História de vida do artista e socioeducador Mestre Jackson
texto Gabriel Vintina e Luanda Costa
multimídia Eduardo Santana
capa Eduardo Santana, Reuel Nicandro e Yan Inácio
diagramação Rafael Cerqueira
audiodescrição Sofia Conceição
Sob o sol escaldante da Praça das Artes, no Pelourinho, aguardávamos a chegada do precursor do samba-reggae e mestre da batida afro-baiana. Jackson Nunes, 62, socioeducador e produtor de grandes composições, faz de cada nota, cada batida, uma lição valiosa. O percussionista não apenas liderou o movimento do axé music, mas o fez com as mãos, panelas e tambores.
Nascido nos arredores da cidade de Candeias (BA), Mestre Jackson mudou-se para Salvador aos quatro anos de idade. No coração do Centro Histórico encontrou muito mais do que um lar. Entre as ruas impregnadas de história e os batuques que ecoavam pela cidade, mergulhou de cabeça na arte e na cultura que moldariam sua vida para sempre.
Imerso em um ambiente sonoro, musical e negro, o artista foi de menino aprendiz a grande educador. No dia da entrevista, ocorria um ato político nas ladeiras da região, paralelamente aos shows da celebração de aniversário da capital baiana. O misto de política e arte no local nos deu a prévia dos fundamentos e raízes do musicista.
A pretensão e orgulho de ser sua própria referência alimentam a autoestima do ritmista, engrandecendo-se ao falar de música, transformação e patrimônio, com um sorriso no rosto. “A gente ficava tomando conta de carro, batucando na chapa, procurando a primeira oportunidade de pegar em um instrumento de verdade”, relembra. Suas habilidades percussivas nos levaram a refletir: quantas batidas como as de Mestre Jackson cruzaram e moldaram a história da música?
Legado do tambor
O multi-instrumentista acompanhou os primeiros passos do que hoje é um dos símbolos da musicalidade baiana, o Olodum. Com o bloco afro viajou por dezenas de países, para realizar shows e oficinas de percussão. Nesse caminho, a sua carreira ganhou forma e o fez desbravar outros ritmos, lugares e sensações, como a de ser reconhecido para além do carnaval.
Na década de 1970, Mestre Jackson e o Olodum surgiram como forças culturais significativas na cena musical baiana, em um período marcado por intenso preconceito racial. “Havia muita repressão. Quando pessoas negras se destacavam, a polícia saía perguntando ‘O que é isso aqui? É uma manifestação de negros?’ Então não foi fácil para a gente, mas foi político, né?”, conta.
“quando o negro bota a cara em algum lugar, é visto como uma afronta”
mestre jackson
O surgimento de blocos afro posteriores ao Olodum traduz o contínuo movimento de emancipação cultural e política da comunidade negra de Salvador. “Com o surgimento desses blocos a negritude começou a despontar, mesmo que com muito preconceito em torno dela. Quando o negro bota a cara em algum lugar, é visto como uma afronta. E tudo isso me dá a régua e o compasso, porque a música também tem as suas ingratidões”, reflete.
Sua entrada no grupo foi como o vislumbre de um sonho. Já sua saída esboça um certo mistério. O fim da participação do mestre na banda, em 1988, é entendida como mera divergência musical entre ele e Neguinho do Samba, a quem é frequentemente atribuída a fama de ser um dos únicos responsáveis pelo legado do axé music e do samba reggae. Ambos, no entanto, não foram criadores dos termos: o primeiro foi cunhado pelo jornalista Hagamenon Brito, e o outro, pelo cantor Paul Simon em visita ao Brasil, algo reiteradamente elucidado por Jackson.
Mas seus feitos não pararam por aí. Depois do rompimento com o grupo, ele formou a Raízes do Pelô, uma inovação na cena musical, pois mostrou aos músicos que era possível criar bandas de percussão sem necessariamente fazer parte de um bloco afro. Fundada em 1988, saiu em turnê com Gal Costa quando o cachê do Olodum fez com que os contratantes procurassem uma banda similar.
A experiência dos palcos, compartilhada com outros artistas, dentro e fora do Brasil, foi enriquecedora para o percussionista. Com a própria Gal, o futuro mestre não só aprendeu que não se pode mascar chiclete em uma apresentação teatral, mas também a necessidade de adaptar a levada de um batuque a depender da voz que o conduz. Autor de uma grande discografia, marcou presença em gravações da Banda Reflexu’s, Sarajane, Chiclete Com Banana e Baiana System.
O Pelourinho não é mais aquele!
O Centro Histórico de Salvador foi uma verdadeira escola para Mestre Jackson. A imersão nas manifestações culturais do Pelourinho foi fundamental para sua formação pessoal e artística. “Nós, moradores dos anos 1960, bebemos da fonte de todos os sentidos de vivência dessa região. A gente foi vivendo muito do que tinha, desde as escolas de samba daquela época até a capoeira”, conta.
Durante nossa conversa, as memórias ganhavam vida. Mestre Jackson compartilhava, com um brilho nos olhos, o relato de seu encontro com a arte de criar sons. “Meu primeiro contato com a música foi ainda criança. Era mais ou menos assim: eu estava descansando e ouvia alguns batuques lá no fundo de casa. Então olhava e tentava reproduzir nas panelas da cozinha.”
