texto Antonio Dilson Neto e Malu Fontes
publicado em 18 de agosto de 2022
Mais de quatro milhões de ouvintes até o final de julho. Mais de dois milhões de ouvintes em cada um dos sete episódios. Para quem estava em Marte, estamos falando do podcast de maior sucesso no Brasil desde o advento do formato. Ancorado pelo jornalista Chico Felitti, “A mulher da casa abandonada” quebrou a internet. Despertou na audiência, na polícia e em ativistas, influencers e nos comentaristas de feed do país inteiro o pior do efeito manada. E sobrou para o jornalismo.
Quem é jornalista e ouviu o podcast tem clareza do que moveu Felitti a contar essa história: o mistério sobre um casarão caindo aos pedaços e as versões nunca antes apuradas segundo as quais ali vivia uma criminosa foragida. Na construção dos episódios, só veiculados quando toda a série já estava pronta, o podcast começa de um jeito e vai se transformando. A casa vai desaparecendo e a identidade de Margarida vai se revelando, como numa fotografia que vai ganhando forma.
Trezentas páginas de roteiro depois, uma viagem de apuração aos Estados Unidos, dezenas de entrevistas gravadas, pesquisas em documentos e processos, a primeira entrevista da vida inteira de Margarida e sete episódios separam duas histórias: a de uma casa em escombros de uma velha misteriosa e solitária e a da irrupção do escravagismo e do racismo que vivem sob os tapetes das elites brasileiras somada à perversão e impunidade de uma foragida do FBI que sempre esteve ao alcance dos olhos dos vizinhos.
Morador de Higienópolis, um dos bairros com o metro quadrado mais caro de São Paulo, Chico Felitti era mais um atraído pela curiosidade que rondava um sobrado caindo aos pedaços e sua moradora. Como jornalista, ao coincidentemente deparar-se com a senhorinha misteriosa na rua numa véspera de Natal, brigando com um fiscal da prefeitura e na persona de uma ambientalista articulada, fez o que o bom jornalismo manda fazer. Começou a fazer perguntas e a gravar, mesmo sem saber no que aquilo se transformaria.
Estava diante de uma brasileira de família rica e que por mais de 20 anos deu continuidade ao que seus pais fizeram desde a infância de uma menina negra e pobre: mantê-la em condições análogas à escravidão, submetendo-a a privações alimentares, de saúde e objeto de maus tratos e agressões físicas. Vivendo em Washington, Margarida e o marido mantiveram uma empregada doméstica ilegal e escravizada no país por 20 anos. Denunciados, o marido foi julgado, condenado e preso, e Margarida fugiu para o Brasil, passando a morar no sobrado da família em Higienópolis. O crime prescreveu sem que fosse presa.
Em 2022, nesse contexto de revisionismo histórico mundial e nacional, de reparação social pela escravização que deu ao Brasil as características de desigualdade que o país mantém, qual o jornalista se depararia com uma história como a de Margarida Bonetti e a engavetaria em nome de um agora cobrado cuidado com as repercussões para a vida da protagonista? Qual é o percentual de responsabilidade do jornalismo na decisão da polícia de invadir a casa de Margarida sob o pretexto de resgatar uma idosa vulnerável da condição de abandono de incapaz? Por que a polícia não vai resgatar, para proteger da indignidade e das péssimas condições de moradia, todos os miseráveis que o jornalismo publiciza diariamente? Qual a responsabilidade de Felitti se pessoas foram para a frente do sobrado fazer turismo mórbido e selfies? Quem controla a alienação de gente que transforma uma história de horror em espetáculo?
CANALHAS
Com mais de quatro milhões de ouvintes, se apenas umas poucas centenas transformaram a porta de Margarida em ponto de peregrinação vulgar e lacração nas redes, isso só revela o quanto a dimensão jornalística de trazer à tona histórias sobre os modos de funcionamento da sociedade brasileira é infinitamente mais importante que a morbidez das exceções. Os que veem no podcast uma irresponsabilidade do jornalista, do jornalismo e da Folha de S. Paulo, por contar essa história, são do tipo que responsabilizam a janela pela paisagem que se descortina lá fora quando a abrimos.
Negar o interesse público e a noticiabilidade gritante do caso Bonetti e sua correlação com os milhares de casos existentes de pessoas mantidas em regime de trabalho análogo à escravidão equivale a optar pela representação de Margarida como uma inexistente velhinha frágil para borrar a escravagista violenta que fugiu do FBI para escapar da prisão. Há limites que não podem ser considerados quando da decisão de publicar uma reportagem. Os canalhas também envelhecem e têm endereço. Sobre argumentos de que outro podcast, “A praia dos ossos”, é melhor ou que o título de Felitti é enviesado por não destacar o escravagismo de Margarida, aí já não são críticas jornalísticas. Gênero, formato e autoria são outros quinhentos.
Quem cometeu um crime foi Margarida. O jornalismo não a julgou ou condenou. Contou a sua história, sem introduzir nada irreal. O que a audiência faz com verdades que ouve e o que a leva a comportamentos do tipo efeito manada é assunto para outro podcast, outro texto. Apedrejar o jornalismo, Felitti ou a janela do sobrado é ruído e sintoma da morte do argumento.
Análise perfeita,sem dúvida muito bem estruturada e argumentativa. Exatamente como o jornalismo exige. Um texto brilhante e elucidativo. Espero que muitos possam ler e entender a visão não “folclorica” dos fatos. Parabéns aos jornalistas sérios e competentes.