Conheça a história do primeiro baiano a completar o maior desafio de triatlo da América Latina utilizando muletas
texto Antonio Dilson Neto e Stella Ribeiro
multimídia e colagem Israel Risan
diagramação Caique Lisboa
narração Pedro Hassan
Resistência, força, dedicação e velocidade são características comuns da maioria dos super-heróis de quadrinhos. Independente da armadura utilizada, esses personagens, nada convencionais, inspiram a humanidade a superarem seus limites físicos e mentais, no intuito de provar a resiliência do corpo humano. Fábio Rigueira, 49, também denominado como Homem de Ferro, conhece bem o verdadeiro valor dessas habilidades. Rigueira foi o primeiro amputado a completar o maior evento de triatlo da América Latina, Ironman, por duas vezes seguidas. O único a executar esse feito. Em uma conversa marcada por histórias e aventuras emocionantes, o triatleta relata: “o clima da prova era: ‘esse cara vai completar tudo só com uma perna?’” Nesse bate-papo com a Fraude, Rigueira conta a história da descoberta do câncer que levou à amputação de sua perna e de como se tornou uma das maiores referências do triatlo no mundo.
FRAUDE – O início da sua história de vida é essencial para entender a sua trajetória como atleta. Você pode nos contar sobre esse começo?
RIGUEIRA – Eu tive, na minha infância, o direito e o prazer de desfrutar da liberdade do meu bairro [Itapuã]. Isso me marcou muito, porque tive uma infância boa, com grandes amigos. Porém, aos nove anos, minha vida teve uma grande mudança. Descobri um câncer agressivo na perna, após uma queda. Era um Osteossarcoma, um câncer que dá origem na formação óssea. Naquela época, não existia tanta tecnologia, nem muitos casos notificados, por isso demorou para descobrir o que era. Com isso, o câncer já estava avançado e foi subindo para o fêmur, tomando proporções maiores.
FRAUDE – E como foi encarar essa mudança de vida durante a infância?
RIGUEIRA – Eu tive a oportunidade de conhecer grandes equipes médicas, que se dedicaram para me tirar dessa situação, assim como meus pais, amigos e irmãos. Foi um mutirão fundamental, porque eu não tive nenhum tipo de problema de aceitação depois. A vontade de me ver brincar na rua era grande, meus amigos me buscavam, eu ia para a praia brincar e andar de bicicleta.
FRAUDE – Em que momento o ciclismo entrou na sua vida?
RIGUEIRA – Quando meu pai me deu uma bicicleta. Acredito que ele não tinha nada na cabeça a não ser dar uma vida normal ao filho que perdeu a perna. Mas ele acertou na loteria. Quando aprendi a pedalar, foi algo fascinante. Era fantástico, não por todo mundo ficar abismado com aquilo, mas sim, pela liberdade de estar sem as muletas, sem precisar ser carregado. Eu comecei a andar cada vez mais distante, no início ficava perto de casa, mas aos poucos passei a pedalar até a Praça da Sé sozinho. Anos depois, começou a ter um grupo noturno em Salvador, com mais de 50 bicicletas, que despertou meu interesse em me tornar um cicloturista. E aí, cheguei a fazer o vale europeu de 1.000 km, uma viagem de 800 km e a ficar 10 dias [pedalando] na estrada.
FRAUDE – Mas você já tinha contato com o ciclismo de alguma forma?
RIGUEIRA – Um dos meus tios se tornou campeão baiano de ciclismo e o outro campeão baiano de triatlo. E eu fiquei admirado com a dedicação deles, com as glórias e os prêmios. Eu via isso, todo dia, na minha casa e carreguei dentro de mim por um bom tempo.
FRAUDE – Como você conheceu a prova de triatlo Ironman?
RIGUEIRA – Um dia, eu estava assistindo ao Fantástico e lá estava Fernanda Keller [triatleta brasileira e seis vezes terceira colocada no Ironman] fazendo uma preparação com outras seis pessoas para enfrentar a prova e uma dessas pessoas era Adriele Silva, uma biamputada. Eu fiquei louco, disse: ‘vou acompanhar isso até o dia da prova’. Quando o dia chegou, infelizmente Adriele foi retirada por problemas com o encaixe da perna [prótese]. Fiquei indignado, disse: ‘não é possível esse negócio. Vou me preparar e vou fazer’. No outro dia, já acordei decidido.
FRAUDE – Como foi acordar e dizer “quero ser um Ironman”? Por que para quem olha de fora parece ser uma loucura sem tamanho.
RIGUEIRA – O sentimento é complexo, eu parti do zero. Minha esposa me ajudou a buscar algumas informações e quando começamos a juntar as peças do quebra-cabeça, falamos: ‘caramba, onde foi que a gente se meteu?’ Fui buscar apoio nas assessorias que treinam triatletas de Salvador, até que me deparei com a assessoria de Eduardo Filho. Contei a ele minha história e o cara parou o treino que estava dando, reuniu todo mundo e disse: ‘Fábio veio aqui com um sonho e nós vamos ajudá-lo’. Quer dizer, eu já não tinha mais a escolha de não querer ir.
FRAUDE – Como funciona o Ironman?
RIGUEIRA – O Ironman começou com três amigos. Cada um praticava um esporte e eles brigavam para saber qual era melhor. Assim, eles inventaram um “jogo” em que todos fariam os três esportes, com a mesma distância, e quem chegasse primeiro se tornava o Homem de Ferro. O Ironman tem três modalidades: natação, ciclismo e corrida, justamente nesta ordem. A natação tem 3,8 km, o ciclismo tem 180 km e a corrida é [no formato de] uma maratona. Você tem que executar tudo em 17 horas, sem parar. E outra, cada modalidade precisa ser feita em um tempo mínimo, senão você compromete o final da prova.
