Um panorama arquitetônico do Palácio Rio Branco
texto Felipe Sena e Lucas Ramos
multimídia Daniel Araújo
colagem Juliana Barbosa
diagramação Luanda Costa
narração Eduardo Santana
É inevitável não fitar a suntuosa construção localizada na Praça Municipal. Salvador, uma capital com diversas tonalidades, teve, ironicamente, como seu primeiro lar um palácio em tons de branco. Entre idas e vindas de diversos ocupantes desde sua fundação, em 1549, a morada presenciou as configurações e reconfigurações da história brasileira. Esse é o Palácio Rio Branco.
Ainda no final do século XIX, ostentava a fachada colonial, símbolo em decadência, comparada com a nascente república. O Palácio já foi sede de diferentes governos, um centro de comando, residência, quartel e até prisão. Recebeu membros da realeza, como os Imperadores Dom Pedro I e Dom Pedro II. Nos últimos anos, funcionou como sede da Fundação Pedro Calmon, da Secretaria da Cultura e ainda é lar para o Memorial dos Governadores, com acervos de políticos, como do ex-governador da Bahia, Juracy Magalhães.
“nestes bens estão presentes os pensamentos, atos, desejos, interesses, que expressam a complexidade da história”
alana alves
Seu acervo acomoda 46 coleções, organizadas a partir da especificidade das peças: objetos pessoais, pecuniários, insígnias e artes visuais. “Nestes bens estão presentes os pensamentos, atos, desejos, interesses, que expressam a complexidade da história”, aponta Alana Alves, 35, Coordenadora do Memorial dos Governadores Republicanos da Bahia (MGRB).
No século XVI, o prédio foi construído em taipa de pilão, materiais considerados simples, na visão da nobreza. Em 1551, ele foi reedificado em alvenaria, a base de um conjunto de tijolos, blocos e peças sobrepostas, coladas por uma argamassa produzida a partir do cal e coberto por telhas, obra do arquiteto Felipe Guiteau, seguido por Pedro Garin. Já no ano de 1663, recebeu mais uma de suas muitas reconstruções.
Ao longo da história o palácio sofreu diversos ataques. De acordo com o doutorando em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Clíssio Santana, 37, o mais significativo ocorreu em 10 de janeiro de 1912, a mando do presidente da República Hermes da Fonseca, devido ao grupo opositor do Governo Federal que disputava o Governo Estadual no período, encabeçado pelos ideais do político baiano Rui Barbosa.
Em meio ao mar verde intenso do Forte São Marcelo, tropas enviadas por Hermes atearam fogo no Palácio, deixando partes do prédio em ruínas. “Cerca de 24 navios, 500 canhões, 1.600 marinheiros e 1.700 soldados invadiram a Baía de Todos os Santos e dispararam contra a cidade”, relata Clíssio. Neste episódio, ocorreu a destruição do acervo de livros raros que ficava no térreo da Biblioteca fundada em 1811, instalada na ala esquerda.
Em sequência, o estilo provincial do prédio que se assemelhava a uma colônia portuguesa, não agradava a aristocracia baiana. Por isso, em 1900, houve uma reconstrução adotando o estilo neoclássico. Quando reinaugurado pelo governador Antônio Muniz Sodré de Aragão, o palácio recebeu o nome de Rio Branco, em homenagem ao Barão do Rio Branco, jornalista, diplomata e político brasileiro. Contudo, com essa reforma não foi possível manter um estilo específico em seu interior.
Mosaico arquitetônico no coração da cidade
Para Nivaldo Andrade, 46, professor na faculdade de Arquitetura da UFBA, o Palácio Rio Branco apresenta um ponto de intersecção na decoração devido a mescla de estilos, um projeto do italiano Julio Conti. “Essa decoração busca inspiração, simultaneamente, em diversos estilos arquitetônicos do passado, incluindo o neoclassicismo e o barroco”, diz. O “novo” Palácio ganhou uma cúpula, aos moldes europeus, e a fachada recebeu esculturas do artista italiano Pasquale De Chirico, que mistura o romantismo e o neoclássico em uma obra só. Ele também é o criador da escultura de Tomé de Souza instalada no pedestal da escadaria.
“O ecletismo é a expressão arquitetônica do período de ascensão da burguesia e da globalização, sendo a primeira a ter um alcance efetivamente mundial, da China às Américas, passando pela África, Oriente Médio, Índia e Europa. Foi responsável pela incorporação inédita do uso de sofisticados elementos de ferro e vidro na arquitetura, como podemos observar, por exemplo, na monumental escadaria do Palácio Rio Branco”, afirma Nivaldo.
“há até um espaço com uma inspiração em Pompeia”
nivaldo andrade
Ainda em 1900, as telas do pintor baiano Manoel Lopes Barreto eram um dos poucos artefatos que adornavam o interior do Palácio, mas permanecer como sede fixa dos governadores da Bahia até 1979 permitiu uma transição de mobiliário e intervenções artísticas constantes. Em cada canto é possível encontrar artigos específicos. “Há até um espaço com uma inspiração em Pompeia”, diz o professor ao se referir a figura mitológica Bacante, sem assinatura, pintada na parede do salão situado em um dos pontos centrais do Palácio Rio Branco.
Durante o mandato do governador-geral Araújo Pinho, o militarismo se tornava mais evidente, o que era refletido no aspecto decorativo e arquitetônico. Ainda em 1910, a decoração, com um grupo de caboclos no frontão, foi substituída pelas armas do Estado. Além disso, o mobiliário era escolhido de forma que mantivesse os aspectos da decoração eclética, como é o caso da mesa de jantar em mármore verde encoberta por uma tela de vidro e painel situado à sua frente, assinados pelo pintor Antônio Parreiras em 1930, que ficam numa enorme sala de piso de madeira maciça, de acordo com José Dirson, 77, artista plástico e restaurador baiano.
