Texto Micaele Santos
Publicado em 06 de novembro de 2022
Sueli Carneiro, filósofa e ativista antirracista, em um episódio do podcast “Mano a Mano” falou sobre o apagamento das pessoas pretas no Brasil e resgata a importância que elas tiveram nas atividades comerciais do país, não só período colonial, mas como têm ainda hoje hoje. ” Nós (negros) somos pioneiros no empreendedorismo! É algo que desde o século XIX, sobretudo as mulheres negras, realizam. A Bahia é um celeiro do empreendedorismo…como foi que nós sobrevivemos, Se não foi empreendendo?!”
Antes da abolição, os negros escravizados além de exercerem trabalho braçal nas atividades agrícolas e domésticas nas fazendas, passaram a ir para os centros das cidades para oferecerem seus serviços em busca das suas alforrias. De acordo com Sheila Faria, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), que escreveu uma tese intitulada como “Sinhá Pretas”, apesar de Boa parte do trabalho sido feito pelos homens negros livres,as mulheres ganharam “destaque” com a venda de quitutes- doces e salgados, o acarajé sendo o mais famoso deles. Conhecidas como “escravas de ganho”, elas mesmo numa condição de total subalternidade, conseguiram ser bem sucedidas e conquistar sua liberdade (também a de seus filhos e parentes), chegando até a fazer com que fazendeiros da época se sentissem ameaçados com seus negócios, por estarem construindo riquezas.
Mesmo esse sucesso ter sido algo inesperado para os “senhores de engenho”, estudos sobre a história de África já apontam o bom desempenho que os impérios africanos tinham no comércio antes da dominação europeia, segundo a doutora em História de África, Isabel Henriques. Sendo assim, algumas das funções varejistas que essas escravas africanas faziam no Brasil, são apontadas como decorrentes de uma atividade que exerciam previamente em solo africano.
O comércio também foi um ponto transformador na vida da “afro-chef”, como se denomina, Paloma Zahir, de 32 anos. A baiana cresceu vendo sua mãe cozinhar e vender os seus próprios quitutes, como forma de obter renda para sobreviver, e sempre participou dos preparos, sendo algo que a influenciou a seguir carreira na culinária. “Minha mãe foi me inserindo, não sei se propositalmente, mas talvez querendo também me dá liberdade de que se eu não desse certo em outra área, não iria deixar de ter o que fazer. Durante a semana, ali na liberdade, à tarde, ela subia com sacolas de palha grandes, lotadas de lanches, e nas férias ela me levava. Então eu já aprendi a técnica de mercado- vender e negociar”, relembra Paloma.
Nós podemos fechar negócio, mas os valores são outros!
Mesmo com toda bagagem culinária passada entre gerações, Paloma enfrentou dificuldades para valorizar e valorar o trabalho que realizava de forma devida. “Eu via que a gente trabalhava muito e percebia que minha mãe não tinha a coragem de cobrar o valor justo. Talvez por prática desse sistema que a gente vive há anos, (existe) essa questão das pessoas pretas se sentirem inferiores e acho que minha mãe seguiu bem esse rolê de não ter a coragem de dizer que o trabalho dela valia mais”, conta.
Amanda Dias, 29, jornalista e empreendedora, através da sua marca “Grana Preta” auxilia microempreendedores, culinaristas e mulheres de baixa renda a gerirem seus negócios de forma segura, através da sua assessoria financeira. Além dos gastos por impulso, distribuição de finanças e quitação de dívidas, grande parte de suas clientes também enfrentam dificuldades na hora de precificar seus serviços. “Nós negros, sobretudo as mulheres, ao longo de gerações fomos induzidas a acreditar que o nosso trabalho nao vale nada, que não merecemos ser bem remuneradas pelo que fazemos, ou que devemos nos esforçar três vezes mais para conseguir o mínimo. Essa lógica que vem dos anos de escravidão vai se diluindo ao longo das gerações já que não tem muito tempo desde a abolição”, frisa Amanda.
A dona da “Grana Preta” teve que enfrentar muitas dificuldades até conseguir sua estabilidade financeira, chegando a ver sua qualificação ser precarizada, mesmo após sua formação. Ao passar de gerente de comunidade em um aplicativo de empreendedorismo para vendedora de brigadeiro na rua, porque precisava se manter a todo custo, Amanda pôde compreender que independente de seu esforço ela ainda não tinha a relevância que merecia. “Mesmo com tantas habilidades e com um perfil empreendedor resolutivo muito forte, eu sempre senti que minha capacidade era subaproveitada no mercado formal de trabalho”, explica.
