Imersão em uma realidade alternativa
texto Pedro Hassan Palmeira
multimídia Gleisi Silva
diagramação Juliana Barbosa
narração Felipe Sena
colagem Israel Risan
O metaverso ganhou holofotes ao ser notícia na grande mídia depois que o CEO de uma das Big Techs, Mark Zuckerberg, decidiu alterar o nome do grupo Facebook para Meta. A decisão, que faz parte de um rebranding, inclui como um dos objetivos assumir a liderança na corrida pela construção de um universo que incorpore o mundo real com o virtual.
Apesar de ainda estar em desenvolvimento, a concepção do metaverso não é nova. Desde os anos 1990, há discussões sobre o tema, principalmente, após o lançamento do livro de ficção científica “Snow Crash”, de Neal Stephenson. Na obra, o personagem principal Hiro Protagonist escapa da realidade ao explorar um universo de jogo online com seu avatar. O livro foi o precursor do gênero e antecedeu obras como “Ready Player One” de Ernest Cline, além de mangás e animes Isekai, como “Sword Art Online”.
Mas, foi no início dos anos 2000 que o conceito de metaverso passou a ser difundido. Com a chegada de jogos online como Club Penguin, Habbo e Second Life, os ambientes virtuais passaram a promover maior experiência imersiva e interação entre usuários. O fundamento básico desses games era ser uma plataforma de conexão social, o que bem define a proposta do metaverso.
Considerando que a ideia do metaverso é simular o mundo real no virtual, os games classificados como Role-Play (RP), que podem ser traduzidos como “interpretação de papéis”, vêm sendo bastante procurados ao longo dos últimos anos, como evidenciam interesses de pesquisa do Google Trends. Atualmente, existem alguns jogos que estão em alta e representam bem o nicho como Grand Theft Auto V (GTA V); Red Dead Redemption 2 (RDR2); World of Warcraft (WoW); Minecraft; Roblox; e PK XD.
“Quando você vai jogar o GTA RP, você está ali pelo ambiente de interação social e não para conquistar objetivos estipulados por um jogo tradicional”
daniel marques
As pessoas buscam fazer RP para participar de uma dramaturgia específica, em determinado contexto de comunidade e ambientes sociais. Para o professor Daniel Marques, 31, pesquisador no Laboratório de Pesquisa em Mídia Digital, Redes e Espaço (Lab404/UFBA) o público de GTA RP e do Roblox tem objetivos diversos. “Hoje, o que estamos vendo é que esses espaços são um tipo de lazer e entretenimento diferenciado. Quando você vai jogar o GTA RP, você está ali pelo ambiente de interação social e não para conquistar objetivos estipulados por um jogo tradicional”, afirma o pesquisador.
O meta é a meta
O GTA RP funciona através de uma modificação (mod) no jogo GTA V, possível por meio de um programa chamado FiveM, que permite jogar multiplayer em servidores personalizados. Nesta interação, a comunidade tem à sua disposição diversos servidores feitos a partir desse mod, habitualmente chamados de cidades, onde os jogadores criam sua vida virtual e são representados por avatares. O metaverso se abre como uma possibilidade de assumir características e personalidades completamente diferentes da vida real.
A influenciadora e streamer AthenaXis, 27, conta que conheceu o GTA RP através de conteúdos na internet. “Quando entrei pela primeira vez, vi que era de fato uma cidade com pessoas criando personagens e vivendo suas vidas dentro do jogo. Fiquei bastante interessada”. Foi com o auxílio do público de suas lives que a streamer resolveu criar a avatar Rita, de personalidade diferente da sua, voltada a um tom mais cômico. “Fiz com que ela fosse vendedora de Mary Kay, profissão que nem existia na cidade. Nessa brincadeira, ela acabou criando laços com a maior facção feminina da cidade, a Hells Angels, grupo do qual ela se tornou membro.”
“[como pessoa com paralisia cerebral], não tenho oportunidade de fazer isso no mundo real, então dentro do jogo sinto uma liberdade muito grande para agir dessa forma.”
henrique coscarelli
Optando por um caminho diferente, o streamer Henrique Coscarelli, 36, criou um avatar semelhante a si, com pequenas mudanças que se destacavam na personalidade galanteadora e sedutora. “[Como pessoa com paralisia cerebral], não tenho oportunidade de fazer isso no mundo real, então dentro do jogo sinto uma liberdade muito grande para agir dessa forma.”
No mundo virtual, Henrique é completamente independente e adora todo tipo de aventura. Das experiências que destacam essa liberdade, ele conta que a mais marcante foi a que teve com um amigo ao subir de moto o Monte Chiliad. “Foi muito difícil para mim, mas no fim consegui concluir a subida e no final, pulamos de paraquedas. Foi uma experiência única, que quero um dia poder realizar na vida real. Sinceramente, não tenho medo.”
No metaverso, é possível desenvolver relacionamentos, tratar de questões familiares, problemas afetivos e do cotidiano. Ter de lidar com níveis de fome, sede e estresse, assim como trabalho, também são alguns dos deveres que os usuários enfrentam. As possibilidades comparadas à realidade são de fato bem próximas, no RP, por exemplo, um paramédico presta socorro àqueles que necessitam de atendimento, um policial preza pela vida do cidadão, além da execução de atividades relacionadas à profissão, assim como no mundo real.
