágios feministas.
O mangá foi publicado na Feel Young, uma revista do gênero josei, focado em mulheres adultas. A publicação é conhecida por abrigar obras mais artísticas com temáticas mais progressistas num Japão predominantemente conservador. Os capítulos publicados entre 1995 e 1996 foram reunidos numa versão de volume único, publicada no Brasil pela editora New Pop.
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