Relatos de quem faz o estilo vintage/retrô uma filosofia de vida
texto Felipe Sena
publicado em 18.05.2023
Em “A História inventando Moda” (2010), Santos diz que “a necessidade de manter o passado em evidência pode ser atribuído ao fato de o sujeito querer dar continuidade a algo que, para ele, tem alguma representatividade”. Essa é uma das motivações que levam pessoas adeptas da moda vintage/retrô fazerem disso um estilo de vida.
Em janeiro de 2022, um levantamento feito pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) com base em dados da Receita Federal, mostrou que no Brasil, houve um crescimento de 48,58% na abertura de estabelecimentos que comercializam produtos do segmento vintage entre 2020 e 2021.
Em “Design retrô: um desafio da contemporaneidade em reconhecimento ao passado” (2011), Rohenkohl propõe que o vintage se refere a um objeto que foi do passado, incorporado ao repertório atual e está presente no segmento da moda. Já o retrô está relacionado a um objeto produzido na atualidade, inspirado em características formais do estilo do passado.
O que foi moda
Uma silhueta que tem projeção e com cintura menos marcada: camisas de manga longa bufante, bermuda de alfaiataria, de cintura alta e saia, são algumas das peças que fazem parte do guarda-roupa de Gabriela Lira, 26, estilista e produtora de conteúdo para as redes sociais. Sem esquecer dos acessórios de cabeça, bolsa cloche e broches. Os tons da vez são cores sóbrias, como azul marinho, o vinho, o marrom e o preto, inspirados no que era usado em “tempos de aperto” na Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial. Assim como as mulheres da década de 1940, a maior parte de suas peças foram produzidas por ela mesma, como também as que são vendidas em sua loja online, a https://www.fatalevenus.com.br/
Fiel apenas a década de 1920, já no dress code de Esmeralda Montevour, 18, não podem faltar turbantes, trazidos para o Brasil através do orientalismo turco, tiaras combinando com a cor do vestido, casacos; broches em Art Decor, movimento artístico arquitetônico da época, presente na arte, na moda e na arquitetura, que trazia a ideia de futurismo, com o advento da industrialização. Além disso, também é adepta “fervorosa”, como diz, da meia calça, que na época era produzida em nylon. Nos vestidos autênticos encontrados em brechós estão sempre presentes os tecidos sintéticos, como o poliéster, o raiom, mas o protagonista é o algodão.
A arte-educadora, Camille Brison, 29, gosta mais décadas de 1940, porque traz consigo a escassez de materiais voltados à aparência e adaptação em tempos de crise, e 1950, por causa da sua exuberância e glamour, como nos looks luxuosos ostentados por Marilyn Monroe em “Os Homens Preferem as Loiras” (1953). No cotidiano, principalmente por questões financeiras, Camille opta por mesclar os estilos de décadas diferentes. “Gosto dos casacos bem estruturados dos anos 40. Uso o elastano, a lycra, que não é considerada dos anos 50, ela teve seu auge nos anos 80; viscose, cetim, casacos de pele falsa, casacos de tuíde, lã batida, também veludo cotelê e molhado”.
De acordo com a professora de Jornalismo da Unime e pesquisadora em cultura, moda, arte e sociedade, Renata Leahy, 38, o estilo vintage ou retrô tem ligação com a relação que a sociedade estabelece em que entram em jogo valores comunitários que são refletidos na valoração pessoal e como se quer apresentar socialmente. “A vestimenta se alia a outras formas expressivas do ser humano, como a expressão verbal vocalizada e os gestos corporais, para realizar a composição da aparência que coloca as pessoas no mundo e as conectam aos outros, estabelecendo diversas formas de relacionamento e trocas”, afirma.
Mais do que vestimenta, é personalidade
De vestido preto com traços em branco, de cintura baixa, modelo autêntico da década de 1920, comprado na Inglaterra, segundo ela; luvas pretas, colar de pérolas e anéis, Esmeralda, de antemão, diz que seu cabelo preto em corte Chanel, é inspirado em Louise Brooks, atriz norte-americana, pioneira do corte na década de 1920. Como também nas melindrosas, que eram moças que na época dançavam provocativamente o Jazz e o Charleston, usavam maquiagem forte, bebiam e fumavam.
