Entre ruas e avenidas, os rios de Salvador carregam histórias e constroem identidades ao longo de seus leitos
texto: Anna Luiza Santos e Breno Bastos
multimídia: Eduardo Bastos
diagramação: Antonio Dilson
narração: Breno Bastos
colagem de capa: Eduardo Bastos
Se você mora em Salvador, é provável que vias como a Centenário e a Vasco da Gama façam parte do seu cotidiano. Mas o que não é tão provável assim é que você, assim como grande parte da população soteropolitana, saiba que, embaixo do asfalto e do concreto que percorremos no nosso dia a dia, passam rios que há séculos seguem seus cursos atravessando a capital.
Ao todo, Salvador possui 12 bacias hidrográficas, espalhadas ao redor de seu território. Durante grande parte de sua história, a cidade dependeu diretamente dessas bacias para a sua manutenção, já que eram elas que garantiam água potável, renda e alimento para muitas pessoas. Pescadores, lavadeiras e barqueiros garantiam seu sustento a partir dessas águas, que também propiciavam meios de se transportar pela cidade, em um tempo em que o número de ruas e estradas era bastante reduzido. Os rios de Salvador também eram essenciais para a religiosidade da cidade, especialmente para adeptos de religiões de matriz africana.
A partir da segunda metade do século XX, à medida que o processo de urbanização da cidade se intensificava, a proximidade da população com esses rios foi gradativamente diminuindo. As profissões ligadas diretamente a eles passaram a ser menos exigidas. A poluição, principalmente por conta do despejo irregular de esgoto nos seus cursos, reduziu sua biodiversidade e restringiu o seu uso pelas pessoas. Além disso, ao longo do século passado e do início dos anos 2000, muitos rios, como por exemplo o Rio dos Seixos e o Rio Lucaia, que deram lugar às avenidas Centenário e Vasco da Gama, respectivamente, começaram a ser tamponados e canalizados pelo governo, que visava multiplicar as vias da cidade. Por volta da mesma época, começou em Salvador de forma mais expressiva a distribuição de água encanada, o que, embora fosse certamente benéfico e essencial, também impulsionou o distanciamento da população das águas que corriam ao redor de suas casas.
Apesar desses processos afetarem fortemente a relação da população soteropolitana com os rios da cidade, ainda há quem perceba sua importância e busque compartilhá-la.
É d’Oxum
Na bacia do Rio Lucaia encontra-se o Dique do Tororó. O seu nome vem de uma onomatopeia do tupi antigo, que faz alusão ao som de águas correntes. É o único manancial de Salvador tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Inicialmente um lago natural, passou por diversas transformações ao longo de sua história, até que, em 1998, tomou sua configuração atual, com uma área de 110.000 m².
O Dique foi essencial para as comunidades que se desenvolveram ao seu redor, como as dos bairros do Tororó e de Nazaré. Durante muito tempo foi a principal fonte de água da região, além de ter servido como fonte de renda para lavadeiras e barqueiros que faziam a sua travessia. Desde sua última reforma, tornou-se um importante ponto turístico de Salvador, principalmente por conta da instalação de oito esculturas de orixás, feitas pelo artista Tatti Moreno. Também passou a ser utilizado como espaço de lazer, recreação e contato com a natureza por muitas pessoas na região do Centro.
Um de seus aspectos mais importantes provém da religiosidade. Considerado morada de Oxum, orixá dos rios e águas doces, o Dique é um local de realização de oferendas a diversas entidades do Candomblé e da Umbanda. Muitos terreiros da região têm o manancial como um dos principais lugares de culto a serem visitados ao longo do ano.
É justamente esse aspecto sagrado que faz com que todo ano centenas de fiéis se encontrem no local na madrugada do dia 2 de fevereiro, data em que se comemora a Festa de Iemanjá. Então, antes de saudar a rainha do mar, presenteiam a senhora das águas doces, Oxum. Os devotos aproveitam a ocasião para realizar pedidos, agradecer e fazer oferendas à orixá, seja individualmente ou junto com o principal balaio da celebração, tradicionalmente preparado por uma ialorixá ou um babalorixá. São ofertados perfumes, flores, jóias, sabonetes, omolokum, frutas verdes, entre outros presentes.
Em 2021, o responsável titular pelos presentes entregues na data, tanto a Iemanjá quanto a Oxum, foi o babalorixá Pai Ducho de Ogum, do terreiro Ilê Axé Awá Ngy, localizado no Engenho Velho da Federação. Com 46 anos de vivência dentro do candomblé, o pai de santo realizou essa função pela primeira vez neste ano, após ter acompanhado sua ialorixá durante 25 anos na feitura das oferendas. “Foi uma experiência maravilhosa, muito boa. Fui muito bem preparado pela minha ialorixá para ter conhecimento disso, saber fazer os trabalhos e honrar a sua memória, do terreiro e do orixá.”, relata Pai Ducho.
