Moradores reivindicam diálogo com a comunidade e cumprimento das políticas de entorno
texto Gláucia Campos e Marcela Magalhães
publicado em 04.05.2023
A Comunidade Solar do Unhão, localizada na avenida Contorno de frente para a Baía de todos os santos, abriga pontos turísticos conhecidos da capital baiana, embora fique lado a lado com a Gamboa de Baixo, as duas são separadas pelo forte São Paulo. O Solar começou a ganhar mais habitantes nos anos 1980 e atualmente moram cerca de duas mil pessoas no local.
No Solar do Unhão encontramos locais famosos como a prainha, o restaurante da Dona Suzana, o museu de street art de Salvador (MUSAS) e o museu de arte moderna da Bahia (MAM), que tem sua entrada vizinha com a da comunidade. Apesar da proximidade, existem algumas barreiras que vão além do muro de concreto que geram um afastamento entre esses dois locais.
Embora a convivência entre a comunidade e o museu seja pacífica, ainda assim é uma relação complicada. No dia 17/08 deste ano os moradores da comunidade juntamente com movimentos sociais apontaram que o museu agia de forma racista com a comunidade. O motivo que culminou nessa acusação foi o fechamento da prainha do MAM, que só era possível de ser acessada por dentro do museu, além de fechar a entrada foi colocado arame
farpado no muro para impedir que alguém pudesse pular. Tudo isso foi decidido sem estabelecer um diálogo com a comunidade que também fazia uso da praia e sentiu o impacto de não poder utilizá-la.
De acordo com o museu, as medidas de restrição à praia foram adotadas por conta da pandemia para evitar aglomerações, mas como era comum que algumas pessoas tentassem pular o muro, decidiram colocar arame farpado.
Segundo Marcos Rezende, historiador, morador da comunidade e membro da associação de moradores do solar do unhão, a falta de diálogo do museu com a
comunidade não é algo recente, “O debate que a gente estabelece com o MAM não está ligado com pessoalidade, não é ligado ao diretor ou sua equipe, mas essa infraestrutura que historicamente tem trabalhado sem dialogar com essa comunidade, simplesmente porque é uma comunidade negra e pobre incrustada no centro da cidade.”
O museu
No local em que hoje encontramos o MAM, anteriormente já sediou oficinas e foi transformado em trapiche, depósitos de combustíveis e quartel para os fuzileiros navais durante a 2ª Guerra Mundial. Em 1943, o Solar foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Apenas no início da década de 1960 o local foi adquirido e restaurado pelo Governo do Estado da Bahia, com projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi, para criar o Museu de Arte e Tradições Populares. Em 1963 surge o museu que conhecemos hoje.
A arquiteta cultivava um grande apreço pela cultura brasileira e queria que o museu fosse acessível para todos. Porém, segundo Marcos Menezes, morador da comunidade, o distanciamento que existe entre o museu e a comunidade localizada junto a ele, mostram uma ideia contrária. “No mundo das ideias é tudo muito normal, a ideia de Lina era ‘esse museu existe para servir a todos’ é o mundo das ideias, na vida real serviu? Não, nunca serviu. O máximo que rolou foi uma política, que nunca foi de Estado, mas uma política local de um
gestor ou gestora. Nas relações que a gente teve com o museu foi isso, às vezes aparecia um gestor “ah vamos fazer isso” mas no final faziam projetos grandiosos nos quais a comunidade poderia expor e isso só aconteceu uma única vez na história dessa comunidade, em que um morador que é fotógrafo expôs suas obras lá.”, disse Marcos.
Demandas da comunidade
Uma das problemáticas enfatizadas pelo historiador são as ações internas das gestões voltadas apenas para o museu, sem se preocupar com as políticas de entorno, que consistem na proteção e preservação não apenas dos bens tombados, mas também da sua vizinhança, de acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Além de preservar, também zelar pela boa comunicação e relação com as comunidades do entorno, visto que, segundo a Carta Internacional para a Conservação e Restauro de Monumentos, o monumento é “inseparável da história de que é testemunho e do meio em que se situa”.
