texto Jade Oliveira e Pedro Antunes de Paula
Está na avenida Jequitaia, descendo da via expressa Bahia de todos os Santos. Como uma moça tatuada parada na esquina, se exibe decorada com grandes letrados tribalizados. Alguns possuem personagens dos artistas – ou vândalos, para alguns – em estilos e cores diferentes. Uma grande miscelânea ilegível para quem não conhece o alfabeto secreto da subcultura.
A avalanche de carros de todo dia apronta a via como um museu drive-tru: uma tela que todo dia é diferente. Ela acompanha o humor do tempo também. É uma nova forma de consumo, que extrapola para longe os museus.
Um catálogo que exibe parcela dos atores do pixo da cidade. E há, sempre, pontos invisíveis. Quem os fez? Como? Porque? São necessidades que pairam na observação da produção artística, seja qual for. Mas perceba: está fora da lógica de um quadro tradicional. Seus próprios nomes são seus quadros. Tem-se uma assinatura, mas não se sabe lê-la. A maioria ainda é analfabeta para ela.
Se sua função era dividir, demarcar, com a tinta, o muro se torna semente, e floresce dúvidas na mente de qualquer um. Provocação que muro cinza algum proporciona.
Vandalismo que alfabetiza
Uma comunicação fechada que esbarra nos olhos do povo como um enigma. O pixo é controverso. Considerado crime – pela Lei 9605 – Art. 65 -, expressão, esporte, lazer, ação política, arte e nenhuma dessas opções para alguns. Tudo misturado nas tintas que encostam na parede. E sangue. Tem sangue também.
Cultura que tensiona a relação entre bem público e privado, a mercadoria e o social. Posta na superfície dos centros urbanos, revela temas mais profundos. A degradação natural do cimento e da tinta das paredes contra o spray dos pixadores que, se pegos, levam cacetes e hematomas para casa – ou serviço social – ilustram uma supremacia dos bens às pessoas. As tintas saem, mas o sangue deveria continuar a correr dentro do corpo.
Runas anglo-saxãs, letreiros de bandas de metal e punk, e movimentos políticos contra a ditadura brasileira são algumas das referências que podem ter dado origem à cultura do pixo. Podem, porque em cada região do Brasil a cultura chegou de diferentes formas, e tomou proporções anatômicas próprias, de acordo com as realidades do espaço.
É moldado pela realidade, mas a transforma também. O pixo constrói uma educação alternativa, um alfabeto voluntário, original. Ilustra, literalmente, as possibilidades que pulsos sociais podem criar na comunicação. E tudo isso não tem nada a ver com beleza e julgamento artístico. E mesmo jogando para esse lado, o pixo é constante potencial criador de novas possibilidades estéticas para a comunicação artística.
“Letra de forma mano, e eu não entendo nada. Eu passei oito anos na escola, oitava série. Eu só consigo ler pixo só. Sou meio analfabeto, mas a pixação dá pra entender”, comenta William, uma das pessoas que participam do documentário PIXO, dirigido por João Wainer e Roberto T. Oliveira.
Seja colocando seu nome (a dita tag), seu personagem ou alguma frase, os pixadores transformam a cidade em uma grande tela branca pronta para ser utilizada. Em Salvador, o pixo, em sua maioria, acompanha o norte que a linha do horizonte proporciona. A gente faz aquela cobrinha pra comer o muro todo, com as letras da gangue em destaque e letrado baiano esticado. É o nosso diferencial”, comenta MINA, pixadora da cidade desde 2017.
O pixo é vandalismo de acordo com a lei. Mas nada é tão simples. “Não vai deixar de ser crime e se deixar vai perder a graça.”, comenta Suck, pixador de Salvador em entrevista. Enquadrado como crime ambiental no artigo 65 da Lei 9.605/98, a legislação brasileira também prevê o crime de dano prescrito no código penal, podendo ser cometido tanto em patrimônio público quanto particular. Quando flagrados pela polícia, os indivíduos podem ser levados à delegacia para assinar uma espécie de boletim de ocorrência, chamado termo de comprometimento de comparecimento (TCO), por ser classificado como um crime de menor potencial ofensivo. É assim chamado pois não se transforma numa denúncia, e sim no compromisso de prestação de pequenas penas, como o serviço comunitário.
