O ato de colecionar como forma de afeto
texto Mariana Passos e Yan Inácio
colaboradora Lila Sousa
multimídia Lucas Ramos
colagem Caíque Lisboa
diagramação Vanessa Cunha
narração Felipe Sena
Fotografias, selos, moedas, cédulas, discos de vinil. São inúmeras as opções para os colecionadores que possuem uma relação afetiva com cada um dos objetos que guardam em suas estantes. O que distingue um acumulador de quem coleciona é a organização. Pode-se atribuir o status de colecionador a quem pesquisa, coleta, ordena e exibe algum tipo de item.
O prenúncio do ato de colecionar surgiu na Pré-História, mesmo sem ordem lógica, seres humanos primitivos precisavam coletar objetos para garantir sua sobrevivência. Posteriormente, na Idade Média, o colecionismo viveu um grande marco, por conta da coleta de itens em territórios estrangeiros e sua posterior exibição como espólio de guerra e símbolo de conquistas.
Em um salto no tempo, a partir do século XX, a intensificação da produção em massa ressignificou a maneira como construímos relações sociais e, consequentemente, nossas coleções. Agora, produtos feitos em escala industrial também passaram a constituir conexões afetivas com os indivíduos por conta de sua presença cotidiana.
Assim, alguns objetos industrializados podem ser coletados seguindo uma lógica imposta por um guia, como os álbuns de figurinhas ou os livros de coleção numismática, que possuem espaços específicos para cada tipo de moeda ou cédula. Outros podem ser organizados à maneira do colecionador, como coleções de chaveiros, bonecas e canecas.
Um curioso exemplo da manifestação do ato de colecionar é a história do criador da série Pokémon, Satoshi Tajiri, que costumava coletar insetos e, a partir disso, idealizou uma das franquias mais conhecidas da cultura pop. Tajiri transportou sua paixão para os videogames, animes e jogos de cartas da série, nos quais o principal objetivo é capturar o máximo de pequenas criaturas, construindo uma grande coleção. Essa ideia central é representada através do slogan “Pokémon, temos que pegar”.
Com a era digital, produtos colecionáveis receberam seus equivalentes no mundo virtual, como discos musicais e o próprio dinheiro, que pode ser substituído por carteiras on-line. A consequência é um certo desapego de objetos físicos por grande parte do público que os utiliza. Este é um dos pontos que motivam a afeição dos colecionadores: a vontade de manterem vivas as memórias da experiência de consumo.
A jornada do colecionador
José Rogério Lopes, 61, doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autor do livro “Colecionismo, arquivos pessoais e memórias patrimoniais”, aponta que as redes de sociabilidade dão suporte à formação dos colecionadores. Uma das ideias defendidas pelo professor é a projeção da subjetividade do indivíduo na coleção que, dependendo da construção coletiva, pode adquirir valor de mercado.
“A passagem do sujeito que guarda objetos para aquele que coleciona tem a ver com um conjunto de relações que ele vai estabelecendo com outros indivíduos. Essas interações são capazes de esclarecer os princípios da coleção que vai se formando, como um processo de aprendizagem, ou seja, o colecionador não nasce do nada, ele aprende a ser colecionador”, explica Lopes.
As histórias sobre o início de uma coleção são diversas e costumeiramente envolvem memórias e processos ritualísticos, como a procura por informações, a compra e a integração desses produtos a um acervo pessoal. Diante desse comportamento, uma pergunta pode surgir para quem não compartilha desse universo: como começa a afeição por objetos que normalmente não simbolizam afetividade?
“a marca mental é o conjunto de valores que estão agregados a um objeto”
fernanda finardi
Fernanda Finardi, 39, graduada em Publicidade e Propaganda pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), expõe na sua pesquisa “Colecionismo moderno: conhecimento, memória e indústria cultural” um dos fatores que explicam a afetividade envolvida no ato de colecionar. “A marca mental é o conjunto de valores que estão agregados a um objeto. Ela funciona e se desenvolve na mente do colecionador e depois parte para um contexto afetivo e familiar sócio-psicológico”, explica.