O número de devotos presentes foi reduzido e as festividades não ocorreram como o habitual, por conta da pandemia de COVID-19. Para evitar aglomerações, o fluxo de pessoas foi controlado no Dique, onde se entrega o balaio a Oxum, e no Rio Vermelho, onde é feita a oferenda a Iemanjá. Mas, para Pai Ducho, o principal pôde ser mantido, dentro das possibilidades. Segundo ele, “o que importa não é o número de pessoas, o importante é o respeito, o amor, o carinho pelo orixá e de uns pelos outros”.
“O rio é a veia. Realmente, o sustento de todas as casas de candomblé”
ângela lühning
Assim como o Dique, outros corpos hídricos da Bacia do Rio Lucaia, em especial o rio que a nomeia, têm sido historicamente essenciais para os terreiros de candomblé da região. Segundo Ângela Lühning, professora e pesquisadora da UFBA e diretora-secretária da Fundação Pierre Verger, quando os primeiros ilês foram construídos na área, “seria impossível pensar numa casa de candomblé distante de um rio. O rio é a veia. Realmente, o sustento de todas as casas de candomblé”. Por conta dessas relações, alguns terreiros, como o Ilê Oyá Tununjá, em Brotas, o Terreiro Mutuiçara, no Candeal e o Terreiro Ilê Iya Omi Axé, na Federação, buscam manter suas fontes ainda conservadas, na medida do possível.
Para a Ebomi e mestra da cultura afro-baiana Vó Cici, o “Orixá é uma figura da natureza”. Assim, o meio-ambiente é necessário para a sua manifestação, o que torna a conservação ambiental, e, dentro dela, a questão hídrica, um assunto essencial na área de atuação de comunidades do candomblé.
Porém, apesar dessa importância, o processo de distanciamento da população de Salvador dos rios também afetou as comunidades candomblecistas, que, à medida que a cidade crescia, precisaram lidar com outras questões e dificuldades. Para Ângela, houve “uma adaptação da religião a novos contextos urbanos bastante complexos. E acho que na medida que você se afasta disso (da preservação), talvez esteja cuidando de outras questões também de sobrevivência da própria relação com a vizinhança. Então, muitas casas estavam mais ocupadas com a sobrevivência territorial do que necessariamente com a questão hídrica.”
Águas suburbanas
Embora também precisassem lidar com adversidades, terreiros de outras regiões de Salvador conseguiram manter-se mais próximos dos rios, se comparados com as casas de candomblé do Centro. No Subúrbio Ferroviário, essas águas ainda representam a conservação da memória e da identidade dos bairros, principalmente as da Bacia do Rio Cobre.
Com sua principal nascente na Lagoa da Paixão e desaguando na Enseada do Cabrito, a Bacia do Rio Cobre é um dos poucos suspiros de biodiversidade na capital. Formada por uma vegetação densa, com diversas plantas medicinais, as suas florestas e águas formam uma espécie de santuário para os rituais de Candomblé.
“Você deixa de fazer uma festa de caboclo dentro do terreiro, pra fazer dentro da mata, que é o habitat natural do orixá”
rita ferreira
Rita Ferreira, militante do Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB), candomblecista e moradora de Periperi, passou a infância e a juventude em contato com essa área verde e ressalta como esse ambiente possibilita um maior espaço para se conectar com a sua espiritualidade. “Aí é que está a importância disso tudo: você deixa de fazer uma festa de caboclo dentro do terreiro, pra fazer dentro da mata, que é o habitat natural do orixá”, conta.
Essa valorização e conexão da religião com a natureza também é perceptível na nomeação dos principais pontos do Parque São Bartolomeu, uma das áreas cortadas pelo Rio Cobre. Três de suas cachoeiras levam nomes de entidades do Candomblé/Umbanda: Nanã, Oxum e Oxumaré. Além da Escada dos Escravos, que é conhecida por ter um princípio de orixá em cada degrau.
O parque é um dos maiores remanescentes de mata atlântica em área urbana no país, fazendo parte, desde 2001, da Área de Proteção Ambiental – APA Bacia do Cobre/São Bartolomeu, administrada pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema).
Esse espaço também carrega uma relevância histórica. Inicialmente, as matas da reserva eram habitadas por grupos de indígenas Tupinambás e, posteriormente, foram nelas criadas aldeias jesuítas, no século XVII. Também nessa área ocorreram várias lutas contra a invasão holandesa e da Independência da Bahia, em especial a Batalha de Pirajá. Foi nas redondezas desse parque que se estabeleceu o Quilombo do Urubu, criado e liderado por Zeferina, personagem marcante da história baiana, que tornou-se protagonista da revolta contra a dominação portuguesa no Brasil Colônia.
