Três décadas de memória e resistência do Arquivo Zumví
texto Iris Morena e Gabriel Vintina
multimídia Yan Inácio
colagem Arthur Soll, Daniel Araújo e Vanessa Cunha
diagramação Pedro Hassan Palmeira
audiodescrição Israel Risan
Subindo a Ladeira do Carmo, o número 29 marca bem mais que um endereço. É abrigo de memórias, histórias e documentações que mais parecem tesouro que fotografia. É a casa do Zumví Arquivo Afro Fotográfico. Um coletivo de fotógrafos negros criado com o intuito de promover a memória afro-brasileira através de imagens que retratam desde o Movimento de Mulheres Negras até a Feira de São Joaquim.
Destoando das produções imagéticas tradicionais realizadas em Salvador no século passado, o acervo documenta o cotidiano da comunidade negra em mais de 30 mil fotogramas, todos produzidos por pessoas negras. Um espaço único na cidade, um verdadeiro “quilombo visual”, termo cunhado por José Carlos Ferreira em sua dissertação “O Acervo de Nós: um estudo sobre a produção fotográfica do ‘Zumví Arquivo Fotográfico’ a respeito do movimento negro baiano”.
Lázaro Roberto, 65, fotógrafo e cofundador do Arquivo, lembra a década de 1980 como o momento de sua profissionalização e prenúncio do que viria. “Naquele momento, eu vi a possibilidade de contar algo através da imagem e da fotografia. Comecei a documentar e saber que eu poderia fazer história. Nem que fosse a minha própria história”, declara.
Zoom-Vi
Uma pequena reunião de colegas interessados em fotografia se tornou, em alguns anos, um dos principais coletivos da cena fotográfica baiana. Em 1990, os fotógrafos Lázaro Roberto, Aldemar Marques e Raimundo Monteiro fundaram o Arquivo Zumví. Lázaro, que entrou no mundo da arte através do teatro, logo percebeu que era na fotografia o seu lugar. “A primeira vez que vi uma foto preto e branco que não era 3×4 foi numa festa de um grupo de teatro, no meu bairro, eu tinha por volta de uns 20 anos. E aí bateu a vontade de ser fotógrafo”, lembra Lente Negra, como era conhecido no início da carreira.
O nome do Zumví Arquivo Afro Fotográfico, popularmente conhecido apenas como Zumví, se originou a partir da junção de duas palavras propostas por Lázaro. “Zum” fazendo referência ao zoom da lente e “Vi” do verbo ver. Segundo o cofundador, o nome refere-se à capacidade da lente de buscar a realidade que está longe para perto.
Em 30 anos de projeto, o arquivo já superou diversos desafios, principalmente a respeito de seu armazenamento. A coleção já foi guardada na Ribeira, Baixa dos Sapateiros e Curuzu. Atualmente se divide entre a casa de Lázaro, em Fazenda Grande do Retiro, e na sede, conquistada há apenas dois anos através de financiamento coletivo, na ladeira do Santo Antônio Além do Carmo.
Na primeira década após a fundação, Aldemar Marques e Raimundo Monteiro deixaram o projeto e passaram a dedicar-se a outras atividades. Os companheiros de Roberto doaram seus trabalhos feitos durante a parceria para a instituição, e suas imagens fazem parte da coleção até hoje. “A fotografia não dava dinheiro. A gente tirava do nosso bolso para fazer. E também a pessoa vai assumindo outros compromissos na vida”, conta Roberto.
Lentes Negras
O Arquivo Zumví registrou nas últimas décadas a trajetória dos movimentos negros na capital baiana. O acervo, se tornou, ao longo dos anos, ferramenta de pesquisa sobre as construções políticas e identitárias da negritude na Bahia. Lázaro Roberto foi precursor de um novo olhar para a fotografia documental, ele apresenta em suas obras o que viria a chamar de afro-fotografia. “Ali pelos anos 1990, eu fui desenvolvendo a afro maneira de fotografar, um modo de contar a história da negritude”, explica.
Entre as suas dezenas de milhares de fotogramas, o coletivo armazenou um grande catálogo com registros de movimentos de mulheres negras, quilombos, manifestações culturais, expressões estéticas e pessoas em situação de rua. Muitas dessas imagens traçam o percurso das discussões raciais no estado ao longo dos últimos anos.
“a minha própria fotografia me deu consciência racial. O movimento negro foi a teoria, e a prática foi a fotografia do dia a dia”
lázaro roberto
Através das imagens que produzia, Roberto se aproximou das pautas do movimento negro. “A minha própria fotografia me deu consciência racial. O movimento negro foi a teoria, e a prática foi a fotografia do dia a dia. Em uma cidade em que você vê pessoas negras jogadas no chão, eu estava fotografando a miséria social. Como eu falei, o meu foco é gente”, conta.