“O pixo trava uma guerrilha simbólica. Ele não destrói nada. Ele ofende simbolicamente espaços que são reservados apenas para alguns”, comenta o apresentador do podcast Balanço e Fúria, retomando um termo do entrevistado Djan Ivson (Cripta).
Mesmo sendo o procedimento previsto pela lei, as práticas geralmente são outras. Em todo o seu processo de pesquisa para a construção da tese “Escritas Marginais”, Carla Mariani, graduada em Direito, com sua dissertação de Mestrado na área de Arquitetura e Urbanismo sobre a cultura do pixo, só teve acesso a vinte boletins de ocorrência em Salvador. Isso significa que as abordagens e “penas” praticadas pelos policiais permanecem na informalidade: a intimidação.
“Não tem nada de político no meu ato”
Suck, pixador entrevistado, faz rapel. De Águas Claras, sai com seu amigo Pantro escalando prédios, deixando suas marcas. Segundo ele, hoje é uma das pessoas que carrega o movimento da escalada nas costas. “Cada um tem sua realidade, sua vertente. Não tem nada político no meu ato.”
Apesar disso, acrescenta: “Pixo é errado, nois faz pq nois gosta disso. Eu falo por mim. Na real gosto de ibope, chamar atenção. Tô falando pro mundo. Tô vivo. Tô pixando. Tô aqui”, ele comenta em mensagens de texto.
Existe, portanto, uma reivindicação do próprio estado de vida por parte do pixador, coisa que não se limita a ele. São realidades, por maioria, atravessadas pela marginalização. Pela falta de acesso à própria cidade, ou falta de outros importantes recursos.
Suck demonstra como a atividade proporciona um reconhecimento da comunidade: Eu não digo que eu comecei a fazer essa parada porque “ah eu quero agredir o sistema”. Minha viagem mesmo é chamar atenção. Sou ibopista pra caralho.”
Fica contraditório, portanto, denotar a atividade como apolítica. Mesmo sendo encarado pelo sujeito apenas como lazer e esporte, a atitude, que inerentemente vai de encontro à lei e à ideia de propriedade, é, à sua maneira, também política.
Usar superfícies como tela é uma forma de ressignificação de um objeto que está inserido em um espaço que afeta todo o ambiente e indivíduos que por ali permeiam. “A pichação faz uma inversão. Diz: ‘Nós também somos donos disso daqui’”, fala Carla Mariani, em entrevista sobre sua dissertação.
A análise do objeto urbano deve sempre ser pontuada pelo seu impacto no meio social. “É o impacto no sentido de que ele [o objeto] opera circunstâncias não só para quem é proprietário, mas para o ambiente como um todo e para quem vai circular por ali”, acrescenta Carla.
Qual é a sua relação com a Arquitetura?
Me formei no Direito, que só está interessado em pensar o pixo a partir da criminalização, do direito penal. Não a partir da cidade como suporte ao pensamento. Por isso me abri para Arquitetura.
Você fala de direito à cidade ao longo do texto. O que é?
No Direito, o Estatuto das Cidades regula o direito aos equipamentos urbanos. Mas Henri Lefev diz que o direito à cidade é poder viver nela, participar, construí-la. A pixação também constrói esses espaços. Constrói presença. Ela diz: A gente também tá aqui constituindo, escrevendo memória da nossa existência”.
Me chama atenção no tema a tensão entre o público e o privado. O que você acha disso?
Mesmo o Direito defendendo a propriedade, ela precisa exercer uma função social. Ela precisa fazer sentido para mais gente que não seja somente aquele dono. Porque ela causa impacto no ambiente em que ela se coloca.
E um ponto bem difundido de que o pixo causa danos aos objetos?
Quando os pixadores são acusados de dano ao patrimônio, respondem que não há dano nenhum. A coisa continua lá. O muro continua lá cumprindo a mesma função que ele sempre cumpriu: cercar. Ele não inutiliza aquele suporte. Apenas ressignifica.
Qual a relação que a sociedade em geral tem com o pixo?
A questão da pixação é uma questão estética, não no sentido do bonito ou feio, mas no sentido do controle. Até que ponto eu consigo controlar a cor do meu muro, a intervenções que acontecem naquele suporte.
Você acha que essa relação com o pixo também pode ter a ver com gentrificação?
