A perpetuação de lendas urbanas em Salvador
texto Luanda Costa e Yan Inácio
multimídia Rafaella Paternostro
colagem Arthur Soll, Daniel Araújo e Vanessa Cunha
diagramação Anne Meire Ribeiro
audiodescrição Júlia Naomi
O que torna uma história misteriosa uma lenda urbana? A oralidade e a transmissão entre gerações são os principais fatores que contribuem para a perpetuação de contos e suas teorias. A mistura entre história e fantasia cria narrativas entre os moradores de uma região por vários anos, como acontece em Salvador. O papel do imaginário coletivo é atualizar e teorizar continuamente sobre esses cenários.
O fomento desses relatos misteriosos reside, em especial, no fenômeno da cultura popular. Memória e oralidade fazem o trabalho de preservação de diversos costumes, tradições e histórias. “A gente olha para uma fonte historiográfica como quem olha para um vestígio do passado. A oralidade tem uma importância no sentido da pesquisa sobre esse tipo de sociedade, sobre as memórias, que não estão necessariamente registradas em um documento escrito” explica Rafael Sancho, 41, professor de História na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).
“é que o povo sempre aumenta, mas não inventa”
hildete pita
Hildete Pita, 73, doutora em difusão do conhecimento com ênfase em biblioteconomia, compreende que as lendas são uma espécie de continuação urbana do folclore. “Algumas tiveram personagens que de fato viveram. É que o povo sempre aumenta, mas não inventa. Essa transmissão de relatos está relacionada com os povos indígenas e africanos que perpetuaram sua cultura e saberes através da tradição oral no Brasil”, conta.
As lendas ficariam marcadas no imaginário popular por consequência de um misto de curiosidade, nostalgia e mistério criados a partir da oralidade. A mistura entre elementos reais e fantasiosos cria mitos extraordinários que assombram e fazem parte do cotidiano, como a Mulher de Roxo, o subsolo do Mercado Modelo e a Casa das Sete Mortes.
A sombra púrpura
A lenda da Mulher de Roxo, fortemente difundida entre os anos 1960 e 1990, é possivelmente a mais lembrada e conhecida da cidade de Salvador. O grande mistério está no fato de que ela perambulava pela Rua Chile, Barroquinha e Baixa dos Sapateiros, regiões da capital baiana. Sua presença enigmática e o uso frequente do tom púrpura alimentavam a imaginação das pessoas, criando histórias que se espalharam pela cidade e ganharam contornos místicos com o tempo.
Em alguns momentos, no entanto, ela era vista vestida de preto carregando um grande crucifixo no pescoço ou usando trajes de noiva. O principal ponto onde as pessoas a encontravam era em frente a uma antiga loja de vestuário e decoração, a Casa Sloper. Nesse local ela pedia dinheiro aos pedestres com uma voz aguda, mas sem aceitar moedas.
“o romance não deu certo e ficou doida”
joão brandão
“Ninguém sabe. Se imagina uma história, mas ela nunca explicou. Dizem que era noiva de um dos sócios dessa loja, o romance não deu certo e ficou doida. Ela entrava nas lojas de luxo, comia, bebia e não pagava nada, porque se dizia sócia da Sloper”, relata João Brandão, 82, dono do primeiro sebo de Salvador de nome homônimo, inaugurado em 1969 no Centro Histórico.
Adson Brito do Velho, 56, professor, historiador e criador do grupo Salvador Tem Muitas Histórias no Facebook, descreve como tranquila a relação da Mulher de Roxo com os transeuntes. “As pessoas tinham muito medo dela, principalmente crianças, porque aquele figurino que ela usava causava um certo impacto, mas não há registro de que essa mulher agrediu alguém”.
Outros questionamentos, como a razão da aparição da figura nas ruas, bem como seu verdadeiro nome, geram controvérsias e residem no imaginário popular. “Florinda, Doralice, Nair e Sandra são alguns dos nomes atribuídos à misteriosa mulher”, ilustra Adson, que escreveu e dirigiu a peça “A Mulher de Roxo e Outras Histórias da Bahia”.
Inúmeras teorias tentam explicar como a senhora foi parar nas ruas. Alguns dizem que foi deixada no altar pelo noivo, abandonada pela família ou que vivia em um convento. Ela também se dizia dona de Salvador, proprietária de toda a Avenida Sete e nascida no altar da Igreja de São Francisco. O que realmente se sabe sobre essa enigmática senhora é que ela morreu em 1997. “Ela foi enterrada como indigente, viveu solitária e morreu também de forma solitária”, conclui Adson.
Lamentos do passado
Outro boato que ronda a capital baiana surge no Mercado Modelo, principal polo comercial de artesanato da cidade e um dos pontos turísticos mais visitados. Tanto as lojas quanto o comentado subsolo carregam boatos de aparições e atividades paranormais. O prédio comercial de paredes grossas e grades de ferro fundido foi concluído em 1868, mas antes funcionava como uma casa de alfândega. Reza a lenda que essas passagens subterrâneas serviam como prisão temporária para pessoas escravizadas.
Uma comerciante de bolsas e acessórios relata ter presenciado a passagem de vultos e sons de correntes arrastando pelo chão, durante a madrugada em uma noite de catalogação. Ela conta que era a primeira vez que fazia o inventário da loja. “Estava muito assustada com aquela figura ensanguentada e acorrentada passando cada vez mais próximo de mim. Decidi que iria embora e terminaria na manhã seguinte, mas o cadeado central do mercado sumiu. Procurei em todo canto, mas não o encontrei. Iria embora de qualquer forma. Quando fui fechar o portão da minha loja, sobre ele estava o cadeado, mas nem eu ou outro funcionário o colocou ali.”