Das panelas que serviam de instrumentos musicais em sua casa até as ruas onde se tornou regente do Grupo Olodum, o musicista experimentou diversas expressões artísticas pelo bairro. “A gente, garotão, aqui no Centro Histórico, fez de tudo. Eu comecei com capoeira, depois teve um projeto social para tentar recuperar a comunidade feito pela Fundação do Patrimônio Artístico. Fiz dança, teatro, um pouco de karatê, boxe e balé”, recorda sem modéstia.
A atual sede do grupo Afoxé Filhos de Gandhy foi, por muitos anos, a sua residência. Para o artista, o cenário do Centro Histórico mudou drasticamente nos últimos anos. O que até então era um bairro residencial, perdeu, ao longo do tempo, os seus moradores, tornando-se a cada dia mais um espaço turístico e comercial. ”Pelourinho não é mais aquele. Olha a cara dele. Você não fica à toa. Tem muita gente boa”, canta com saudosismo, lembrando sua composição, Cartão Postal.
No Fundo do Meu Quintal
Com uma carreira que o levou dos palcos à sala de aula, Mestre Jackson é um exemplo do poder transformador da música aliada ao ensino. Quem tanto recebeu da educação e tanto contribuiu para o mundo da música, hoje trabalha incansavelmente como socioeducador, devolvendo todo o aprendizado e produção acumulados ao longo dos anos no âmbito cultural.
O primeiro contato do musicista com a pedagogia foi na década de 1980, quando assumiu o papel de professor na Escola Banda Olodum Mirim. Na instituição, compartilhou seu conhecimento com crianças, muitas das quais agora integram a formação do grupo principal. Com esse impulso, passou a desenvolver o trabalho educativo na Fundação da Criança e do Adolescente nos últimos 27 anos.
“a gente sente orgulho quando vê um jovem vencer [as adversidades] e decidir aprender a tocar um instrumento”
mestre jackson
Mestre Jackson reconhece e valoriza cada estudante com quem teve a chance de conviver, relembrando carinhosamente as histórias e o impacto que teve em suas vidas. “A gente sente orgulho quando vê um jovem vencer [as adversidades] e decidir aprender a tocar um instrumento.” Muitos deles foram encaminhados para o Olodum e Timbalada, outros encontraram seu caminho na música tocando em igrejas e bandas.
O papel de socioeducador para Mestre Jackson é tão importante que, mesmo durante a pandemia de covid-19, encontrou maneiras criativas de continuar compartilhando sua música e conhecimento. Através do projeto intitulado “No Fundo do Meu Quintal”, realizou lives em sua casa, onde não apenas mostrava sua habilidade na percussão, mas também dividia suas experiências com o público.
“ou você já era um ritmista batuqueiro ou vinha de um terreiro de candomblé.”
mestre jackson
Para Jackson, o cenário do ensino musical passou por significativas transformações desde sua infância até os dias atuais. O artista pondera sobre a evolução e democratização do acesso ao ensino de música ao longo do tempo, reconhecendo os avanços alcançados nessa área. “Naquela época não havia o mesmo vínculo sócio-cultural e educativo que muitas pessoas têm hoje. A dinâmica pedagógica para aprender percussão era bem diferente. Ou você já era um ritmista batuqueiro ou vinha de um terreiro de candomblé.”
A trajetória de Mestre Jackson, entre os ritmos e cores do Pelourinho, não se resume apenas a sua maestria percussiva. Sua dedicação à educação musical, evidenciada em décadas de ensino, revela um compromisso com o legado cultural e a formação das novas gerações. Seu impacto transcende as fronteiras do palco, deixando uma marca na história da música baiana e na vida daqueles que têm o privilégio de aprender com ele.
Essa reportagem foi produzida por Gabriel Vintina e Luanda Costa, ambos estudantes de Jornalisno na Universidade Federal da Bahia e integrantes do Programa de Educação e Tutorial em Comunicação.
Fotografia: Samara Said/ Labfoto © 2024
Assistência: Lourdes Maria/ Labfoto © 2024
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Amei essa belíssima história de vida cultural, construída com muito esforço e dedicação. Sei que não foi fácil lidar com o preconceito, mas a determinação foi maior e o grande Mestre Jackson pode desenvolver seu talento e multiplicar para muitos. Parabéns!!
Axezao no seu coração mano Jackson..um orgulho para mim em ter vc a frente do grupo percussão que fundei na fundac ainda no governo ACM e secretário ação social Antônio Rodrigues que viu na banda dos meninos dentro da unidade no beiru a porta para ressocialização dos nossos educandos em conflito social..eu um instrutor de arte tocando por um acidente na levada do pelo de mestre Waltinho do chiclete na tv um dia fui cobrado pelos meus alunos da nossa oficina de serigrafia ..olha o Cesar aí tirando onda de músico e nós aqui presos sem acesso a batucar..fiquei matutando e fui descobrir que no almoxarifado da fundac tínhamos diversos instrumentos antigos de percussão de nossa antiga escola de Maragogipe ocupando espaço e sem serventia alguma..fui a luta e consegui com um serralheiro soldador engembrar naqueles instrumentos de forma a termos uma banda percussão dentro da unidade de infratores da fundac..depois de muita luta e mais de 4 diferentes maestros consegui lhe trazer para dentro da fundac e desde então es realmente o mestre de todos nossos educandos…parabéns e lhe agradeço muito pela sua perseverança em se dedicar aos nossos educandos