Em seu perfil profissional nas redes sociais, Amanda aborda o quanto a boa autoestima das pessoas pretas é importante para que o seu empreendimento tenha sucesso, e como o conhecimento de suas histórias e de seus ancestrais contribuem com esse processo. “Quando resgatamos a forma como a cultura iorubá (Nigéria) entende dinheiro, distribuição de recursos, empreendedorismo e gestão financeira, mostramos que podemos pensar o dinheiro de forma mais positiva e assim resgatar a vontade de se organizar financeiramente para viver bem e realizar nossos sonhos”.
A chef Paloma partilha desse mesmo pensamento. “Fui melhorando, essa crença limitante, após terapia e estudar sobre ‘cosmopercepcão’ africana e o legado das pretas forras e de ganho. Depois disso, eu passei a ver a história da minha mãe e da minha família sendo retratada a partir de um outro viés, e não de um olhar colonizado”, desabafa. Através da cozinha tradicional baiana e afro-diaspórica, a chef repassa o legado das quitandeiras através da sua comida.
A busca de reconhecimento
Referente ao cenário nacional, uma pesquisa do Sebrae, em 2019, sobre empreendedorismo feminino no Brasil apontou que no mercado a criação de negócios “por necessidade” é maioria entre as mulheres. Enquanto nessa categoria, entre os homens, de 2002 até 2018 esse número caiu de 55% para 32%, no entanto, para as mulheres a proporção ainda é preocupante. Tendo em vista que, apesar de ter ocorrido também uma diminuição, de 62% para 44%, o número ainda retrata um mercado desigual e precarizador. Essa pesquisa não faz nenhum recorte racial, mas um estudo conduzido pelo Movimento Black Money, plataforma que permite a conexão entre empreendedores e consumidores negros, mostra que 51% dos empreendedores de sua pesquisa são negros. Dentre esses, 61.5% são mulheres.
Embora Thaís Nascimento, 29, co-fundadora do “Bar das Preta”, não tenha começado seu negócio pela necessidade financeira, por ainda trabalhar em sua área de formação como publicitária, ela sabia da importância que um bar comandado somente por mulheres negras poderia simbolizar, ainda mais numa cidade predominantemente negra como Salvador. “A gente começa a entender que podemos ter o controle das coisas da cidade. É com muita dificuldade que estamos fazendo isso aqui, mas já estamos vendo com três meses o fruto disso. Acho que precisava desse lugar. Não somos as primeiras, mas agora estão aparecendo diversos bares pretos na cidade e isso significa que está havendo uma retomada do protagonismo negro”, explica.
Com o intuito de criar um ambiente acolhedor para as pessoas pretas, o bar com samba ao vivo e feijoada aos domingos, surgiu quando junto com Thais, a amiga, Jéssica Conceição, dentista, 28; e a mãe dela, técnica de enfermagem, Marlene da Conceição, 53, depois de serem mal atendidas em um estabelecimento, resolveram fundar o seu próprio negócio. “Eu trabalhava no hospital do subúrbio e quando surgiu a ideia das três para abrir o bar, na mesma semana eu fiz minha carta de demissão e minhas coordenadoras não entenderam nada, achavam que estava maluca. Fomos olhar o lugar e no mesmo momento surgiu o nome. Queríamos um local aconchegante, principalmente, para que as pessoas pretas chegassem e se sentissem bem”, detalha Marlene.
A pesquisa do Sebrae também detalhou que, no recorte geral, 34% das mulheres são donas de negócio, sendo a maioria jovens. Quando contabilizado, 21% tinham em média de 25 a 35 anos; 26% de 35 até 45 anos e 25% de 45 a 55 anos.
Mesmo com um bar recente, que foi aberto em junho deste ano, as proprietárias chegaram para compor um cenário já dominado por mulheres jovens. “Na realidade, o bar foi inaugurado na ousadia mesmo! Que três mulheres se jogaram e estipularam uma data. Mas chegávamos na reforma e ainda estava tudo no chão e batia o desespero. Foi luta! Na ousadia, mas a nossa cor não nega”, relembra Marlene. Além disso, mesmo tendo enfrentado algumas dificuldades financeiras para abrir seu empreendimento, ele segue conquistando mais público e gerando renda para pessoas negras que trabalham no local.
Acima de todos os obstáculos, para Jessica, o que difere seu empreendimento dos outros é a busca pela ancestralidade e o que elas como mulheres negras, traçando um cenário totalmente diferente do que foi ditado para elas, representam. “A gente está na base da pirâmide social e estar no comando de um bar reflete muito o que queremos (futuramente) enquanto sociedade. Sabemos que é a mulher preta que está à frente e recebe os encargos sociais e ainda assim ela resiste, luta, sofre, mas mostra também que é capaz de liderar uma empresa, e ir além dos serviços domésticos”, frisa.
Amei a matéria, muito bem escrita além de trazer o fator histórico-cultural, necessário para o fortalecimento da figura da mulher negra empreendedora no Brasil, que é o braço forte da nossa economia 👏🏼