Passo a passo, trilhas de longo curso se multiplicam ao redor do Brasil.
texto Breno Bastos
multimídia Jade Oliveira e Luiza Gonçalves
diagramação Jade Oliveira
narração Nadja Anjos
colagem Anderson Figueiredo
Hoje, quem quiser cruzar a cidade do Rio de Janeiro a pé pode fazer esse trajeto através de caminhos repletos de vegetação preservada. Na capital fluminense, município que abriga algumas das maiores florestas urbanas do mundo, unidades de preservação permitem a manutenção de parte da flora e fauna locais mesmo com o crescimento da metrópole.
A ideia de criar um caminho que possibilitasse aos moradores e visitantes a travessia da cidade em meio a um corredor verde surgiu por volta de 1996, com a idealização da Trilha Transcarioca. Foi preciso cerca de duas décadas de trabalho e diálogo entre a sociedade civil, organizações não-governamentais e as três esferas do governo até a sua inauguração oficial, em 2017.
Com 23 dos seus 25 trechos previstos já implementados, a Transcarioca, que percorre cerca de 180 km por sete Unidades de Proteção Integral, tornou-se a primeira trilha de longo curso brasileira. Foi a partir da sua criação que nasceu a Rede Brasileira de Trilhas de Longo Curso (também conhecida como Rede Trilhas) e os projetos de desenvolvimento de empreitadas similares começaram a expandir-se pelo país. A inspiração para essa iniciativa, no entanto, veio com um exemplo mais antigo, que teve seu início na primeira metade do século passado.
Caminhos abertos
Em 1921, o engenheiro florestal estadunidense Benton MacKaye publicou um artigo no Journal of the American Institute of Architects propondo a criação de uma trilha contínua ao longo da cadeia de montanhas Apalaches, entre os estados norte-americanos do Maine e da Georgia, totalizando cerca de 3.600 km. A ideia foi abraçada por grande parte da comunidade excursionista do país e, com o trabalho de voluntários, a sinalização do trajeto foi finalizada em 1937.
Atualmente, a Appalachian Trail, como ficou conhecido o projeto de MacKaye, atrai por volta de dois milhões de visitantes por ano, sendo que cerca de duas mil pessoas percorrem toda a sua extensão. O sucesso dessa experiência levou ao desenvolvimento de um grande número de trilhas ao redor do mundo, em países como Chile, Alemanha, África do Sul, Líbano, Japão, entre outros.
A chegada do movimento das trilhas de longo curso no Brasil foi diretamente influenciada por essa iniciativa. A partir da experiência da Trilha Transcarioca, essa ideia deu origem ao projeto de uma Appalachian Trail brasileira, também seguindo o curso de uma cadeia de montanhas no território nacional.
Partindo do percurso da Transcarioca, propôs-se a criação de um caminho que percorresse a Serra do Mar de norte a sul, em uma trilha regional ao longo de 1.500 km de montanhas pelo litoral do Rio de Janeiro até o Rio Grande do Sul. Essa trilha, por sua vez, seria incorporada a um projeto ainda maior e mais ambicioso, a travessia do Oiapoque ao Chuí, ligando os dois extremos pela costa brasileira.
Essa iniciativa já está nos planos da Rede Trilhas para o futuro e tem apoio dos Ministérios do Turismo e do Meio Ambiente. Além disso, exemplos como a Great Trail canadense, com seus mais de 22.000 km, e a Pacific Crest Trail, que liga o México ao Canadá, mostram ser possível criar longos caminhos a partir da união de diversas seções menores. A versão brasileira desses percursos pode parecer mais um sonho distante do que realidade, mas segue na direção de um dos objetivos por trás do conceito das trilhas de longo curso: a conectividade.
Pontos de Encontro
À medida em que trilhas locais são organizadas, o encontro entre os trajetos já estabelecidos permite a criação de seções regionais, nacionais e até mesmo internacionais. No entanto, não só a comunidade excursionista se beneficia dessas ligações, mas também o meio ambiente.
A dispersão das áreas preservadas é uma das principais dificuldades ao buscar recuperar o equilíbrio de ecossistemas degradados. A distância entre essas regiões leva a consequências significativas para a fauna local, que tem seu habitat limitado a um território com menos recursos biológicos.
Para que uma trilha de longo curso seja estabelecida, é preciso que o trajeto pelo qual ela passa esteja devidamente recoberto pela vegetação. Para isso, são feitos acordos de preservação das áreas sede dos trajetos. Assim, regiões já degradadas são recuperadas, de modo que, junto às trilhas, também são criados corredores ecológicos.
Essas ações resultam em um dos principais benefícios ligados às trilhas de longo curso: a conservação. O princípio é fortalecido pela possibilidade do uso público de áreas preservadas pela população, conscientizando quanto à necessidade de proteger o patrimônio natural do país.
Com isso em mente, a Rede Trilhas trabalha com três pilares em seus projetos: saúde e recreação, geração de emprego e renda, além da já mencionada conservação. Com a estruturação de trilhas bem sinalizadas, capazes de receber um número maior de visitantes, multiplicam-se os trajetos possíveis para caminhadas ao ar livre e as opções de atividades de lazer benéficas à saúde da população.
O aumento da visitação das regiões das trilhas leva à geração de emprego e renda para as comunidades locais. As populações se beneficiam especialmente do setor de serviços, por vezes fortalecido através de atividades de formação e capacitação ao longo do período de elaboração das trilhas. No fim, os três pilares relacionam-se entre si, como ressalta Pedro da Cunha e Menezes, 57, diretor da Rede Brasileira de Trilhas e idealizador da Trilha Transcarioca:
“Sem um dos pilares você não para de pé. Se não tiver recreação de qualidade, não tem o segundo pilar, de geração de emprego e renda. Se você tem a recreação, você atrai o público e a partir disso a geração de emprego e renda torna vantajoso também para o pequeno agricultor ou pequeno proprietário atuar no turismo. E para isso, torna-se importante ter uma mata preservada que atraia o público. Assim você passa a ter o terceiro pilar, que é a conservação.”
