Como a comunidade literária preta do TikTok mostrou que livros são espaços de pertencimento
texto Jade Oliveira e José Ivan
multimídia Pedro Hassan
colagem Anderson Figueiredo
diagramação Anderson Figueiredo
narração Glaucia Campos
Desde blogs literários até a ascensão de criadores de conteúdo sobre livros no YouTube (booktubers), o hábito da leitura se tornou cada vez mais popular na internet, atingindo os mais diversos públicos. Com o surgimento de novas redes sociais, a comunidade leitora encontrou espaço em um dos aplicativos mais famosos do momento: o TikTok.
Nem só de danças virais e humor questionável vive a plataforma. Com mais de 1 bilhão de usuários mensais ativos, de acordo com a própria rede, o aplicativo tem como um dos seus nichos a literatura. O booktok, neologismo que vem da junção de book (livro em inglês)com tok (nome do aplicativo que também é utilizado para designar um nicho) ficou popular em 2020. Através de áudios virais e trends, a hashtag que agrupa os vídeos deste nicho (#booktokbrasil) já acumula mais de 2 bilhões de visualizações e centenas de influenciadores. Suspense, fantasia, romance, há espaço para diversos gêneros no TikTok. Até pratos culinários inspirados em livros são ensinados pelos booktokers.
Entretanto, criadores de conteúdo pretos relatam como o racismo atua dentro da comunidade literária. Débora Silva (@debook_), 23, estudante de pedagogia, comenta que a primeira coisa que percebeu ao chegar no TikTok foi a ausência de pessoas pretas. “Foi bizarro. Percebi que tinha muita gente branca no aplicativo, então, toda pessoa preta que eu via, eu seguia.”
“A gente precisa fazer dez vezes mais do que uma pessoa padrão. Quando queremos indicar um livro em que o protagonista ou o autor é preto, se a gente não denunciar o racismo, o vídeo não sobe”
cassiane pinheiro
Para a estudante de pedagogia Cassiane Pinheiro (@cassiebooks), 24, o booktok é um espaço predominantemente branco. Desabafa que existem vários influenciadores pretos, mas sempre ganham menos visibilidade por uma série de fatores, como a ausência de engajamento nos vídeos. “A gente precisa fazer dez vezes mais do que uma pessoa padrão. Quando queremos indicar um livro em que o protagonista ou o autor é preto, se a gente não denunciar o racismo, o vídeo não sobe”, expõe a booktoker.
Na plataforma, o debate sobre raça ganhou destaque após viralizar um vídeo em que Débora aponta o racismo no mercado editorial. No conteúdo, ela sinaliza a falta de investimento do mercado em criadores de conteúdo pretos. “Eu via que pessoas brancas recebiam muitos livros das editoras e pensava: ‘já apareceram mais de 200 vídeos de unboxing e eu não vi uma pessoa preta recebendo livro?’”
Além disso, a booktoker expôs a pouca visibilidade que existe nesse meio devido ao racismo do algoritmo, e questiona: “como é que nós, criadores de conteúdo negros, teremos visualização se a plataforma não entrega os nossos vídeos? O algoritmo é racista”, desabafa. A preferência algorítmica por mostrar rostos brancos e a ausência de pessoas pretas em bancos de imagens, o que impede o reconhecimento facial, pode diminuir o engajamento de pessoas negras em larga escala.
Precisamos falar
Nas redes sociais, produtores de conteúdo conquistaram espaços para gritar aos quatro ventos o que por tanto tempo guardaram para si. O desejo de compartilhar leituras foi o pontapé inicial para que começassem a gravar vídeos no TikTok.
Maíra Peco (@mirareadingmaps), 23, estudante de Letras e produtora de conteúdo no mundo cibernético dos livros, compartilha que passava a madrugada conversando com sua irmã sobre histórias. “Ela fala que não vai ler o livro e eu respondo ‘então vou dar spoiler a rodo pra você entender porque estou surtando’”. A booktoker recebia indicações de livros pela internet, lia, mas não tinha com quem conversar. Cita que se inspirou em Débora, após ver um vídeo que expressava a indignação da estudante por só ver criadores brancos na plataforma.