“ainda que muitas vezes considerada fútil e superficial, na verdade a moda é capaz de expressar visivelmente aquilo que somos, incluindo aquilo que desejamos parecer aos outros em visualidade e comportamento”
renata leahy
Renata diz que a moda é uma forma de se mostrar para a sociedade como pretende-se ser visto e nisso está implicado valores simbólicos.“Ainda que muitas vezes considerada fútil e superficial, na verdade a moda é capaz de expressar visivelmente aquilo que somos, incluindo aquilo que desejamos parecer aos outros em visualidade e comportamento”, afirma.
Para quem vê Camille, de cabelos curtos, loiros e encaracolados e batom vermelho, não é difícil perceber a semelhança com a memorável Marilyn Monroe, apesar da atriz não ser uma das suas artistas preferidas, ela tem como musa inspiradora Greta Garbo. Reclusa, a atriz sueca se aposentou com 36 anos, quando era a mais bem paga de Hollywood e permaneceu fora dos holofotes até a sua morte em 1994, em Nova York.
Apesar de mesclar estilos de décadas diferentes, o conhecimento sobre a década de 1940 foi a “virada de chave” para que Gabriela adotasse o estilo na sua vida. Ela viu em um tempo nebuloso e sombrio que pairava na época, a contenção e discrição de gastos, um modo de vida interessante em muitas mulheres que aguardavam seus esposos e filhos chegarem ou não da Segunda Guerra Mundial.
“a moda é uma coisa bonita, mas a gente não pode esquecer em minuto nenhum que milhões de pessoas naquela época estavam sendo mortas, que pessoas nunca mais voltaram, que pessoas perderam familiares. Então acho muito bonito a resiliência das pessoas daquela época. As pessoas de 1940, me fizeram amar a moda de 1940”
gabriela lira
Gabriela acredita que a adoção dessa década para sua vida transcende a vestimenta e se amplia para outros âmbitos. “As pessoas de 1940 tinham muito isso: ‘o seu inimigo não pode te ver abatido’, você precisa levantar da sua cama, se arrumar, colocar seu batom vermelho e continuar firme e é algo que serve para a nossa vida. Porque a moda é uma coisa bonita, mas a gente não pode esquecer em minuto nenhum que milhões de pessoas naquela época estavam sendo mortas e que centenas de pessoas foram para o fronte, que pessoas nunca mais voltaram, que pessoas perderam familiares. Então acho muito bonito a resiliência das pessoas daquela época. As pessoas de 1940, me fizeram amar a moda de 1940”, diz.
“É bonito como as mulheres daquela época, mesmo em um momento difícil, complicado e com restrições, conseguiam fazer as coisas em casa. O ‘Faça Você Mesmo’, era um grande dilema da década de 1940, que é você remendar, cuidar da sua roupa, da sua bolsa, ter essa preocupação. Aquela sensação de não saber qual vai ser o futuro do seu país e é interessante ver que a modelagem funciona até hoje. Então a moda, a beleza, é uma maneira de resistência”, completa.
Nos primeiros anos da Guerra (1939-1945), o principal país inimigo da Alemanha Nazista foi a Inglaterra. Nesse período, os ingleses ainda tinham colônias e dependiam delas para obter algumas matérias-primas. Assim, os nazistas dificultaram o transporte de cargas dessas colônias para o Reino Unido. Londres se tornou o principal alvo de ataques e era bombardeada constantemente.
A partir disso, a guerra que era para ser de curta duração, se estendeu, e a indústria têxtil sentiu seus efeitos. Com a redução dos insumos, o governo inglês elaborou um plano de produção de roupas que economizasse ao máximo materiais na confecção de peças, surgindo o sistema de roupa utilitária. Ou seja, roupas em que o seu propósito era mais importante que a sua função estética.
“É a questão da cultura, gostar de uma época somente por estética, acaba desistindo muito fácil, porque a moda é influenciada por uma série de fatores. Se uma pessoa gosta do [estilo] de 1940 e não se interessa por questões políticas da Guerra, fica complicado, porque a Guerra interferiu [na moda]. Tem uma moda pré-guerra, durante a guerra e pós-guerra”, afirma Gabriela.