O que era um objeto convencional, pode ser enxergado como instrumento de fascinação para quem coleciona. Para Edval Landulfo, 45, economista e apaixonado por coleções, o colecionismo é algo que precisa ser despertado. “Fiz pra minha filha um álbum de moedas porque tenho fascínio, mas não sei se isso será o suficiente para que ela mantenha essa coleção. Acredito que colecionará alguma outra coisa que tenha significado para ela”, expõe.
A paixão de Landulfo por coleções de moedas começou na infância, tendo uma influência direta dos jogos de cartas de seus avós. “Minha primeira coleção foi vendo meu avô e meus tios jogando buraco, e para as cartas não voarem, usavam moedas antigas. Foi a partir disso que eu ganhei minha primeira moedinha de 400 réis de 1901 que até hoje tenho”, conta.
Objeto, memória e afeto
Humberto Costa, 59, é dono do Espaço do Colecionador no Orixás Center, onde comercializa produtos de seu acervo pessoal. Ele afirma que as conversas que envolvem histórias sobre objetos com valor afetivo motivam mais do que as próprias vendas. “Gosto de trocar uma ideia, porque viajamos o mundo inteiro sem sair de casa”, declara o autointitulado colecionador de coleções.
Câmeras fotográficas, discos de vinil e telefones antigos são algumas de suas coleções que, ao mesmo tempo em que fazem parte de seu acervo, estão disponíveis para venda ou troca. Humberto explica que seu trabalho é uma espécie de reciclagem, pois esses itens podem fazer parte de várias coleções ao longo do tempo. “Existem milhares de peças aqui, tudo é meu temporariamente. Algumas coisas vão se perder no caminho, outras vão ser danificadas, mas a maioria fica. Então outras pessoas vão ser donas daquilo que é meu hoje”, explica.
“é uma forma de manter o colecionismo vivo, para que a história da sociedade não se acabe”
gerson coleções
Para Gerson Coleções – como prefere ser chamado -, 53, colecionador de medalhas, moedas e cédulas, apresentar seu acervo para o público também influencia na forma como as trocas de experiências ocorrem. “Eu me vejo tanto como um colecionador nato, como também um conservador nato, porque mantenho minhas peças todas organizadas para qualquer pessoa que pegue, sinta prazer em olhar. É uma forma de manter o colecionismo vivo, para que a história da sociedade não se acabe”, afirma.
Criado em uma casa onde a música era presente, Rogerio Bigbross, 51, produtor cultural, recorda: “tinha muita música, meu pai sempre ouviu de tudo, de Trio Irakitan a Beatles. Nessa época o vinil era usado no final de semana, em festa de família”. O primeiro disco da sua coleção foi Fantasminha Pluft de Maria Clara Machado, que ouvia na sua antiga vitrola.
A paixão do produtor surgiu mesmo em 1991, com o primeiro emprego na loja Bazar Musical. “Desde então não me separei mais da minha coleção, que só foi aumentando”. Bigbross opina pela liberdade de escolha na maneira de escutar música, mas não esconde a sua preferência. ”Cresci pegando na capa [de disco], abrindo o encarte. Uso Spotify ou Deezer só para conhecer bandas novas que não saíram no vinil ou não têm mídia física”, relata.
“acredito que essa nova geração terá outros produtos para colecionar, seja nas nuvens digitais ou como os seus avós e bisavós colecionavam”
edval landulfo
A parte essencial do colecionismo é o prazer de ver, tocar e contemplar artigos que carregam memória e afeto. Ao contrário, no mundo digital, inovações como os NFTs chacoalham o significado de colecionar por conta de sua imaterialidade. “Acredito que essa nova geração terá outros produtos para colecionar, seja nas nuvens digitais ou como os seus avós e bisavós colecionavam”, projeta Edval Landulfo.
Ao mesmo tempo em que alguns tipos de itens coletados são mantidos em boas condições de conservação, outros também podem funcionar como uma coleção, sem que tenha esse caráter inicial dentro de um acervo. O que importa, no final, é a afetividade, que funciona como memória de algum local ou de algum acontecimento.
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