Cem anos de novas leituras de Lima Barreto
texto Luiza Gonçalves
entrevistas Luiza Gonçalves e Israel Risan
multimídia Anne Meire
diagramação Luiz Felipe
narração Iris Morena
colagem Israel Risan
“Lima Barreto Este seu povo quer falar só de você A sua vida, sua obra é o nosso enredo E agora canta em louvor e gratidão”
Em fevereiro de 1982, no Rio de Janeiro, a escola de samba Unidos da Tijuca ganhou a Marquês de Sapucaí com o enredo: “Lima Barreto, mulato, pobre, mas livre”. O desfile, que ficou em nono lugar no grupo especial, retrata a trajetória pessoal do autor e seu universo literário. Entre plumas, baianas e carros alegóricos, versos em coro relembravam Lima Barreto aos corações saudosos de suas ideias, livros e pensamentos progressistas.
Cem anos da morte de Lima Barreto são completados em 2022. A necessidade de celebrá-lo acompanhou o fluxo temporal, ultrapassando a literatura. Música, academia, dramaturgia e audiovisual apresentam novas roupagens, que ampliam o alcance de suas obras e reafirmam seu lugar enquanto um dos maiores nomes da literatura nacional.
O homem que sabia Javanês
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1881. Foi jornalista, funcionário público e autor de romances, contos e crônicas. Em sua literatura se manteve atento, militante e crítico, sendo um intérprete da construção de um Brasil pós emancipação em todos os seus substratos. Observava as pessoas, as arquiteturas e criticava a corrupção, a república da belle époque em seus estrangeirismos e o jornalismo superficial.
“Lima Barreto acaba sendo o lugar de encruzilhada do que eu sempre pesquisei e gostei de ler: literatura, negritude e modernismo”
jorge augusto
“Lima Barreto acaba sendo o lugar de encruzilhada do que eu sempre pesquisei e gostei de ler: literatura, negritude e modernismo”, relata Jorge Augusto, 40, doutor em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ao se debruçar na obra de Lima Barreto em sua tese, o professor destaca que além da relação com a história do Brasil, o autor apresenta em sua ficção um forte potencial restaurador da cultura e epistemologia negra no país.
Língua, espaço e raça são os três elementos mais potentes da multiplicidade em Lima. Neto de escravizados, trouxe em primeiro plano personagens negros e suburbanos em seu romances, incluindo os “esquecidos” na paisagem do dia a dia carioca. “Clara dos Anjos”, “Isaías Caminha” e “Gonzaga de Sá”, ficções que se fundem às experiências pessoais e delineiam o conflito presente na cor da pele.
Lima sofreu muito em vida, adoecido pelas limitações que lhe foram impostas pelo racismo e imerso em deslocamentos sociais. Fez de tudo para falar através de seus textos, mesmo sendo inferiorizado e tendo que publicar por conta própria a maior parte de seus livros. Somente anos após sua morte foi reconhecido enquanto nome relevante no desenvolvimento da literatura nacional.
Duas biografias em tempos distantes são marcos fundamentais deste processo: “A Vida de Lima Barreto”, primeira obra dedicada à vida e literatura do autor, publicada em 1952 por Francisco de Assis Barbosa e, “Triste Visionário”, lançada em 2017, de autoria da historiadora Lilia Schwarcz. Segundo Jorge Augusto, o cenário daqueles que exploram Lima já não é mais isolado como foi há 50 anos: “Hoje em dia, há uma vasta produção sobre Lima Barreto que advém das mais diversas áreas das humanidades. Isso é bom. É um autor lido para vestibular, e um dos mais lidos academicamente, sobretudo por pesquisadores e artistas negros.”
A biblioteca
Centenas de obras, dentre reedições e antologias, atestam a popularidade do autor nos dias de hoje. “Clara dos Anjos”, a história da menina pobre de 16 anos que mora no subúrbio do Rio de Janeiro no início do século XX e cai nos encantos de Cassi, um músico, branco, sedutor, vem sendo publicada há 80 anos. O romance que retrata o racismo e o lugar da mulher na sociedade da época ganhou uma nova percepção ao ser adaptado em formato de quadrinhos. Última obra escrita por Lima Barreto e publicada postumamente, ganhou tradução visual em 2011 na parceria entre o ilustrador Marcelo Lelis e o roteirista Wander Antunes, a convite da Companhia de Letras e lançamento pela Quadrinhos na Cia.