“dizem que aqui você ouve os grilhões batendo nas escadas de ferro”
jorge felipe
Jorge Felipe, 54, vice-presidente da Associação dos Comerciantes do Mercado Modelo, comenta esse tipo de relato. “Dizem que aqui você ouve os grilhões batendo nas escadas de ferro. O gemido de dor dos escravizados que ficavam acorrentados no subsolo, morrendo de sede e de fome.” O administrador comenta que esse boato repercutiu na TV e que presenciou atividades estranhas no Mercado.
“Quando fizemos uma reforma, eu e mais três caras passamos a noite aqui. Teve uma hora depois da meia noite que a gente ouviu um negócio caindo, todo mundo ficou arrepiado. Falei ‘bora lá Valmir, ver essa zorra.’ A gente deu uma volta, olhou as lojas pra ver se alguma prateleira caiu, e rapaz, não tinha nada caído”, relata Jorge, que defende a versão de que as mortes de pessoas escravizadas ocorreram na construção do prédio, por conta de sua fundação erguida abaixo do nível do mar.
Ele explica que as mortes de pessoas escravizadas ocorreram na construção do prédio, já que sua fundação foi erguida abaixo do nível do mar. Além disso, cita que na época de sua inauguração, já estava em vigência a Lei Feijó, de 1831, que proibia o tráfico de escravizados no país. Assim, a original alfândega, uma repartição federal, não poderia aceitar tais práticas.
Na perspectiva de historiadores como Adson, os relatos são válidos, mas esse fato não se sustenta com base em registros. “O que nós sabemos é que não existe nenhum documento histórico comprovando que ali tinha essa finalidade, pode ser até que alguém utilizou o espaço para tal, mas, oficialmente, não.”
Casa sangrenta
A esquina da Rua do Passo, entre o Carmo e o Pelourinho, também é palco de uma lenda urbana. Um dos edifícios ali localizados, o solar de número 24, é conhecido como a Casa das Sete Mortes e relatado como um local mal assombrado. O casarão tem estilo ibérico, com pisos de mármore e azulejos portugueses datados do século XVII. A construção foi tombada como Patrimônio Nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1943.
O motivo aparente das assombrações está associado a um crime que ocorreu em 1756 e foi registrado no Arquivo Público na época. O padre Manoel de Barros, duas pessoas escravizadas e um trabalhador livre foram assassinados a facadas na casa, mas não se sabe quem os matou nem as motivações. Também se especula que uma mulher escravizada teria envenenado um casal de patrões e sua filha, apesar desse evento não estar formalmente documentado.
Em 2010, foi restaurada como parte do Plano de Reabilitação do Centro Antigo de Salvador (CAS). Durante a reforma, pedreiros teriam ouvido sons aterrorizantes, como murmúrios, objetos caindo no chão e sussurros. Esses relatos são espalhados entre os moradores do Santo Antônio Além do Carmo e assombram os que passam por ali, principalmente à noite.
Adélia Rosário, 68, trabalha há décadas numa loja de maquinários para calçados ao lado da Casa das Sete Mortes e tenta justificar os gritos fantasmagóricos referenciando a arquitetura do casarão. “Essas casas são feitas de madeira de lei, às vezes verde, e quando ela seca, o atrito entre uma e outra produz um som. À medida que a madeira vai assentando com o tempo, dá essa margem, que você só ouve no silêncio”, explica.
“nós somos espíritos materializados, mas tem os que não se materializam” adélia rosário
Ela une ceticismo e crença ao comentar sobre os boatos relacionados à casa. “É um vento que você não tem noção, então você tem aquela impressão de que tem alguém, uma alma. No mundo espiritual deve haver, principalmente nesse lugar chamado Pelourinho, que é de muito sofrimento. Sabemos que muitas pessoas inocentes foram mortas aqui. Nós somos espíritos materializados, mas tem os que não se materializam. Então acredito nas duas versões”, completa.
Apesar do histórico assombroso, a residência já foi uma unidade da Escola Técnica da Casa Pia, entidade filantrópica que era originalmente um noviciado jesuítico. Desde 2021 funciona como sede da Escola Artística Focus Moda, projeto que recebe mais de 350 pessoas gratuitamente e oferece oficinas de moda e cursos de empreendedorismo digital.
“Agora vá com seu bocão e espalhe”
Adson exemplifica como a cultura auxilia na perpetuação dessas histórias. “As pessoas se identificam com as lendas urbanas. Quando tem um filme, documentário ou peça de teatro sobre o assunto, o público revive aquele momento. É como se fosse uma volta ao passado, o trazer para o presente, revivendo bons e maus momentos”.
Para além da arte e da oralidade, Facebook, TikTok e YouTube também cumprem o papel de transmissor de histórias. As fábulas são recontadas em vídeos e discutidas nas comunidades, conectando pessoas de lugares distintos a narrativas locais. O grupo criado por Adson no Facebook é um dos exemplos disso.
Criado em outubro de 2020, com o objetivo de contar curiosidades sobre os bairros, monumentos históricos e personalidades memoráveis da capital, a comunidade tem mais de 20 mil membros, que dispõem da curiosidade do professor e da possibilidade de teorizar coletivamente os fatos trazidos. O sucesso da iniciativa foi tamanho, que o historiador decidiu lançar um livro que compila as histórias postadas mais viralizadas.
O conhecimento dos antepassados enriquece a transmissão de memórias para as gerações mais novas. Os senhores e senhoras de idade carregam o que escutaram na época que eram jovens, além de suas próprias vivências, colecionando em suas memórias crenças e mitos. Mesmo se essas figuras lendárias não realizaram nada de extraordinário ou tiveram suas histórias aumentadas ao longo do tempo, estarão impregnadas na alma do soteropolitano pela sua constante presença imaginária.
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