A tradição cultural da venda de acarajé em Salvador
texto Carolina Faria e Marcelo Azevedo
diagramação Rute Souza Cruz
foto de capa Brenda Santos/PETCOM
narração Rute Souza Cruz
Feijão fradinho, cebola e sal. Essa é a receita de um dos quitutes mais tradicionais da culinária baiana. Feito, inicialmente, sem nenhum recheio como uma oferenda aos orixás, o acarajé se tornou extremamente popular e a tradição de sua venda já passou por diversas alterações ao longo do tempo. Hoje, no tabuleiro da baiana ou do baiano, o bolinho frito no azeite de dendê pode ser recheado com vatapá, caruru, pimenta, salada e camarão. Deu água na boca? Já é possível, também, encontrar acarajé em delicatessens ou pedir por delivery. Pode ser do candomblé, evangélico ou até de nenhuma religião. No decorrer do tempo, essas variações não conseguiram apagar a hereditariedade e a cultura por trás da venda desse bolinho deliciosamente recheado de história.
A baiana de acarajé foi considerada pelo Iphan, em 2005, patrimônio cultural do Brasil e a profissão, reconhecida desde 2017, é nacionalmente celebrada no dia 25 de novembro. O ofício tem suas origens no período colonial, quando as mulheres escravizadas saíam às ruas para vender o bolinho e repassar parte de seus ganhos aos seus senhores. A comercialização acabou se tornando, também, uma fonte de renda para os terreiros de candomblé. Devido ao preconceito, apenas negros livres ou libertos e pessoas de baixa renda consumiam o alimento, que era visto como um revigorante para a saúde de crianças e idosos. Por trás da comida, existe uma história que envolve cultura, religião e sustento. Uma história contada por famílias que vivem desta tradição.
É você que é Dona Cira?
Dos moradores de Salvador a quem só veio de passagem, todos conhecem o nome de Cira do acarajé. Com mais de 50 anos de tabuleiro, a baiana já conquistou 15 prêmios Veja Comer e Beber e é uma referência para qualquer um que deseja experimentar um bom acarajé. Mas poucos conhecem a trajetória que levou à fama Jaciara de Jesus Santos, 66. Ela aprendeu o ofício quando criança, mas teve que ir à frente do tabuleiro aos 17 anos, quando sua mãe faleceu. Órfã e com quatro irmãos, Cira assumiu o sustento da família. “Carregava tudo na cabeça. Era lata de azeite, saco de feijão. Ia trabalhando e dando duro mesmo para viver”, conta.
“agora eu tenho aquela fama. Gente do país todo já vem de lá ‘é você que é dona cira?”
cira do acarajé
Com a divulgação boca a boca, ela foi crescendo. “Agora eu tenho aquela fama. Gente do país todo já vem de lá ‘É você que é Dona Cira?”, completa contente. Hoje, tem ajuda de 35 funcionários e é dona de quatro pontos de venda. Ela ensinou seus filhos o ofício, mas diz que cada um segue sua vida e não cobra que eles assumam o ponto no futuro. Além do Rio Vermelho, onde faz mais sucesso, Cira vende seus quitutes em Piatã, Itapuã e na cidade de Lauro de Freitas.
Fui criada debaixo do tabuleiro
Outra ganhadora do prêmio Veja Comer e Beber é Laura Carvalho, 51. O quadro com a conquista faz parte da decoração do tabuleiro e ela logo nos convidou para tirar uma foto dele. Depois de anos rodando pelas praias da cidade sem ponto fixo, o acarajé de Dária e Laura está há 34 anos na frente do mercado Rede Mix, na Pituba. Dária, 73, é sua mãe, com quem dividiu o tabuleiro por quase toda a vida. Aos nove anos, Laura já sabia fritar o bolinho. “Fui criada debaixo do tabuleiro”, diz.
“vida difícil, você tem que fazer o que você sabe. então não tinha opção, era o acarajé mesmo”
laura carvalho
Única mulher de cinco filhos, era ela quem ficava à frente, assumindo o papel da tradicional baiana, enquanto os irmãos ajudavam nos bastidores. O acarajé, apesar de ter se tornado uma paixão, não foi uma escolha. Pela necessidade, desistiu do sonho de ser veterinária. “Vida difícil, você tem que fazer o que você sabe. Então não tinha opção, era o acarajé mesmo”, explica.
Já seus filhos seguiram um caminho diferente, pois, ao contrário da mãe, puderam escolher. Dos dois filhos, uma é formada em Direito e o outro em Engenharia da Computação. Apesar disso, não se preocupa com o futuro do negócio. “Vai ter alguém para me substituir. Não pode parar, né?”, ela garante. Seus irmãos e sobrinhos estão entre os funcionários, e se precisar, seus filhos e sua irmã, que é enfermeira, também dão suporte. “É daqui que todo mundo vive, tem que ajudar. Precisou, eu chamo.”
E tem coisa melhor?