Responsável por captar e transpor a essência dos personagens para o papel, Lelis, 55, estava ciente do desafio que carregaria ao aceitar a proposta. “Sempre corremos o risco de desagradar aqueles leitores mais fiéis do autor. Principalmente os de Clara, que é um clássico da literatura brasileira”, considera. O artista não teve muito contato com a obra do autor antes de trabalhar na adaptação, mas isso não o impediu de fazer com que o leitor se aproximasse e criasse conexão com a história a partir de suas composições de cena. Contudo, hoje enxerga seu trabalho com um olhar mais crítico e apostaria em técnicas diferentes para torná-lo ainda mais especial.
O autor ganhou destaque na cena literária em 2017 ao ser homenageado na 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). O evento de sete dias reuniu 43 autores do Brasil e do mundo. Durante sua realização foram anunciados os lançamentos de novas edições de “Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá”, “Impressões de Leitura”, “Numa e Ninfa” e um novo compilado de crônicas para jovens.
Um dos frutos da Flip 2017 foi o “Novos Mafuás: Crônicas de Lima Barreto e algumas outras coisas feitas por algumas outras pessoas”. O livro foi o resultado de uma residência artística na cidade proposta pela editora Lote 42 e orientada pelo artista plástico Gustavo Piqueira. Nele, quatro artistas deveriam desenvolver juntos intervenções e elementos estéticos para compor com uma pré-seleção de crônicas, uma obra relacionando a cidade, Lima Barreto e a festa literária.
Vania Medeiros, 38, artista visual, foi uma das responsáveis pelo livro. A designer conta que não possuía relação especial com Lima Barreto antes da experiência, a não ser as leituras de vestibular. A redescoberta do autor veio da relação com os colegas, leitura atenta dos contos e na produção de fotografias para o trabalho, que contou também com ilustrações, colagens e tipografia de Daniela Avelar, Henrique Martins e João Montanaro.
“Eu acho sempre maravilhoso fazermos a leitura e releitura desses textos clássicos latino-americanos, sobretudo brasileiros, pois eles nos dizem sobre a maneira como fomos construindo a história e a memória. Uma especial importância aos clássicos produzidos aqui, por corpos não hegemônicos, como era Lima Barreto. É super importante criar sempre situações artísticas, jornalísticas e editoriais de reencontro com essas obras”, enfatiza.
A nova glória
O primeiro marco de destaque que entrelaça Lima Barreto e audiovisual é o filme “Ossos, amor e papagaios” (1957), baseado no conto “A Nova Califórnia”, sendo considerada a primeira adaptação de sua obra para o cinema. Jaime Costa, Modesto de Souza, Ruth de Souza e Wilson Grey compõem o elenco que nos leva a Acanguera, uma cidade pequena que vira de cabeça para baixo com a chegada do forasteiro, Raimundo Flamel, alquimista que transforma ossos em ouro.
Desde então, outras obras como “Policarpo Quaresma, Herói do Brasil” de 1998, a novela “Fera Ferida” de 1993, “O Homem que Sabia Javanês” em 2003 e alguns personagens da novela “Lado a Lado” em 2012, tem trazido a ficção marcante de Lima para novos espectadores. “Lima Barreto, ao Terceiro dia” é o lançamento mais recente que contempla a obra do autor. No enredo, aos 41 anos de idade, nos três dias da sua última internação, Lima Barreto relembra sua vida quando era um jovem autor. O filme de 2018 é dirigido por Luiz Antonio Pilar e tem como protagonista o ator baiano Luís Miranda.
“nos apaixonamos por ele e pela maneira como lia o mundo e o Brasil do início do século XX”
tayna felix
Passados 50 anos desde sua primeira adaptação, “A Nova Califórnia” ganha uma roupagem inusitada ao chamar a atenção de Tainá Felix, 33, produtora cultural de São Paulo: “era necessário uma história tão boa virar jogo. Um conto de 1910, com uma temática tão contemporânea que valeria nos debruçarmos para adaptar para a linguagem dos jogos digitais. Era brasileiro, era preto e falava muito sobre a cultura nacional. Falar de ganância através da obra tão satírica e política de Lima Barreto era a maneira que queríamos começar a criar o jogo. Nos apaixonamos por ele e pela maneira como lia o mundo e o Brasil do início do século XX.”
O jogo é situado na fictícia Tubiacanga – nome original da cidade no conto – e permite ao usuário explorar a localidade, falar com os moradores, roubar tumbas e investigar os mistérios no desenrolar da narrativa. Tayná explica que o projeto foi pensado para uma faixa etária de 12 a 16 anos e levou cerca de quatro anos até a sua finalização. Dentre as principais dificuldades, a produtora menciona o cuidado na seleção de referências e construção dos ambientes virtuais, para que esses remetessem as passagens literárias do universo de Lima. Foram cerca de 40 protótipos até o jogo ser lançado em 20 de novembro de 2017.