Um olhar para o passado
A menina que tinha 12 anos, no 6° ano, nascida em Osasco, região metropolitana de São Paulo, além de residente por 5 anos no interior da Bahia, não imaginava que a imposição da mãe para ler “O Crime do Padre Amaro” (1875), para apresentação de um seminário na escola, pudesse transformar a aversão à leitura em amor pelo estilo clássico de se vestir. “Eu fiquei encantada pelo século XIX, eu via as descrições da roupa e não sabia que roupas eram aquelas, mas ficava imaginando os bailes, os compositores. Se o autor citava um poema, eu pesquisava”.
Gabriela também diz que as telenovelas tiveram papel fundamental na sua vida. “Eu gostava de ver ‘Amor Real’ (2003) que era transmitida no SBT, e ambientada no século XIX, tinha aquelas crinolinas e eu queria uma também, sem nem saber o que era. Eu pegava um guarda-chuva e colocava um lençol por cima, ficava brincando em casa e sonhando, porque achava aquelas roupas muito bonitas, depois vi ‘A Escrava Isaura’ (versão de 2004) e assim foi”, relata.
Com o cabelo médio ondulado ruivo e um bom batom vermelho, Gabriela parece ter saltado de um filme Noir, um dos seus gêneros favoritos, estrelado por Veronica Lake, na década de 1940, no entanto, têm Dita Von Teese, artista burlesca norte-americana, que mistura o estilo dos anos 1940 e 1950, uma de suas principais inspirações. Foi assim que se apaixonou pelo estilo Pin-Up. As Pin-Ups fazem parte de uma subcultura do meio da moda.
Surgindo na década de 1930, embora suas raízes se remontem ao século XIX, elas se popularizaram na década de 1940 e eram conhecidas pelas ilustrações femininas com finalidade de publicidade, principalmente nos Estados Unidos e Europa, de acordo com Gabriela. Atualmente, existem várias vertentes de estilo em um único fundamento; a exemplo das Pin-up Cheesecake, Pin-up Retrô Glam ou Old Hollywood, Pin-up Western, Pin-up Rockabilly, Pin-up Retro Bad Girl, Tiki Pin-up, Dark Pin Up, entre outras variações. “Eu descobri que havia uma comunidade no Brasil, que se vestia daquele jeito, mas por muito [tempo] eu só gostei, não me vestia, não fazia penteado”, diz.
Assim como Gabriela, Esmeralda também diz que o apreço pela moda vintage é algo que vem da infância. “Desde pequena eu me fascinei pelo passado, pela moda e pelo estilo de vida. Eu nunca me vi ligada a essa época, sempre tive isso dentro de mim. Isso me foi apresentado através da TV, em livros, revistas. A década de 1920 diz muito sobre mim mesma e o que eu pensei na minha vida inteira”, diz com um riso contido e de maneira discreta como a personagem Bianca, em ‘O Cravo e a Rosa’ (2000).
O gosto por peças vintage também vem desde quando Camille era criança. “Eu sempre gostei muito de moda e de copiar desenhos e desenhar vestidos. Quando eu vi ‘A Noviça Rebelde’ (1965) pela primeira vez, eu pirei no figurino, nas danças, nas canções e cada vez que eu via alguma coisa vintage numa revista, aquilo despertava algo dentro de mim”, relata.
A personalidade estética vintage/retrô de Camille também é refletida na decoração de sua casa. Ela ficou com objetos da casa da avó falecida, como um “missário”, de 1910, um convite de casamento, de 1950 e um livro antigo. “O fundo da minha casa parece um antiquário. Além disso, meu esposo trabalhou com restauração de móveis em casas antigas e algumas pessoas simplesmente jogavam fora os objetos antigos e isso fez com que tenhamos um acervo razoavelmente grande de objetos vintage”, relata.
A dificuldade em manter o estilo vintage
De acordo com estimativas da ThredUp, uma das maiores plataformas americanas de revenda, até 2027 as vendas de roupas usadas devem superar as das grandes marcas de fast fashion, e gerar até 20% da receita de uma empresa de luxo (dados da Bain & Company).