“se eu e meu irmão não déssemos continuidade, ia acabar. a tradição ia se perder”
ana cássia
Enquanto Laura conta com o apoio de vários membros da família, Ana Cássia, 38, que agora assume o negócio de sua falecida mãe, o Acarajé da Tânia, tem algumas dificuldades. Na família, somente seu irmão e sua prima ajudam a manter o ponto que fica em frente ao Farol da Barra. “Se eu e meu irmão não déssemos continuidade, ia acabar. A tradição ia se perder”, diz a baiana. Tânia prezava por manter a cultura e, por isso, Ana se empenha em manter viva a tradição do acarajé, ensinando seu filho a preparar os quitutes. “Ele tem três anos e já fica de olho enquanto eu faço as coisas.”
Ana faz questão de passar os ensinamentos, pois ainda se preocupa com quem assumirá esse papel em sua família no futuro. “Eles gostam de dizer que conhecem a baiana que trabalha no Farol, que são da família do acarajé da Tânia. Mas ninguém tem interesse, porque isso aqui não é as mil maravilhas. Tem vento, tem chuva, precisa trabalhar até tarde.”
O ofício do acarajé está há quatro gerações na família de Ana Cássia, introduzido por sua bisavó. Depois veio a avó que, com 13 filhos e abandonada pelo marido, viu no bolinho uma oportunidade de sustento. Mas, devido a um problema de saúde, não pôde mais continuar. Tânia, sua mãe, foi quem seguiu com o trabalho. Após anos de tabuleiro no Farol, ela faleceu em 2018 e deixou o ponto como herança a Ana e Anderson, seus dois filhos. Eles se revezam e fazem do ofício, além de sua fonte de renda, uma alegria diária. “Eu costumo dizer que sou privilegiada, porque trabalho num lugar lindo, com pessoas que eu gosto e com o que eu gosto de fazer. Não me vejo fazendo outra coisa”, afirma Ana. Seu irmão até tentou outro rumo, mas suas raízes falaram mais alto. “Ele foi trabalhar com outra coisa, mas não aguentou. Disse que nunca pensou que fosse sentir falta do tabuleiro, mas sentiu e precisou voltar”, completa.
Tem saia engomada, sandália enfeitada…
As três baianas são cadastradas na Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivos e Similares (ABAM) . Criada em 1992, é a instituição que regula a profissão das quituteiras e as representa. Hoje, conta com aproximadamente 4.000 filiadas e as capacita com cursos profissionalizantes. Ela ajuda as baianas na luta pela conquista e manutenção de direitos e na preservação da cultura tradicional do acarajé. Além do apoio da ABAM, desde 2015 a prefeitura de Salvador também contribui para a valorização do trabalho. O Decreto n° 26.804 estabelece, entre outros, a obrigatoriedade de uma licença, emitida pela prefeitura, para comercializar o bolinho e prevê a utilização de vestimentas típicas da tradição afro-brasileira durante o ofício. Em 2017, a regularização da profissão foi mais uma vitória das baianas de acarajé.
As vestimentas típicas são uma homenagem aos orixás. Cada dia da semana exige uma cor diferente. Na terça-feira, por exemplo, usa-se azul escuro em referência a Ogum. Já na quarta, dia de Iansã, a cor é vermelha. As roupas compõem apenas um dos diversos aspectos que conectam acarajé e religião. O próprio bolinho é uma oferenda aos orixás e, mesmo com a sua popularização e a influência do turismo, ainda mantém suas raízes sagradas. “O bolinho ganhou dimensão pública quando a orixá Iansã, deusa guerreira dos iorubás, autorizou suas filhas a venderem sua comida nas ruas da Bahia do século 18. Ou seja, sem África e o culto a Iansã não existiria acarajé no Brasil”, afirma Vagner Rocha, doutorando em Estudos Étnicos e Africanos na Universidade Federal da Bahia.
“Muitos associam acarajé à religião, como o candomblé. Não tenho nada contra, mas tem o outro lado. Para mim, acarajé é um meio de vida, é meu trabalho. Então não tem nada a ver isso aí”, declara a baiana Laura Carvalho, católica. Para driblar a carga da religião do candomblé, as vendedoras evangélicas dão o nome de “bolinho de Jesus” ao quitute que comercializam. Ao se recusarem a cultuar a tradição africana, não usando, por exemplo, as vestimentas adequadas, acabam caindo na ilegalidade. Para elas, o acarajé não tem valor cultural, é apenas um meio de sustento. Em contrapartida, Ana Cássia, do candomblé, defende a importância da cultura na venda do bolinho. “Eu acho uma falta de respeito dessas pessoas que vendem acarajé sem usar os trajes e preservar as tradições. Todo mundo sabe que acarajé é uma comida oferecida ao orixá. Surgiu assim e não é respeitoso querer desconstruir isso”, rebate.
Todo objeto cultural passa por alterações ao longo do tempo e o acarajé não foge a essa regra. É possível encontrá-lo em todos os bairros de Salvador, no freezer dos mercados e, recentemente, um bolinho de feijão com recheio doce, criado em Feira de Santana, reivindicou seu lugar como uma nova versão do quitute. Rita Santos, presidente da ABAM, é contrária a essa variação, visto que a receita original é tombada enquanto patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Por conta disso, o “acarajé doce” seria uma desvalorização de sua história. Apesar dessas inovações, os quitutes tradicionais são difíceis de serem superados. Para Vagner Rocha, o futuro do acarajé é ao lado das baianas. “O acarajé delivery, congelado ou servido como petisco não substituirá a experiência de ir ao tabuleiro da baiana para comer o bolinho ao gosto de cada freguês.”
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