“O Quilombo do Urubu é muito importante para nós mulheres, porque quem comandava era uma mulher, Zeferina. Então, nós estamos tentando acender isso aí, para que essa história seja contada para os nossos”, explica Rita Ferreira. Indo além, ela questiona a tentativa de apagamento histórico em relação aos atores desses acontecimentos e o nome do parque. “Quem é São Bartolomeu? Poderia ser o quê? O Quilombo do Urubu, porque ali tem uma história de resistência negra. E isso aí tira todo conhecimento dos nossos.”
O presente e o futuro
Em comparação com outras áreas da cidade, o Parque São Bartolomeu, por onde passa a Bacia do Rio Cobre, encontra-se significativamente conservado, possibilitando que alguns moradores da região possam complementar sua renda e até mesmo sua alimentação. Jaca, cajá, coco, manga, abacate… Tem de tudo. O cultivo de hortaliças e a possibilidade de pescar atualmente em um rio da metrópole é o resultado da preservação e valorização desse espaço pelos moradores.
Um exemplo dessa relação foi descrita por Débora Porciúncula, geógrafa e professora da Universidade Católica do Salvador (UCSAL), ao falar sobre um encontro com um pescador que acabava de sair do Rio Cobre, nas imediações do Parque São Bartolomeu. “Ele estava com um baldinho cheio de peixes e disse assim: ‘olha, ninguém aqui passa fome’. Essa frase para mim tem uma força incrível, porque a gente precisa compreender que, se os aspectos mais óbvios que deveriam nos sensibilizar para defender a natureza não estão conseguindo, que a gente entenda que a natureza nos ajuda a sobreviver, a matar a nossa fome.’’
Para além da subsistência, história e fé, o Parque São Bartolomeu também se transformou recentemente em um espaço de lazer para outros soteropolitanos, sem deixar de lado as discussões sobre o cuidado desse espaço. Essa transformação ocorreu com a criação de trilhas ecológicas pelo coletivo Guardiões da APA da Bacia do Cobre/São Bartolomeu, que eram realizadas a cada dois meses, antes da pandemia.
Surpreendendo os visitantes que desconheciam a possibilidade de existir uma área arborizada, cheia de cascatas e cachoeiras na metrópole baiana, os Guardiões viram nas trilhas uma forma de incentivar a população a valorizar essa área e se engajar na sua preservação.
“Nós queríamos que as pessoas fizessem uma imersão muito parecida com a nossa na floresta e vissem pelo o que nós estávamos lutando. Então, assim, não dava apenas para falar da APA, das cachoeiras, da vegetação ou da floresta. Era preciso convidar as pessoas para que elas vissem aquilo, para que também se sensibilizassem, para que percebessem que esse patrimônio também lhes pertence. Ou seja, não é nosso apego, é de todos”, relata Débora, que além de professora é uma guardiã.
Através da divulgação das trilhas nas redes sociais, o grupo busca alcançar o maior número possível de pessoas, inclusive moradores de outras regiões da cidade. João Serra, 21, morador do bairro dos Barris, conta a sua experiência ao participar da trilha e ao visitar o Parque em 2019. “Eu não imaginava que tinha no subúrbio um lugar tão bonito, com uma beleza tão singular assim, com uma área tão verde’’, confessa. O estudante já tem planos de participar de outras trilhas após a pandemia e ressalta como esse passeio mudou a sua percepção da cidade. “Salvador não é só Farol da Barra, Pelourinho… É muito mais que isso e a gente como baiano deve ir até nosso território para conhecer do que ele é formado. É muito mais do que aquela visão limitada de cartão postal’’.
Apostando no poder da comunicação e da sensibilidade, Débora acredita que a defesa ambiental desses rios soteropolitanos devem ser feitos por essa nova geração. O compartilhamento da importância que esses rios tiveram e ainda têm é o ponto-chave para conservar a memória e a história da cidade.
“É importante dizer que o subúrbio é um lugar de história, que foi um local importante para a história nacional, para a constituição de Salvador e que ele guarda um patrimônio natural fantástico. Isso tudo tem a ver com a necessidade de informar, de transmitir o conhecimento, de sensibilizar as pessoas. A gente precisa cada vez mais socializar o saber e as técnicas, tornar esses conhecimentos acessíveis e as experiências conhecidas, porque, quando a gente rememora o passado, a gente se fortalece para as lutas do presente”, diz Débora.
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