Gabriela diz que no Brasil as peças vintage são vendidas por preços altos, o que se torna difícil para os adeptos do estilo se vestirem de acordo com a época. “Quando se encontra peças de 1940 para trás é muito caro, porque são peças, muitas vezes, importadas, pois tem algumas pessoas do Brasil que saem do país e trazem coisas de lá, então acaba refletindo no preço. Às vezes, você encontra uma camisola por R$ 400, R$ 500 reais. Uma coisa que está fora da realidade de boa parte do Brasil”. “Se você pesquisar na internet: ‘vestido de festa anos 80’, é mais de 2 mil reais. Mas se você comprar um vestido da década de 1920 em um bazar, sai mais em conta. Aqui no Brasil é difícil”, diz Esmeralda.
Para Gabriela, o garimpo é uma das melhores saídas e não há necessidade de se ater aos moldes da moda de catálogo ou Hollywoodiana. “É possível encontrar uma peça que consegue se encaixar em outra época, para fazer uma coisa parecida. Recentemente, encontrei uma blusa de 1970 que serve perfeitamente em 1940, a gente não pode ficar preso a uma década”, afirma. “Eu tenho um modo de vida que eu não vou surtar se as coisas não estiverem em retrô, mas quando eu vou adquirir um objeto, se ele puder ser do estilo retrô, um tanto melhor”, diz Camille que tem um perfil no Instagram para vendas de peças vintage/retrô, a https://www.instagram.com/chez.camille.brecho/
O estigma de ser você mesmo
Há quem goste do modo de vestimenta vintage/retrô, mas como qualquer estilo ou coisa que fuja dos padrões preestabelecidos socialmente e considerado “comum” para os dias atuais, quem escolhe aderir a estética em seu cotidiano, é alvo de críticas negativas e preconceitos. “Sempre fui muito julgada pelas roupas que uso, por pessoas cis e também por pessoas trans, com falas como: ‘usando essas roupas, você está parecendo aquelas pessoas mortas em fotografia’. A minha avó, por exemplo, é uma delas. Ela diz que estou parecendo uma pessoa morta em um caixão. Eu acho que estou maravilhosa, linda, estou sendo eu mesma e é isso que importa”, diz Esmeralda.
“a atribuição do que tem sentido positivo ou negativo é resultado de certa necessidade de rebaixar o outro, considerado diferente, para a afirmação e manutenção de determinados valores já confortavelmente estabelecidos”
renata leahy
Renata afirma que a sociedade considerar o que é “comum” ou fora do “comum”, gera uma visão micro em relação à diversidade de formas de expressão. “A atribuição do que tem sentido positivo ou negativo leva a posturas excludentes sobre aqueles que se vestem de maneira considerada fora do comum, o que muitas vezes é resultado de certa necessidade de rebaixar o outro, considerado diferente, para a afirmação e manutenção de determinados valores já confortavelmente estabelecidos, diz.
Gabriela diz que quando se veste com o estilo da década de 1940, causa estranhamento nas ruas. “Se você usar chapéu, as pessoas olham estranho, torto, falo por experiência própria, porque eu já recebi olhares assim na rua. As pessoas olham como se eu fosse estranha, esquisita, mas as crianças por exemplo, gostam muito. As crianças não mentem, então eu fico com a opinião delas”, diz.
“por todos os motivos, as pessoas reparam. Seja por você ser trans, seja por você se vestir de forma diferente, seja por você gostar de uma coisa diferente, ir contra a manada, ter uma opinião diferente”
esmeralda montevour
“Por todos os motivos, as pessoas reparam. Seja por você ser trans, seja por você se vestir de forma diferente, seja por você gostar de uma coisa diferente, ir contra a manada, ter uma opinião diferente. As pessoas comentam, falam, mas eu não ligo nem um pouco. Não acrescenta, nem faz falta”, afirma Esmeralda. “Devemos levar em conta a importância da liberdade de manifestações através das roupas e da moda, que reelaboram valores sobre as vestes e são vias de expressão e afirmação de identidades e presenças em sua diversidade”, comenta Renata.
Para Gabriela as pessoas têm uma certa “dificuldade de olhar para o passado”, mas a forma como a sociedade agia nos anos que se foram tem muito a nos ensinar. “Não é querer resgatar valores antigos, coisas ruins desse passado. É olhar para coisas ruins do passado e aprender para não fazermos mais”. Henry David Thoreau diz: “É tão difícil observar-se a si mesmo quanto olhar para trás sem se voltar”. O valor simbólico de uma peça carrega memórias boas e ruins consigo, o que transcende o material, por isso é importante olhar para o passado para tentar mudar o presente.
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