FRAUDE – Você pode contar sobre a experiência do seu primeiro Ironman?
RIGUEIRA – Eu passei sete meses treinando, correndo 15 km na orla de Itapuã e pedalando. [Depois] voltava para casa, ia para o trabalho, academia, natação e fisioterapia. Cansei de sair de casa, às 3h30 da manhã, e minha mãe olhar para mim da varanda e perguntar: ‘meu filho, você está certo disso?’ Caramba, para ouvir isso da sua mãe, você tem que estar. Quando cheguei para fazer o Ironman, a expectativa era muito grande porque todos sabiam que eu não usava a perna mecânica. O clima da prova era: ‘esse cara vai completar tudo só com uma perna?’ Em 2018, fiz o primeiro em 14h43. Foi sofrido, mas não estava buscando ser o melhor atleta ou melhor tempo, estava buscando realizar um sonho.
FRAUDE – Quais são as principais dificuldades que você enfrentou e ainda enfrenta?
RIGUEIRA – Infelizmente, vivemos em uma cidade que não respira o triatlo. Toda vez que fazíamos um circuito baiano, percebiamos a rejeição da sociedade porque parávamos uma via para acontecer a competição e a cidade toda reclamava. Esse também é um esporte muito caro, principalmente os equipamentos. Consegui comprar uma bicicleta com o dinheiro emprestado da rescisão da minha esposa, e não era nem uma bicicleta de triatlo, mas de ciclismo. Eu também não tinha sapatilha para pedalar e acabei ganhando uma de um cara que me parou na rua e disse que depois de perder um dos calçados, havia guardado, por acaso, o único pé que eu precisava. Era a minha oportunidade e fui me agarrando a essas coisas porque eu sofri muito com a falta de patrocínio.
FRAUDE – Hoje, você é conhecido no meio do triatlo mundial. O que essa visibilidade representa para você?
RIGUEIRA – Representa o reconhecimento da nossa capacidade de resolver problemas, da dedicação e do amor pelo esporte. Amor esse que é maior do que qualquer outro desafio, porque [a conquista do Ironman] repercutiu de forma tão brilhante que fugiu da esfera do esporte. Para você ter noção, depois do meu primeiro Iron, fui para Recife promover uma corrida para ajudar um amigo que precisava de uma perna [prótese]. Fiquei tão sensibilizado que comprei uma passagem, sem ele saber, e fui correr com ele. Foi um negócio fantástico.
FRAUDE – Para você, qual a importância do esporte para pessoas com deficiência? Qual o poder de transformação do esporte?
RIGUEIRA – O esporte nos coloca nessa condição de nos preocuparmos com o nosso corpo que é tão esquecido, te traz para um mundo de percepção a fim de entendermos o que é necessário, o que é importante. E para as pessoas com deficiência mais ainda, porque [o esporte] inclui, traz aquela pessoa para o social.
FRAUDE – Ano passado, ocorreram os Jogos Paralímpicos de Tóquio, e todo ano de Paralimpíada se dá muita visibilidade, mas depois isso se perde no fim do evento. Quais são os principais desafios enfrentados por atletas no Brasil?
RIGUEIRA – Infelizmente, esse cenário existe e eu espero que, um dia, deixe de existir, porque são pessoas que têm família, que se dedicam a fazer do esporte uma profissão e que precisam ser remuneradas. Falta política pública e falta querer. Muita gente não tem condições financeiras para se manter dentro do padrão de exigência da modalidade [que pratica]. Cansei de ver pessoas passando mal jogando bola porque não almoçaram direito ou porque no meio da tarde não tinham dinheiro para ter uma alimentação adequada.
FRAUDE – Quais os seus próximos objetivos daqui para frente? Você pretende competir no Campeonato Mundial de Triatlo?
RIGUEIRA – Em 2019, depois do meu segundo Ironman, eu recebi o convite para fazer o Ironman de Kailua-Kona, que é no Havaí, onde tudo começou. Existem três formas de você participar: se tornando campeão do circuito ou fazendo a prova 16 vezes consecutivas ou por convite. Eu recebi o convite, mas devido à pandemia, não tive estrutura para me organizar. Porém, vamos correr atrás para manter essa chama viva até 2023. A cereja do bolo também é fazer o Ultraman, que são dois Ironmans. No primeiro dia, você nada 10 km e pedala 145 km, no segundo dia você pedala 276 km. No terceiro dia, você corre 84,4 km. Não há um local fixo também, a última vez o Ultraman ocorreu em São Paulo, mas eles mudam de local a cada edição.
FRAUDE – É difícil até mensurar todas essas quilometragens. Você tem que ser de fato um Ironman para conseguir dar conta de tudo. Você quer falar alguma última consideração?
RIGUEIRA – Só gostaria de afirmar que tenho certeza que vocês da Fraude conseguiriam dar conta [de completar a prova]. É uma questão de prioridade e de estar no coração e na cabeça. Nós somos capazes, essa é a mensagem fundamental da vida.
A Fraude é uma revista laboratorial do Programa de Educação Tutorial em Comunicação (PETCOM) da Facom, UFBA e não possui fins lucrativos. Caso uma das imagens te pertença ou em caso de dúvidas, entre em contato pelo email revistafraude@gmail.com para acrescentarmos a referência ou retirarmos da publicação.
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