Produções de mulheres, negros e LGBTI+ são valorizadas nos clubes de leitura divergentes soteropolitanos
texto Ana Carolina Faria e Luísa Carvalho
diagramação Luísa Carvalho
foto de capa Luísa Calmon /Labfoto
narração Luísa Carvalho
Debater sobre temas, compartilhar conhecimento, dividir emoções, compreender outras vivências. Com o desejo de ir além na discussão sobre os livros, os clubes de leitura são organizados através de reuniões periódicas. Originados no século XVIII, os encontros literários, que a princípio ocorriam em salões franceses e contavam com a presença restrita de intelectuais iluministas, hoje representam a luta por protagonismo de diversos outros grupos sociais. Em Salvador, os clubes Leia Mulheres, Lendo Mulheres Negras e Lesbos tratam de questões relacionadas a gênero, raça e sexualidade por meio de uma literatura divergente.
O termo, criado por Nelson Maca, 53, poeta e professor de literatura brasileira na Universidade Católica de Salvador (UCSal), caracteriza os fazeres literários desviantes. “Divergir, nesse sentido, é combater a literatura única, falar o que as pessoas não querem ouvir. Literatura divergente precisa de conflito e está sempre impactando e se renovando”, explica Maca. Pouco representados no cenário da literatura tradicional, mulheres, negros e LGBTI+ têm nesses clubes voz e vez. “Não somos reconhecidas na sociedade em que vivemos, sobretudo, no meio intelectual”, destaca Carla Akotirene, 39, autora de “O que é Interseccionalidade?”, durante a edição de março do Lendo Mulheres Negras.
Como são os encontros?
Norteadas por assuntos relacionados ao livro escolhido para a reunião do mês, as discussões são vastas e ultrapassam um tema central. No debate sobre “O Feminismo é Para Todo Mundo”, de bell hooks, durante a reunião do Leia Mais Mulheres, o público conversou sobre as relações do feminismo com maternidade, capitalismo e religião, as dificuldades enfrentadas pela mulher no mercado de trabalho e as diferentes situações de machismo vivenciadas pelas presentes.
“além da discussão, o mais legal é a troca de vivências. tem muita gente diferente, de adolescentes a pessoas com mais de 60 anos. o compartilhamento dessas experiências distintas é muito forte”
cristiane schwinden
O debate sobre as obras é acompanhado pelo exercício de sororidade, autocompreensão e conhecimento do outro. Nos encontros, geralmente mensais, os leitores expõem questões pessoais e se sentem à vontade para expressar suas opiniões e lançar temas para o debate. “É um ambiente muito acolhedor, você vai sendo incentivada a participar. Me sinto confortável para falar o que eu penso sem ser criticada porque tenho vontade de contribuir para a discussão”, diz Ingrid Schwab, 36, frequentadora do Leia Mulheres. “Além da discussão, o mais legal é a troca de vivências. Tem muita gente diferente, de adolescentes a pessoas com mais de 60 anos. Tem quem já viajou pelo mundo e quem mal saiu de seu bairro. O compartilhamento dessas experiências distintas é muito forte”, afirma Cristiane Schwinden, 37, mediadora do Clube Lesbos.
A quantidade de pessoas nas reuniões varia bastante, mas, no geral, há uma média de 20 participantes. Nos três clubes, as mulheres são a grande maioria. A presença feminina é preconizada pelo Clube Lesbos, que se volta à leitura de autoras lésbicas ou bissexuais: “Os homens podem participar se as mulheres presentes estiverem confortáveis com isso, mas eles não protagonizam”, afirma Nayara Rosário, 27, uma de suas organizadoras. Ainda que não haja qualquer observação quanto à participação masculina nos dois outros clubes, o comparecimento de homens é baixo, o que as frequentadoras acreditam ser consequência de uma falta de interesse por parte deles.
Além dos encontros, o Lendo Mulheres Negras expande sua relação com quem se interessa pelo clube para as redes sociais. “A gente precisou ampliar porque pediam. Temos muitas pessoas que nos acompanham fora de Salvador”, afirma a mediadora Adriele Regine, 29. O grupo possui um perfil no Instagram, com quase 30 mil curtidas, e suas organizadoras mantêm um canal no YouTube, em que fazem resenhas de livros e filmes e conversam sobre temas relativos às suas vivências. Nas redes também são desenvolvidos os projetos #lendovocês, que compartilha a escrita de autoras negras, e Isso é Arte de Mulher Negra!, que divulga obras de variados campos da arte.