Absolutamente. Na pesquisa do mestrado fui atrás dos boletins de ocorrência sobre pixo. Aconteciam em zonas centrais da cidade, onde o olhar turístico está colocado, mesmo tendo pixo na cidade toda. Salvador sofre processos contínuos de gentrificação para ser vendida. É uma cidade mercadoria.
Para compreender qual é a tensão que o pixo provoca na ideia de propriedade privada pode-se buscar sua definição primordial. No artigo “Propriedade Privada: Do Caráter Absoluto à Função Social e Ambiental” por Giuliano Deboni, encontra-se: “De um ponto de vista positivo, a propriedade representa o direito do proprietário de gozar e dispor da coisa; a partir de um ponto de vista negativo, a mesma propriedade exclui todos os outros sujeitos diversos do proprietário (não-proprietários) do referido gozo e disposição.”
Ponto definidor da sociedade, essa perspectiva pode ser articulada dentro de uma estrutura de exclusão social. Um espaço em que a distribuição dessas propriedades é desigual, inicia-se uma reivindicação do próprio direito de se ter.
No mesmo texto, Giuliano aponta o civilista italiano R. Sacco: “ensina que no direito grego antigo, a propriedade é extremamente ligada à posse. A propriedade deveria apresentar-se como uma instituição óbvia e natural, tanto que a relação sujeito-objeto é expressa através de um simples genitivo (as coisas dele; ser dele)”.
A propriedade privada tornou-se um direito tão fundamental que os indivíduos passam a ser determinados a partir de suas posses. Uma espécie de sujeito-objeto, articulando o termo de Sacco. Passa-se a ser, apenas quando se tem.
O movimento do pixo tensiona a realidade dessa sociedade, mesmo que de forma inconsciente. Ao pixar um objeto, é reivindicado seu direito de uso. “Eu gosto de passar na rua e ver o meu nome”, disse Suck.
Mina, como pixadora e mulher, conta como é sair com os companheiros na noite: “Eu me considero sortuda porque nos caras da minha gangue eu posso confiar. Meu namorado também é da minha gangue. Já fiz rolé sozinha mas é tenso. Tudo pode acontecer. Qualquer homem é uma ameaça em potencial. O mecanismo de defesa que e tenho é a forma que eu me visto. Meu estilo é mais masculinizado e isso me ajuda. Tô sempre com o skate debaixo do braço, aí eu ganho respeito na rua.” explica ela, que também é designer.
Ela comenta a nítida diferença de gênero em questão de número nas festas e encontros entre pixadores. Há uma evasão muito grande dessas mulheres. “É machista. Não é um ambiente amigável para mulher. Vai ter os caras que vão querer te abraçar, mas vai ter quem te abrace com segundas intenções. Tem muito cara maluco com uma visão de mundo errada que vai invadir seu espaço. A gente tem que ir aprendendo a se encaixar e é cansativo. Às vezes não vale à pena”.
No processo de pesquisa, Carla Mariani foi acolhida por um grande grupo de pixadoras em Salvador. A pesquisadora afirma: a maternidade é um fator determinante para afastar as mulheres da prática. “Enquanto homens, mesmo como pais, conseguem continuar indo para a rua e pichar, as mulheres não conseguem. Porque a maternidade é mais rigorosa e demanda mais tarefas do que a paternidade.
Meu pixo, minha grana
Com a popularização do street style e da cultura do hiphop, as referências estéticas da grafia do pixo também viram estampa na moda. Marcas mundiais de fast fashion como a SHEIN e vendedores de importados na Amazon se apropriam desses movimentos para vender mercadorias. Diferente de grandes marcas, quem faz pixo se utiliza da comercialização de telas e camisetas para alimentar o movimento comprando materiais ou para complementar a renda “Eu também vejo a camiseta como uma forma de pixo, porque você tá colocando alí o seu desenho, a sua tag, pra uma pessoa sair usando na rua. é um outro suporte. Tem alguém divulgando seu nome”, comenta MINA.
A comercialização das tags a partir de outros suportes como adesivos e roupas está, cada vez mais, se popularizando entre a comunidade dos pixadores, apesar da resistência de alguns, que acreditam que “pixo de verdade é na rua”. “Quando eu tô no meio mesmo dos cara minha família mesmo não gosta, minha mãe não gosta. Quando eu faço as camisas, faço os trampo de grafite, ela fica já “ah! meu filho agora é artista!”, fala Suck, que também começou a comercializar o trabalho.
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