A streamer, Jocikelly Millys, 35, PcD, escolheu ser a Nairobi no mundo virtual, personagem muito parecida com ela. Kelly, como prefere ser chamada, também conta que Nairobi é bastante comprometida com seus empregos: “ela trabalhou por muito tempo em uma lanchonete da cidade. Quando comecei [Kelly] esse RP, achava que não conseguiria me adaptar, porque era preciso me comunicar com o público. Mas o patrão de Nairobi me deu todo suporte, entendendo minhas necessidades. Hoje, meu avatar está na polícia, algo que considero uma conquista por trabalhar ao lado de Meimei, personagem da Malena0202, que sempre fui fã.”
Tudo e todos no mesmo lugar ao mesmo tempo
De acordo com estimativas da TwitchMetric, a Twitch, serviço de streaming ao vivo, possui em média 150 mil visualizações diárias e picos de 400 mil pessoas simultâneas assistindo a gameplays de GTA RP. Pablo Malafaia, 33, artista visual, que streama na plataforma há pouco mais de um ano, acredita na semelhança entre a Twitch e as novelas, ao considerar a produção das narrativas através da atuação e a quantidade de visualizações. “Uma coisa engraçada que um amigo meu fala, é que nós somos atores. Acho que isso ainda é o comecinho de uma tendência. Mas os números estão aí, streamers com alcances enormes, pegando cada vez mais público e sendo alvo de interesse das marcas.”
O streamer conta que seu interesse por roleplay aconteceu ao observar um amigo jogar. “É curioso que eu criticava muito, chegava na casa dele e o via jogando. Eu questionava como ele suportava trabalhar no dia-a-dia e no jogo”. Foi depois de entender como funcionava a dinâmica que Pablo resolveu dar uma chance e criar seu próprio avatar, o Jacaré Pereira, fruto de um apanhado de referências colecionadas por ele. “Somos completamente diferentes, o Jacaré é um personagem que parte para o lado criminoso. Tento trazer essa coisa do malandro, desenrolado, ao estilo Zé Carioca”, descreve.
“Os ambientes de interação digital do entretenimento são hoje um dos grandes motores da própria indústria, de uma cultura gigantesca não mainstream”, afirma o professor Daniel Marques. Além de interpretarem personagens, os criadores de conteúdo, jogadores profissionais e streamers têm feito da atividade um ofício e estão sendo remunerados por isso.
Deepverse
Apesar da ideia de liberdade para viver narrativas, alguns limites são necessários para que o RP siga de forma coerente. Os jogadores precisam seguir à risca comportamentos de acordo com os papéis preestabelecidos para seus avatares. Por exemplo, é estritamente proibido conversar sobre assuntos externos ou tentar tirar dúvidas dentro do jogo sobre mecânicas ou informações do game. É necessário, através de improvisação, aprender com outras pessoas, ou descobrir por conta própria.
“Percebi que muita gente deixava de viver sua vida real, para viver a vida do personagem e acreditava que aquilo era a realidade”
athenaxis
Por ser um espaço imersivo e social, onde as pessoas expressam seus valores, costumes e cultura, por meio das identidades digitais, não é incomum que usuários se percam na fantasia. “Percebi que muita gente deixava de viver sua vida real, para viver a vida do personagem e acreditava que aquilo era a realidade”, sinaliza a streamer AthenaXis.
O roleplay também reproduz diversas formas de violência do mundo não-virtual e Kelly relata ter sido vítima inúmeras vezes: “Me imitaram [zombando da minha dificuldade de fala] e por consequência, essa pessoa foi punida, perdendo seu acesso permanentemente à cidade.” O machismo é outra violência perceptível no jogo, AthenaXis diz que já teve seus méritos questionados por fazer parte de uma facção feminina no GTA. “O que mais ouvíamos eram comentários machistas, falando que só éramos boas porque a dona do servidor era uma das membras. E eram muitos comentários desvalorizando e desmerecendo nossas conquistas.”
Manter os maiores e mais conhecidos servidores de GTA RP ativos tem um alto custo. A presença de players mais famosos nesses servidores acaba atraindo investimentos de diversas formas como vendas de itens no comércio interno com dinheiro real, NFT, investimento e especulação de criptomoedas, ou até campanhas publicitárias.
A questão do indivíduo estar em um mundo, onde se há uma economia, uma micro sociedade, onde cada pessoa tem uma função, faz com que o metaverso prometa ser o futuro. Agora, se de fato essa promessa se cumprirá, só o tempo dirá. Mas é no presente do universo virtual, do entretenimento e dos jogos que o público tem se tornado cada vez mais fiel.
Para quem ficou interessado e quer saber mais sobre roleplay, separamos alguns canais de streamers/criadores de conteúdo referencia para nossos entrevistados e ao cenário de RP para que você possa seguir:
athenaxis | henrique_coscarelli | kellygamer1803 | jacarepereira | paulinholokobr |
loud_coringa | gabepeixe | LuquEt4 | Diana Zambrozuski | FunBABE |
Malena0202 | DenisSniderTV | CriptoGirl | Tequillax |
A Fraude é uma revista laboratorial do Programa de Educação Tutorial em Comunicação (PETCOM) da Facom, UFBA e não possui fins lucrativos. Caso uma das imagens te pertença ou em caso de dúvidas, entre em contato pelo email revistafraude@gmail.com para acrescentarmos a referência ou retirarmos da publicação.
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