Conheça a trajetória da artista baiana que atravessa os trios, palcos, coxias e estúdios de TV
texto Matheus Vilas e Rute Souza Cruz
multimídia Eduardo Bastos
diagramação Gleisi Silva
narração Mariana Brasil
colagem Eduardo Bastos
Ao ouvir o nome Ana Teresa é possível que você não se recorde da pessoa certa, mas se você já assistiu a peça teatral “Sonho de uma Noite de Verão na Bahia”, com certeza se lembra dela. A intérprete da Rainha Titânia é conhecida como Ana Mametto, sobrenome que tem um significado especial: “Mãe que cuida de todos”, em dialeto angolano. A cantora, atriz, apresentadora e jornalista bateu um papo com a Fraude contando um pouco sobre sua carreira, suas reinvenções e descobertas.
“Estar ali com a banda me despertou um desejo de cantar, e meu irmão sempre viu em mim uma cantora”
Criada no bairro da Fazenda Grande do Retiro, em Salvador, onde viveu até os 17 anos, Ana iniciou seus trabalhos na música ainda muito nova. Ela acompanhava os ensaios da banda em que seu irmão mais velho fazia parte. “Estar ali com a banda me despertou um desejo de cantar, e meu irmão sempre viu em mim uma cantora”. Vinda de uma família humilde, Ana teve que começar a trabalhar ainda adolescente como vendedora. Mas, segundo ela, uma vez os caminhos estando abertos, as coisas começam a acontecer. E aconteceram. Depois de fazer algumas participações cantando na banda do irmão, a jovem recebeu uma proposta de indicação para ser backing vocal. O medo e a pouca experiência no ofício não a intimidaram diante de uma oportunidade dentro do meio musical.
De cima do trio
“Em algum momento você vai sentir falta de você, de sua essência. É sobre não ser somente um produto.”
Eram os anos 90. O axé music dominava todas as paradas de sucesso no país. E, no verso de boa parte dos premiados discos da época, era possível encontrar a contribuição de Ana para aquele movimento histórico. Aninha Oliveira era como ela assinava. Depois de três anos como backing vocal da cantora Tânia Luz, Aninha seguiu para trabalhos com artistas e grupos como Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Claudia Leitte, Cheiro de Amor, e a banda alemã de rock Scorpions. Para ela, esse período serviu como uma escola. “Aprendi com esses artistas como construir uma carreira, como chegar no público e sobre qual é o seu propósito na música. Em algum momento você vai sentir falta de você, de sua essência. É sobre não ser somente um produto.”
Esse foi o ideal que instigou Aninha para que, em 2010, decidisse largar o microfone de backing para ser a protagonista do show. Ao contrário do que alguns podem pensar, a carreira de backing é algo de que Ana muito se orgulha. Segundo ela, tudo é uma forma de se preparar, logo, não há tempo perdido. O caminho para chegar até ali foi longo. Em 2010, a cantora vivenciou o que seria o divisor de águas na sua vida: Tudo Vira Som. O evento realizado nos largos do Pelourinho foi a virada para a carreira solo da artista que iniciava um novo ciclo, agora como Ana Mametto.
Olhar para trás
Para Ana, a música é uma conexão com o divino, uma oração que sua alma expressa na realidade. Uma forma de se conectar com a natureza, o verde, a chuva, os elementos e os ancestrais. É assim que a artista traduz a relação entre religiosidade e música.
Umbandista e filha de Iansã, Ana é muito conectada com sua ancestralidade e leva isso em seus projetos. Por exemplo, em sua mais nova produção, “Saudações”, uma websérie para reverenciar aqueles que fizeram ser possível que ela e outros artistas cantem música afro e discutam intolerância religiosa através dela. A cultura e a informação que Clara Nunes, Dorival Caymmi, Os Tincoãs, Vinícius de Moraes e Baden Powell trouxeram é saudada na série. A sua reverência é a forma que encontrou para dizer obrigada aos caminhos abertos por estes artistas.
Entre suas grandes inspirações está o cantor e compositor baiano, Mateus Aleluia,ex-integrante dogrupo Os Tincoãs, que a batizou como Mametto. Ele, também, lhe deu como presente a permissão para regravar a música “Deixa a gira girar” que até o momento conta com seis milhões de visualizações no YouTube e realmente ajudou sua vida a dar um giro.
Ela guarda um carinho especial por Margareth Menezes, a quem considera sua diva, por ser uma mulher preta que quebrou o preconceito do sistema musical e chegou ao mercado internacional. Ela era, e continua sendo, a cantora que Ana olhava e pensava: “É isso aí, eu quero ser essa mulher”.
Da nova geração de artistas, há também quem Ana admire. Algumas de suas referências atuais são Larissa Luz, Majur e Iza. Também conta que Russo Passapusso é alguém por quem ela nutre uma consideração especial. O vocalista da banda Baianasystem é visto como um grande pensador e representante da liberdade na voz e no canto. Ambos partilham da visão que é importante olhar para o presente reverenciando a ancestralidade.