Próximos Passos
Atualmente, a Rede Trilhas já sinalizou um total de cerca de 5.500 km em 25 unidades federativas brasileiras. Desse total, o percurso mais próximo da Bahia passa pela região do Rio São Francisco, onde já foi iniciada a sinalização da Trilha Velho Chico, projeto que pretende ligar a sua nascente à foz, percorrendo um trajeto do estado de Minas Gerais até Alagoas.
O processo de elaboração de uma trilha junto à Rede costuma passar por algumas etapas principais. Inicialmente, um grupo de voluntários apresenta o projeto de sinalização. A partir de então, o projeto é desenvolvido aos poucos, como explica Pedro da Cunha: “no primeiro estágio, a gente diz que a trilha já existe e não é mais uma mera ideia, ela já está sinalizada pra que ninguém se perca no caminho. Então seguem vários outros estágios que vão agregando valor. Essa trilha tem website e redes sociais? Um mapa bom? Guias que operem a trilha? E assim por diante.”
Carlos Eduardo Ribeiro, 63, gestor da reserva Mata da Onça (AL) e um dos idealizadores da Trilha Velho Chico, compartilha o trabalho prévio necessário para a criação desse percurso: “com o conhecimento local que tínhamos, fomos praticamente em todos os povoados e fizemos o levantamento do que cada local poderia oferecer em termos de recursos humanos, hospedagem, tipo de telefonia, transporte em caso de acidentes, se havia restaurantes, padaria, tudo isso.”
A primeira parte do percurso foi inaugurada em 2018, com apenas cerca de 6 km ligando o povoado de Ilha do Ferro à reserva Mata da Onça. Apesar do começo modesto, o movimento tem se expandido para outras partes da região, com a adição de mais dois trechos da trilha dentro da reserva e outro na cidade de Piranhas (AL). A expectativa é de que no futuro seja possível sinalizar os cerca de 2.800 km planejados, ligando a foz do São Francisco à Serra da Canastra, em Minas Gerais. A realização desse percurso por sua vez permitiria o encontro com as trilhas da Estrada Real e do Oiapoque ao Chuí.
Além dos planos futuros de trajetos como a trilha Velho Chico passarem pela Bahia, o estado já possui um número considerável de percursos de longa duração em meio a áreas preservadas. Uma das regiões do estado mais propícias para esses percursos é a Chapada Diamantina, com uma história de vias utilizadas pela população em seu cotidiano e para o comércio, além de, mais recentemente, ligadas ao ecoturismo. Entre as trilhas mais conhecidas da região, a travessia do Vale do Pati é um dos trajetos que se destaca, oferecendo diversas opções de caminhos partindo de diferentes municípios ao seu redor. O trajeto atrai um número considerável de visitantes todos os anos, movimentando a economia local e gerando conexões entre a comunidade do Pati e os caminhantes.
A guia e administradora Camila Lopes, 30, da Agência Vale do Pati, atesta essa percepção. Após uma série de viagens, e a partir da demanda de amigos por mais informações sobre a travessia, decidiu investir na criação de uma empresa de ecoturismo no vale.
“No ano de 2016, eu e meu marido decidimos fazer o Pati sozinhos. Estudamos bastante, pegamos referências, compramos mapas e fizemos a trilha… Conhecemos todas as trilhas, e depois disso simplesmente não conseguimos ir para outro lugar da Chapada. Com o tempo, nossos amigos também começaram a se interessar”, relata.
Para Camila, a beleza natural da região não foi o único motivo por trás do encantamento pelo vale, mas também um conjunto de outros fatores. “O Vale do Pati é um lugar incrível, desafiador, transformador e extremamente meditativo. Você tem que estar presente em cada segundo na trilha, prestando atenção em seus passos. É uma experiência única.”
A estudante Maria Antônia Fernandes, 22, já percorreu duas vezes a trilha do Vale do Pati e também é uma das entusiastas das caminhadas ao ar livre na Bahia. “Desde que eu era criança já viajava para fazer trilhas com meu pai. Nessas experiências sinto que acabamos nos integrando mais com a natureza, com o mundo e com nós mesmos”, relembra.
“Sinto que as trilhas de longo curso acabam gerando relações muito mais fortes entre os visitantes e os moradores por promover uma troca de diferentes experiências de vida e uma diversidade que é valorizada a partir disso”
maria antônia fernandes
Também por isso, ela considera positivo um desenvolvimento das trilhas de longo curso no estado: “eu acho essa iniciativa muito boa, gostaria de aprender a me localizar por conta própria nas trilhas. Além disso, a sinalização evitaria que as pessoas se perdessem no trajeto. Também sinto que as trilhas de longo curso acabam gerando relações muito mais fortes entre os visitantes e os moradores por promover uma troca de diferentes experiências de vida e uma diversidade que é valorizada a partir disso.”
Após retornar às atividades, paradas pela pandemia, não só os trabalhos de criação e manutenção de trilhas estão sendo retomados ao redor do país, mas também o interesse e a disponibilidade da população em vivenciar os trajetos já existentes, passo a passo reabrindo os caminhos das trilhas de longo curso ao redor do Brasil.
A Fraude é uma revista laboratorial do Programa de Educação Tutorial em Comunicação (PETCOM) da Facom, UFBA e não possui fins lucrativos. Caso uma das imagens te pertença ou em caso de dúvidas, entre em contato pelo email revistafraude@gmail.com para acrescentarmos ou retirarmos da publicação.
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