“Acredito que a importância esteja justamente no fato de trazermos a cultura brasileira para dentro de uma indústria acostumada a contar histórias com referências europeias, estadunidenses ou japonesas. Os games se consolidaram nesses lugares, faz sentido que quando se crie, que você parta da sua cultura. Por que não fazermos isso aqui, no Brasil, como criadores de games brasileiros? Essa é uma forma de valorizar a cultura nacional em várias linguagens. Temos referências, mitologias, artistas, literaturas e causos que podem e devem servir de base para a criação de imaginários também nos videogames”, defende a produtora.
Como o “homem” chegou
No teatro, adaptações para peças que refletem a obra e dão voz a Lima Barreto, representaram e reconstruíram a narrativa em torno da figura do escritor, impactando o público das gerações recentes ao trazer para primeiro plano suas angústias, sonhos e pensamentos.
Hilton Cobra, 66, ator e agitador cultural baiano, é o protagonista do monólogo “Traga-me a cabeça de Lima Barreto”, de 2016. Com texto de Luiz Marfuz e direção de Onisajé, a peça inspirada nas obras do autor, principalmente em “Diário Íntimo”, traz Lima Barreto em uma exumação fictícia de seu cérebro por médicos e teóricos eugenistas. Com o desenrolar das cenas, teses eugênicas são expostas e o personagem as contra argumenta, passando por pontos de sua vida, obras, alegrias, frustrações e particularidades.
O contato mais íntimo entre Hilton e a obra de Lima iniciou em 2008 ao participar da peça Policarpo Quaresma, também de Marfuz. Ao celebrar 40 anos de carreira no teatro, em 2016, o ator resolveu debruçar-se novamente na vida e obra do autor, desta vez incorporando o escritor carioca: “Me senti desafiado. Era a primeira vez que eu estava fazendo monólogo, então por mais que eu tivesse a experiência, dava um friozinho na barriga,’. Eu não entrava em cena desde 2008, o corpo estava um pouco enferrujado, tinha que deixar ele pronto e aberto para receber o universo desse homem tão extraordinário, complexo e, às vezes, contraditório. O bacana da interpretação é que você ator tem que ser generoso, deixar que a personagem saia mais, venha mais, apresenta-se maior para o público” conta.
O ator não esconde sua admiração pela obra que considera um presente de “carpintaria dramatúrgica fantástica”. Compartilha seu interesse em continuar interpretando esse e outros “limas barretos” atravessados por temáticas como racismo, eugenia e pautando a vivência negra brasileira nos palcos do mundo.
“por isso que nesse centenário de morte que se inicia no dia 01 de novembro, temos que realmente bater cabeça pra esse grande pensador, cronista e escritor que foi Lima Barret0”
hilton cobra
“Lima Barreto é um dos grandes escritores brasileiros mais atuais. Quando você pesquisa um pouco mais a fundo o Lima e lembra de seus escritos e pensamento, parece que ele está vendo o nosso tempo de agora. Isso 100 anos depois de sua morte, é extraordinário. Por isso que nesse centenário de morte que se inicia no dia 01 de novembro, temos que realmente bater cabeça pra esse grande pensador, cronista e escritor que foi Lima Barreto”, conclui Hilton.
Música, literatura, audiovisual e dramaturgia. Em cem anos, Lima Barreto se fez múltiplo no imaginário cultural, e agora não está mais sozinho. Suas obras se propagam a cada geração e multiplicam-se com novos, corajosos e provocadores artistas. Preto, pobre e livre, Lima Barreto permanece eternizado na memória nacional.
A Fraude é uma revista laboratorial do Programa de Educação Tutorial em Comunicação (PETCOM) da Facom, UFBA e não possui fins lucrativos. Caso uma das imagens te pertença ou em caso de dúvidas, entre em contato pelo email revistafraude@gmail.com para acrescentarmos a referência ou retirarmos da publicação.
Ótima reportagem, Luiza. Fluida , sequenciada e sobretudo generosa com a inteligência e sensibilidade do leitor. Parabéns.
Excelente apanhado de um dos nossos maiores autores! Realça a importância de Lima, como uma voz dissonante do sistema, uma voz contra o racismo. A escola da minha época não chamava a atenção para essa que é a mais importante “face” do autor…Que cada vez mais valorizemos nossos tesouros que são verdadeiros exemplos, lanternas que podem iluminar o caminho pantanoso de quem é preto no nosso país.