Segundo o professor Nivaldo, isso difere o Palácio de uma casa comum. “Embora as paredes fossem construídas na mesma alvenaria de tijolos que era utilizada nas residências comuns, essas eram revestidas com pinturas artísticas, enquanto nas outras casas eram simplesmente pintadas em uma cor. Os pisos eram em materiais nobres como granitos e mármores de diferentes origens, muitos deles importados”, cita.
Novos olhares sobre a construção
Depois de muitos anos o Palácio necessitou de manutenções constantes. Em 2010, ele foi restaurado, desde a sua pintura até a mobília. Como aponta a mestranda em Conservação e Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos (MP-CECRE) da UFBA, Jessica Marques, 26, esse processo é meticuloso, e deve partir da análise da situação das edificações, dos seus atributos e valores. “A catalogação é a primeira etapa que antecede a fase de execução do restauro, as peças devem ser cadastradas e catalogadas com posições definidas em planta e elevações gráficas”, conta.
Com a nova proposta da construção de um hotel de luxo no espaço, há a possibilidade de futuras intervenções alterarem a estrutura original do Rio Branco.
“Existem técnicas de construção que deixaram de ser utilizadas ao longo do tempo e para que essas obras não percam sua autenticidade, é preciso priorizar adaptações seguindo a lógica da conservação preventiva. A gente lida tentando entender e estudando qual é o material, para a partir disso, trazer uma manutenção mais próxima possível com o original, de uma forma que também não o modifique”, afirma Thayna Fortunato, 27, também mestranda no MP-CECRE UFBA.
“o olhar sensível deve partir do questionamento: o que há de mais significativo nesse edifício que não pode ser perdido para que ainda possamos ler?”
thayna fortunato
Cada detalhe único da construção contribui no entendimento dos valores que formaram a arquitetura baiana na primeira casa do governo do país e, ao mesmo tempo, contam a história de forma direta e indireta. “Um patrimônio é sentimento, pois reflete o quanto foi importante para a população. O Palácio Rio Branco foi a primeira sede de governo. É a nossa história”, aponta Thayna. Segundo Jessica, a restauração pode ou não preservar um bem histórico, além de ser importante para entender as premissas do seu valor simbólico. “O olhar sensível deve partir do questionamento: o que há de mais significativo nesse edifício que não pode ser perdido para que ainda possamos ler?”, reflete.
A restauração dos patrimônios sugere um olhar mais apurado para os principais impasses do imóvel, pois a falta de uso social de construções pode contribuir para a aceleração da deterioração do local. De acordo com Thayna, é preciso entender limites. “Tem usos que não podem ser realizados. A quantidade de banheiros é um ponto que requer atenção. É preciso considerar a condição que o edifício pode receber. As construções dos séculos XVI até o XIX não possuem instalações hidráulicas que comportam sistemas de climatização ou de ventilação. Isso tem que ser repensado para não atrapalhar a estrutura”, pontua a arquiteta.
A BM Varejo Empreendimentos SA, dona da hotelaria BMF, ressalta que “o futuro hotel promoverá a restauração do edifício do Palácio Rio Branco, respeitando suas características arquitetônicas originais, e fazendo as devidas adaptações para o uso contemporâneo.” No dia 20 de janeiro de 2022, a BM Varejo ganhou o processo de licitação para construção de um novo empreendimento no lugar do prédio histórico.
Para Jessica, por mais que um prédio não possa ficar sem usufruto de outras pessoas, é preciso ter cuidado nesse processo. “Estabelecer novos ou perpetuar antigos usos da edificação é uma atitude de salvaguarda. Edifício inutilizado é um edifício arruinado e sua ocupação, gestão e rentabilização são imprescindíveis para sua preservação”, destaca. Nesse sentido, a restauradora ainda completa, “um projeto não deve ser feito a partir do ego do seu proprietário ou usuário, o edifício nos transmite essas informações e a transmissão para as futuras gerações serão pautadas nessas decisões.”
Os novos rumos da coroa
Em 10 de maio de 2019, quando o novo projeto de construção do hotel tinha sido divulgado, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), fez uma moção de defesa à permanência do uso público do Palácio Rio Branco. “Por suas características, sua história e valor simbólico é que este Conselho defende que o edifício com todo seu acervo, deve permanecer, integralmente, como bem público responsável pela salvaguarda da memória de fundação do Brasil e do Estado da Bahia e que seu uso, mesmo que alterado ou requalificado por algum motivo que se faça necessário, deve permanecer público e ser amplamente discutido com a sociedade”, consta no documento.
A mestranda em restauração, Jéssica comenta sobre o acesso do público a parte histórica do prédio. “Acredito que este equipamento foi edificado e a inviabilização de acesso a população se torna um ponto que deve ser considerado”, conclui. De acordo com a BM Varejo Empreendimentos SA, a operação prevê a adoção de ações culturais, que garantirão o acesso público a áreas históricas, a partir de programas de educação patrimonial e incentivo à arte baiana, essenciais para a preservação de um dos mais importantes edifícios da história política brasileira.
Entre construções e reconstruções, o Palácio Rio Branco passou por vários acontecimentos. Abrigou a família real portuguesa que chegou ao Brasil em 1808, quando Napoleão Bonaparte exigia o Bloqueio Continental. Foi queimado, presenciou desavenças e alegrias de quem por ali passou, se tornando um ponto imponente em meio a casarões antigos. Seu futuro é quase certo, mas não importa como e quanto tempo passe, sua memória se mantém viva.
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