“A Bahia é isso, esse celeiro cultural, esse furacão que explode e vai saindo de cada esquina e de cada comunidade talentos de todos os gêneros”
Ana atualmente canta música afro, mas uma série de outros gêneros musicais já passaram por seus vocais. A artista teve uma forte relação com o axé music. E, ao contrário do que alguns críticos supõem sobre o fim desse estilo, Mametto vê a chamada crise somente como um período de renovação. Afinal: “A Bahia é isso, esse celeiro cultural, esse furacão que explode e vai saindo de cada esquina e de cada comunidade talentos de todos os gêneros”.
Atriz SIM!
Ao se lançar como atriz, Ana não só surpreendeu a muitas pessoas como também a si mesma, já que cantar sempre foi sua prioridade. Tudo começou por meio de um convite de Fernando Guerreiro, produtor e diretor teatral baiano, para o espetáculo “De Um Tudo”. O que seria uma primeira experiência em cima dos palcos com coxias acabou dando muito certo, já que em sua primeira peça Mametto foi premiada com o Prêmio Braskem na categoria Revelação. Ela explica que “Quando você sobe num palco para se comunicar, você veste um personagem”, seja cantando, atuando ou até dançando.
Após a peça de 2018, ela voltou a atuar no teatro, desta vez como a poderosa Titânia no popular espetáculo “Sonho de uma Noite de Verão na Bahia”, do diretor João Falcão. O musical esteve em cartaz no Teatro Gregório de Mattos, em Salvador, durante o ano de 2019. A escalação para protagonizar a Rainha Titânia foi o segundo ponto de virada em sua vida e pode ser entendida como destino. Quando o diretor João Falcão veio a Salvador para realizar a sua versão baiana de Shakespeare, ele não a conhecia pelo nome, mas já desejava ter a menina do “Deixa a gira girar” em sua oficina. Por um acaso bem vindo, o diretor musical da peça era Yacoce Simões, marido de Ana Mametto, que mediou o contato entre João e Ana. Na época, mesmo muito ocupada, dividindo-se entre faculdade e trabalho, sentiu que não poderia recusar. Na sua visão “tudo já estava escrito”.
O espetáculo foi um sucesso. Duas temporadas em cartaz na cidade de Salvador. E surpresa! Mais uma indicação ao Prêmio Braskem, agora na categoria Atriz. Concorrendo com artistas já reconhecidas do teatro baiano, Ana levou o prêmio mais uma vez. A conquista foi algo mágico, consagrando-a de fato como uma atriz. O reconhecimento de sua entrega e dedicação ao papel que se inspirou em mulheres fortes do nosso dia a dia, trabalhadoras, que fazem acontecer.
“sempre se perguntar o porquê e o para quê é a forma de manter-se conectada consigo mesma e não se tornar apenas um produto.“
Ana não acredita em sucesso unicamente pelo sucesso. Para ela, a linguagem artística tem que ser condizente ao que ela pensa e acredita. Neste caminho, sempre se perguntar o porquê e o para quê é a forma de manter-se conectada consigo mesma e não se tornar apenas um produto. Enxergar a arte não como uma forma de realização própria, mas sim “uma ferramenta para se comunicar com outras mulheres, com nosso povo preto, com nossos orixás”.
Como uma coisa sempre leva a outra, o trabalho em “Sonho de Uma Noite de Verão na Bahia” trouxe um papel no musical nacional “Elza”, sobre a vida da cantora Elza Soares. O espetáculo esteve em cartaz em algumas capitais em 2018 e 2019. Orgulhosa pela trajetória na dramaturgia, a atriz sente-se privilegiada por poder fazer e viver de arte.
De repente, jornalismo
Com a oportunidade de poder viver de música desde muito cedo, Mametto acabou não seguindo para o ensino superior depois que terminou o ensino médio. Mas, alguns anos depois, quando se viu com estrutura, dona do seu próprio trabalho e senhora do próprio tempo, a atriz e cantora não pensou duas vezes ao ver uma chance de entrar na vida acadêmica. Sua principal escolha era o estudo da cultura afro, mas, com a ausência de uma graduação específica sobre o assunto no estado, acabou optando pelo jornalismo para ingressar na faculdade. “O jornalismo só agrega ao que eu faço. Sempre tive vontade de apresentar programas”.
Graduada em 2020, sua monografia de conclusão de curso abordou a Pomba Gira e a demonização dessa entidade pela sociedade. A nota 10 e a vontade de continuar falando sobre esse assunto ainda instiga a jornalista, que tem planos de lançar um livro sobre o trabalho e continuar atuando na comunicação. “Quero desmistificar a Pomba Gira, falar mais dela e o que de fato é essa entidade”. Mametto ainda conta que estão por vir novos projetos na TV e, claro, na música. Abraçar múltiplos projetos de diferentes áreas, que antes lhe causavam espanto e curiosidade, hoje faz parte de quem ela é.
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