As lentes do Zoom-Vi acabaram por não só registrar as movimentações da população negra na Bahia, mas também as mudanças estruturais da cidade. Entre os seus negativos em preto e branco, há centenas de imagens da região de Água de Meninos, Feira de São Joaquim, Ilha de Maré e Curuzu. As suas fotografias giram em torno das expressões de negritude no cenário urbano, com isso, captam pedaços de coisas que, segundo Lázaro, identificam a cidade.
Heranças Fotográficas
Com seus fotogramas e os dos colegas armazenados por anos no quarto dos fundos da sua casa, Lázaro não imaginava que uma visita familiar fosse mudar o rumo do projeto. Quando seu sobrinho, José Carlos, foi levar a notícia da aprovação no vestibular para a família, conheceu a coleção e começou a vislumbrar um futuro para o Zumví.
José, mais conhecido como Zezão, é pesquisador e produtor do Arquivo. Ele divide a responsabilidade do Zumví com Lázaro desde 2010. No velório de sua avó, Roberto compartilhou com ele o medo do acervo se perder e a esperança da preservação com a parceria dos dois. “Ele falou assim: ‘minha mãe faleceu hoje, mas pelo menos tô feliz que você está aqui, e se eu morrer o acervo não vai ser jogado fora”, narra.
“nunca foi um trabalho. É uma missão e uma herança”
zezão
Zezão também relata que no primeiro momento não sabia como ajudar o tio, mas ao participar mais ativamente das discussões do movimento negro na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde cursava História, começou a entender a importância daqueles registros. “Nunca foi um trabalho. É uma missão e uma herança”, complementa.
A maior preocupação e atual problema do coletivo é a preservação. Em 2020, após serem contemplados no edital de digitalização de acervos privados da Fundação Pedro Calmon, digitalizaram 10 mil fotogramas e disponibilizaram na plataforma online do Zumví. Também buscaram formação na conservação dos negativos sob orientação do professor Elson Rabelo, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), e com a ajuda de estagiários, já catalogaram e armazenaram devidamente mais de nove mil negativos. Embora seja um número expressivo, não supre o tamanho do acervo.
O movimento é NEGRO
O Arquivo possui atualmente milhares de fotogramas, sendo parte deste catálogo fruto de doações. Uma das principais contribuições ao acervo foi realizada por Jônatas Conceição Silva, fotógrafo e militante do Movimento Negro Unificado (MNU). O também educador doou em 2006, alguns anos antes de seu falecimento, 1.600 fotogramas que foram incorporados ao Zumví. “A intenção [de Jônatas] era registrar nossa resistência, nossa insurgência e marcar para as futuras gerações que vão chegar que nós sempre estivemos aqui na luta. O movimento negro tem essa prática desde 1930. Desde a Frente Negra”, relata Ana Célia da Silva, 83, irmã de Jônatas Conceição e uma das fundadoras do MNU.
As fotografias registradas por Jônatas narram a história do movimento negro baiano. O então ativista fotografava e documentava a maior parte das ações realizadas politicamente pelas entidades negras na Bahia. O educador, participou junto a Lázaro e outro fotógrafo do Arquivo, no registro da visita de Nelson Mandela a Salvador.
A professora aposentada da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), Ana Célia, acompanha o trabalho de Roberto antes mesmo da criação do Arquivo Zumví. “Eu conheço Lázaro desde o início do MNU, lá em 1978. Ele sempre foi um militante silencioso, com aquela câmera fazendo aquelas fotos maravilhosas em preto e branco”, conta.
As histórias de Lázaro Roberto, Arquivo Zumví, Jônatas Conceição, Ana Célia e o Movimento Negro Unificado se entrelaçaram por diversas vezes ao longo das décadas na capital baiana. As fotografias do Lente Negra foram essenciais na rememoração das práticas do MNU. O Movimento Negro foi fundamental na construção da identidade racial do fotógrafo. E ambos significativos para todos aqueles que visitam o número 29 da Ladeira do Carmo.
A Fraude é uma revista laboratorial do Programa de Educação Tutorial em Comunicação (PETCOM) da Facom, UFBA e não possui fins lucrativos. Caso uma das imagens te pertença ou em caso de dúvidas, entre em contato pelo email revistafraude@gmail.com para acrescentarmos ou retirarmos da publicação.
Íris e Gabriel relatam como se estivessem vendo, o processo de formação do Arquivo Zumvi. A entrada de José Carlos nesse processo foi determinante para a vizibilidade e desenvolvimento e implementação das atividades do arquivo Zumvi.
Ana Celia da Silva