Com mais de 300 mil seguidores no TikTok, Patrick Torres (@pattzic), 22, é estudante de medicina e escritor. O jovem foi responsável por popularizar no Brasil a trend #FofocaLiterária, em que o autor do vídeo finge relatar uma história extraordinária de sua vida, para no final revelar ser tudo parte do enredo de um livro. O booktoker conta que gravava os vídeos apenas para compartilhar suas resenhas com uma amiga, e que não sabia da existência de uma comunidade brasileira apaixonada por livros antes de sua publicação viralizar – alcançando 3,8 milhões de visualizações. “Vi uma moça de fora (do país) fazendo essa trend e decidi gravar. Mandei para minha amiga, mas ela demorou para ver e eu não arquivei o vídeo. Quando voltei, já tinha viralizado”, conta em meio a risos.
“Eu ocupo um lugar que queria ter visto no início. Como lia muitos livros que só pessoas brancas liam, que só tinham protagonistas brancos, eu me identificava muito pouco”
patrick torres
Sua forma de indicar livros clássicos e abordar a negritude na literatura já lhe rendeu muita realização pessoal. “Eu ocupo um lugar que queria ter visto no início. Como lia muitos livros que só pessoas brancas liam, que só tinham protagonistas brancos, eu me identificava muito pouco.” Patrick conta que se sente muito grato por guiar pessoas que estão começando a mudar o consumo de livros, buscando aprofundamento em temáticas raciais.
Eu me vejo em você
Mais do que ler outras narrativas, você pode encontrar semelhanças com sua realidade dentro das páginas. É isso que Débora ressalta ao explicar a sua paixão pela literatura. “Uma coisa que amo muito, independentemente se é romance ou não, é a referência de cuidado e negritude. Vejo muito isso no livro ‘Reticências’. Quando existem falas como ‘ele usou o pente-garfo para dar volume ao seu cabelo crespo’, ou trechos que descrevem que as tranças da personagem estavam em um penteado diferente, ou que tinha um cheiro de coco, e eu pensava: ‘eu também usei esse produto’. Fico parecendo uma criança sempre que leio isso porque só via histórias do tipo ‘ela pegou sua escova e penteou seus cabelos longos e lisos, e eu concluía: isso não é sobre mim.”
“Com os livros, as pessoas começaram a se ver como destaque, veem que elas têm o direito de estar nos lugares mais altos, e é isso que eu gosto de passar com as leituras”
maíra peco
Mesmo em universos místicos, é possível estabelecer a conexão de histórias por meio da negritude. Maíra Peco, consumidora de livros fantasiosos, relata que leu um livro chamado “Sangue Dourado”, que retrata a questão da voz da mulher preta na sociedade. “O preto sempre é colocado como último em qualquer coisa. Com os livros, as pessoas começaram a se ver como destaque, veem que elas têm o direito de estar nos lugares mais altos, e é isso que eu gosto de passar com as leituras”, diz.
Lara Eduarda, 23, escritora que atende pelo codinome Englantine, tem como regra só escrever protagonistas pretas. “Escrevo para pessoas não brancas porque elas precisam se encontrar nessas histórias. Meu público-alvo são jovens pretas”. Lara escreve romance, fantasia, suspense e o que mais a criatividade mandar. Recentemente, lançou no formato físico e de maneira independente um de seus livros: “O Medo é Feito de Gelo”. A história narra um romance sáfico (entre mulheres) sobre Aster e Nicola com a clássica trama de enemies to lovers (inimigos a amantes). Uma de suas fontes de inspiração é Nicola Yoon, autora do livro “O Sol também é uma Estrela”. “Os romances dela podem ser leves e clichês, mas eu gosto porque me vejo ali. Não preciso só falar sobre racismo. O fato de inserir a representatividade com respeito, já é muito.”