Como é selecionado o livro?
A escolha é feita a partir de uma curadoria das organizadoras, que buscam tratar de aspectos relevantes e atuais por meio das especificidades de cada clube, e conta com a sugestão do público dos encontros. Nas redes sociais, mais constantemente no Instagram, os perfis dos clubes fazem posts questionando os seguidores sobre o que gostariam de ler durante as edições mensais.
A obra selecionada para o mês influencia no número de participantes nos encontros. “O público muda um pouco conforme o livro escolhido. Quando trouxemos Clarice Lispector, por exemplo, vieram novas pessoas”, conta Gláucia Ventura, mediadora do Leia Mais Mulheres. “A quantidade de presentes no Lendo Mulheres Negras varia de 20 a 50 pessoas dependendo do título que escolhemos”, afirma sua cofundadora Evelyn Sacramento, 29.
Para intensificar a aproximação da escritora com seus leitores, o Lendo Mulheres Negras convida autoras para participar das discussões. Em evento com número recorde de público, cerca de 120, Carla Akotirene respondeu perguntas sobre seu livro “O que é Interseccionalidade?” e conversou com os presentes sobre o racismo na academia e as vivências diárias das mulheres negras.
De forma diferente aos outros dois grupos, no Clube Lesbos a discussão não é apenas sobre livros, mas se intercala, também, entre filmes e seriados. Em alguns encontros, há o debate da mesma obra em formatos diferentes. Na conversa sobre “O Mau Exemplo de Cameron Post”, as participantes discutiram tanto a respeito do livro, escrito por Emily M. Danforth, quanto da sua adaptação cinematográfica, dirigida por Desiree Akhavan.
Como surgiram?
Os três clubes têm suas datas de nascimento próximas e vêm ao mundo a partir do incômodo que a falta de representatividade na literatura causava nas mulheres. “Existia o Leia Mulheres, mas ele é abrangente, a gente precisava de algo mais específico. Muitas pessoas já tinham nos procurado com essa pauta e, então, juntamos o útil ao agradável”, conta Nayara Rosário.
“a gente partiu de uma ausência. por que será que por toda nossa infância e adolescência, mesmo tendo intimidade com a literatura, não líamos mulheres negras?”
evelyn sacramento
Em 2014, a escritora e jornalista britânica Joanna Walsh propôs, através da hashtag #readmorewomen, um projeto que objetivava a leitura e a visibilização de livros escritos por mulheres. No ano seguinte, a iniciativa desencadeou a criação, em São Paulo, do Leia Mulheres. Desde 2015, o projeto se expande pelo Brasil e chegou a Salvador no início de 2016. Hoje mediado por Joana Mutti, Ilmara Fonseca e Gláucia Ventura, o clube foi o primeiro a propor a leitura e a discussão apenas de escritoras na cidade.
Com o recorte de raça, o Lendo Mulheres Negras procura promover a leitura de escritoras negras e a discussão das especificidades de suas vivências. Fundado em 2016 por Evelyn Sacramento, Paula Gabriela e Adriele Regine, tem um viés acadêmico, incentivando a leitura e produção de textos, assim como a inserção e a permanência das mulheres negras nas universidades. “A gente partiu de uma ausência. Por que será que por toda nossa infância e adolescência, mesmo tendo intimidade com a literatura, não líamos mulheres negras?”, questiona Evelyn.
Criado em São Paulo, em 2017, o Clube Lesbos teve sua primeira reunião em Salvador no final de 2018, trazido por Cristiane Schwinden e Nayara Rosário. Cristiane destaca que as reuniões daqui já ultrapassaram em quantidade de público as da cidade matriz, que possui em média 10 participantes, e admira a trajetória do clube que, antes colocado em prática no meio de um dos corredores da Livraria Cultura, hoje conquistou uma sala e recebe apoio do local.
Encontros no último sábado do mês, às 14:30, no Museu de Arte da Bahia (MAB)
Facebook: Leia Mulheres Salvador – Ba
Instagram: @leiamulheres_ssa
Encontros na última sexta-feira do mês, sem lugar fixo.
Facebook: Lendo Mulheres Negras
Instagram: @lendomulheresnegras
Youtube: Canal Lendo Mulheres Negras
Encontros no último sábado do mês, às 15:00, na Livraria Cultura do Shopping Salvador
Instagram: @clubelesbos
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