Nos últimos três anos o Museu de Arte Moderna da Bahia passou por diversas reformas que incluem a construção de um restaurante, um píer e um atracadouro marítimo. Os gastos com as reformas foram avaliados em 30 milhões e geraram muitas críticas por descaracterizar a arquitetura original projetada por Lina Bo Bardi.
“Se você procurar as obras que o Estado fez nessa comunidade aqui é zero. Então qual a justificativa de você investir 30 milhões em um museu, não que a gente não ache importante porque a gente acha, e não conseguir investir R$50,00 em um local onde moram 500 famílias? Quem é que frequenta aqueles museus? Quem vai ali ver o pôr-do-sol? Quem vai pra Jam no MAM? Quem frequenta o cinema? Qual a cor das pessoas que estão lá, a mesma dessas que estão aqui?” questiona Marcos .
Entre as demandas da Comunidade Solar do Unhão estão: a construção de uma quadra de esportes e de um ponto de ônibus na entrada da comunidade; a reforma do muro que divide o museu e a comunidade e da escada de acesso a praia; a criação de uma carteirinha para garantir o acesso dos moradores a prainha do MAM e ao resto do museu; e por fim, a contratação de moradores para trabalhar no museu ou em seus eventos.
A respeito da quadra, inicialmente a diretoria do museu alegou que poderia impactar visualmente no MAM, contudo Rezende, amparado pela política de entorno, afirma que o píer de concreto recém construído também tem um impacto visual, diante do contraste de uma construção moderna de concreto ao lado de um sítio histórico do século XVIII.
As obras do píer e da Bahia Marina geram impactos na comunidade como o surgimento de pedras e lixo na costa da praia, visto que a maré não tem mais recuo devido às construções. O historiador denuncia um racismo estrutural e ambiental, que garante tudo para os ricos, e para os negros e pobres nada além dos prejuízos.“ Já resolvemos vários dos nossos problemas internos, agora a gente quer resolver esse daqui, resolver as coisas com a Bahia Marina, talvez daqui a 4 meses a gente queira resolver com vários outros locais, é uma luta que não se extingue.”
Na última reunião (23/09), a diretoria do museu comunicou aos moradores quais os avanços que estão sendo realizados para atender as demandas da comunidade, como: o cadastro das pessoas para a criação da carteirinha para ter acesso ao cinema e ao MAM; a reforma da escada juntamente com Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER); um voo de drone programado para definir o melhor local para a construção da quadra; e por fim, o agendamento de uma apresentação remunerada no MAM de um professor de música da comunidade, que ensina os jovens locais a tocar samba e chorinho, além de ler partituras.
Marcos ressalta que a comunidade quer fazer essa aproximação com cuidado por terem um certo grau de desconfiança “se nunca me chamaram para uma festa, só chama depois que eu brigo, eu tenho medo do que vai ter lá, se vão me envenenar ou fazer uma foto do tipo ‘estamos bem, somos amigos’ quando na verdade não é bem isso.”
O olhar da comunidade
A comunidade do Solar do Unhão em suas inúmeras casas coloridas traz muitas histórias e atrações. As suas paredes grafitadas compõem o Museu de Street art de Salvador (MUSAS) e garantem um charme único ao local, assim como a vista para um dos pores do sol mais bonitos da cidade.
Para Luís Paulo Bastos, 36, membro do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e morador da comunidade, um dos maiores atrativos, além da paisagem, são as pessoas. A riqueza do local onde mora, com diversidade de trabalhadores e um forte sentimento de coletividade e acolhimento.
“Pra mim é o grande elemento transformador nessa comunidade, acho que é um sentimento que deveria extrapolar as barreiras daqui, não com as pessoas de fora vindo pra cá, mas sim entendendo que as comunidades têm alternativas próprias, meios de construção próprios e um outro sentimento de sociedade que muitas vezes que tá do lado de fora não tem.”, relatou.
Quando questionado sobre o que mais ama na Comunidade Solar do Unhão, Marcos Rezende responde que gosta de tudo: “Sou apaixonado pelas pessoas, pela forma coletiva de fazer, pelo mar, pelos cheiros, sabores, eu sou uma pessoa que escolhi fazer dessa comunidade o local da minha existência. O que não gosto é que só chega carta de cobrança, mas não chega correio e outras cartas.”
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