A escritora conta que a comunidade do booktok teve um importante papel em trazer relevância para sua obra. “É estranho porque do nada um monte de gente me segue por conta de um vídeo no TikTok falando de algo que escrevi. Ainda não sei lidar com esse tipo de reconhecimento”. A autora também usa as redes sociais para divulgar seu trabalho, mas confessa que a dupla jornada de escrever e produzir conteúdo pode ser muito cansativa. “Eu escrevo, faço cards, edito vídeos, escrevo roteiros e estou sempre postando. Fazer duas coisas ao mesmo tempo requer muito trabalho. Se eu pudesse, faria uma coisa só”, desabafa.
O perigo de uma história única
Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana que aborda pautas raciais em suas obras, relatou em um episódio de TED Talk como a descoberta de autores africanos transformou o seu olhar sobre a literatura. “A consequência inesperada de conhecer escritores africanos foi perceber que pessoas como eu poderiam existir na literatura. O que esses autores fizeram por mim foi me salvar de ter uma história única sobre o que os livros são.”
“Essas questões que a gente se identifica, que a gente passa, faz com que eu me sinta muito mais próxima da realidade do livro, ou que o livro se aproxime muito mais da minha realidade”
débora silva
Para Débora, uma escritora que a salvou de ter apenas “histórias únicas” como referências foi a estadunidense Angie Thomas, autora de romances como “O ódio que você semeia” e “Na hora da virada”. A booktoker conta que a melhor parte de ler sobre experiências similares à sua é o cuidado dos autores ao escrever elementos em que ela possa se enxergar. “Essas questões que a gente se identifica fazem com que eu me sinta muito mais próxima da realidade do livro, ou que o livro se aproxime muito mais da minha realidade.”
Patrick compartilha de um sentimento parecido ao descrever a importância dos livros afrocentrados. “Quando você é negro e lê “O ódio que você semeia”, por exemplo, não se identifica só com o jeito que os personagens veem o mundo, mas também se identifica com a maneira como os personagens se sentem perante o mundo. Muitos dilemas sobre a subjetividade, sobre como é o sentir, muitas dúvidas e medos. Você percebe um senso de comunidade, se identifica e descobre outras maneiras de elaborar questões complexas para você mesmo que envolvem a raça. Ler romances afrocentrados é uma maneira revolucionária de fazer com que a arte represente subjetividades”, declara.
O estudante de medicina descreve como o hábito da leitura se torna ainda mais prazeroso quando há essa conexão entre leitor e protagonista através da negritude. “É muito libertador perceber que não está sozinho. Descobre-se alternativas para lidar com dilemas pessoais internos e até externos e, ao mesmo tempo, ter uma identificação muito forte com esses personagens.”
Débora criou o seu projeto audiovisual no TikTok, o “Negritudes Literárias”. A ideia consiste em apresentar obras de escritoras pretas e contar as vivências dessas mulheres em até três minutos. A estreia do quadro teve Angie Thomas como foco, autora que Débora é muito fã. O diferencial do projeto é ser produzido, roteirizado e interpretado por mulheres pretas, além de ter uma intérprete de Libras para tornar o conteúdo acessível.
Para Maíra, são os livros que concedem conforto nos momentos de solidão e violência. Relata estar cansada de receber a pergunta “você trabalha aqui?”, sem estar com algum tipo de uniforme, e de ser perseguida por seguranças enquanto faz compras. A influencer conta que tenta, por meio das indicações literárias, atenuar o resquício das violências cotidianas que pessoas pretas sofrem. “Nem que seja por algumas horas, quando a pessoa está imersa na leitura, eu gostaria de tirar esse sentimento delas.”
Patrick diz que livros desse tipo têm um poder de fazer com que a sua própria existência seja ressignificada. “Você enxerga problemáticas que encara todos os dias, às vezes não sabe de onde elas vem, mas, com esses livros, aprende a interpretar e buscar caminhos para lidar com isso. São livros poderosos neste sentido. A percepção, o sentimento e a identificação geradas para uma pessoa negra são diferentes do que para uma pessoa branca, porque são dilemas que somente as pessoas negras conseguem identificar e sofrer com eles. É um sofrimento coletivo que te leva para a libertação.”
Muito bom ver como a representatividade (fora da narrativa sempre de vítima, mas também como protagonista forte) tem sido uma pauta crescente em relevância <3