Entre equipes, campeonatos, ligas e patrocinadores: os esportes eletrônicos não são só um joguinho
texto Luísa Carvalho e Victoria Lenoir
multimídia Rute Souza Cruz
diagramação Stella Ribeiro
narração Victoria Lenoir
colagem Isadora Sarno
Você pode não saber exatamente o que significa League of Legends (LoL), World of Warcraft (WoW), FreeFire ou FIFA, mas muito provavelmente já leu ou escutou esses nomes por aí. Esses games fazem parte dos eSports, uma modalidade competitiva de jogos disputada em equipe ou de forma individual principalmente através da internet. As competições esportivas eletrônicas existem desde a década de 1970, mas foi a partir dos anos 2000 que sua popularização se tornou mais expressiva, acumulando cada vez mais jogadores e torcedores apaixonados.
“Os jogos eletrônicos a nível tradicional e a nível competitivo são denominados eSports”, explica Larissa Jensen, 26, mestre em Educação Física e streamer. Ela afirma, porém, que, na prática, essa definição acaba sendo ultrapassada e eles podem ser compreendidos como uma modalidade esportiva realizada inteiramente no ambiente digital. Os jogadores profissionais são por vezes chamados de gamers ou ciberatletas, mas, dentro da comunidade, o termo usado para defini-los é proplayer. Thiago Falcão, 39, professor de Comunicação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pesquisador em Game Studies, afirma que o uso do termo ciberatleta, a ideia do “atleta de computador”, resulta da tentativa de fazer uma relação mais direta entre os proplayers e os atletas de esportes tradicionais. Segundo Falcão, esse termo é incorreto porque, apesar de serem comparáveis, os eSports e os desportos tradicionais não devem ser entendidos da mesma forma.
“as pessoas acabam se prendendo a um conceito de esporte muito antigo que falava que seria só aquilo que envolve um esforço físico absurdo”
larissa jensen
Com a difusão da modalidade, a indústria de jogos eletrônicos tem crescido significativamente. Empresas como Riot Games e Activision Blizzard apresentam aumentos exponenciais de seu faturamento ano a ano. A previsão é de que o negócio fature até 43,7 bilhões de reais até 2022 só no Brasil, de acordo com a consultoria PwC. O patamar alcançado pelo universo dos esportes eletrônicos tem gerado não só um novo nicho econômico, mas também novas dinâmicas na comunidade gamer.
É muito mais que só um jogo
Em 2011, a Riot realizou o primeiro campeonato mundial de League of Legends, ainda em formato experimental. Apesar do primeiro torneio de jogos eletrônicos ter sido as Olimpíadas Intergaláticas de Spacewar, em 1972, a iniciativa da Riot foi um dos fatores principais para que a estrutura organizacional dos eSports como conhecemos hoje começasse a ser estabelecida.
Desde então, a parte competitiva dos games foi profissionalizada. Os jogadores que querem competir formam times, e esses times não estão limitados aos proplayers. Tiago Copello, 30, CEO da produtora de campeonatos de esportes eletrônicos baiana MITY, explica que existem muito mais cargos que compõem as equipes, como coordenadores, treinadores, e até psicólogos. Além das funções voltadas para os torneios, como narradores e comentaristas.
No Brasil, existem competições como a recente C.O.P.A. Free Fire, organizado pela Liga Brasileira de FreeFire (LBFF), e o Campeonato Brasileiro de Counter Strike (CBCS). Mas sem dúvidas o mais popular é o CBLOL (Campeonato Brasileiro de League of Legends), que acontece desde 2012 e tem a organização da própria Riot. Após as fases classificatórias, são selecionados os oito melhores times de LoL do Brasil para participar da disputa. As equipes competem entre si por várias etapas. Em 2020, o prêmio de primeiro lugar foi no valor de 70 mil reais.
Hoje, grandes marcas já investem nos eSports, patrocinando tanto equipes quanto campeonatos. A Coca-Cola, através da sua submarca Coke eSports, é patrocinadora de vários torneios e equipes, uma delas sendo a equipe de LoL brasileira paiN Gaming. A Red Bull também entrou para esse mercado organizando eventos como o RedBull Player One, que reúne jogadores de League of Legends em vários países, e promove disputas de CS:GO. Empresas como BMW, patrocinadora da equipe estadunidense Cloud9, e Nike, que patrocina a brasileira Red Canids, são outros nomes atuantes nesse cenário. Além disso, as produtoras fazem parcerias com algumas marcas, como a colaboração da Riot com a Louis Vuitton para fazer skins de alguns personagens de League of Legends.
Em Salvador, a cultura dos eSports é alavancada pelo CSLOL (Campeonato Soteropolitano de League of Legends), organizado pela MITY, que teve sua primeira edição em 2019. A competição é dividida entre a fase de grupos, as partidas de desempate e a grande final. Em 2020, o valor de inscrição das equipes foi de R$ 5,00 e o prêmio para a equipe vencedora foi R$ 400,00. Esse ano a produtora também realizou o primeiro Campeonato Nordestino de League of Legends (CNELOL), que ocorreu no período de 29 de setembro a 15 de outubro. A inscrição foi gratuita e o prêmio para a primeira equipe colocada foi no valor de 3 mil reais. Tiago Copello conta que a prinicpal intenção de fazer os campeonatos é fomentar a cultura de eSports não só na capital baiana, como agora em todo o Nordeste.
Mas é esporte ou não é?
É muito comum quem não faz parte da comunidade gamer precisar de referências vindas dos esportes tradicionais, como o futebol, para compreender a dinâmica dos eSports. As duas práticas têm grandes semelhanças. No entanto, a aceitação em categorizar o jogo eletrônico como um desporto ainda não é unânime. Larissa Jensen explica um dos motivos: “As pessoas acabam se prendendo a um conceito de esporte muito antigo que falava que seria só aquilo que envolve um esforço físico absurdo.” Ela salienta que essa é uma ideia “totalmente ultrapassada”, porque a própria definição do esporte se modifica e é impactada pelos processos sociais vigentes.
Nos eSports, o foco está nos reflexos mentais e raciocínios rápidos, e não no empenho corporal. “É racional, cartesiano. Lógico que a dedicação vai ser diferente de uma coisa que é física”, explica Thiago Falcão. Os esportes eletrônicos e os tradicionais nem sempre funcionam sob a mesma lógica. Mas o pesquisador destaca que isso não invalida os jogos eletrônicos de serem uma categoria esportiva.
Ainda que hajam disparidades, principalmente, quanto ao tipo de esforço, há características importantes que unem os eSports aos esportes já consagrados. Larissa destaca três: a mercantilização, a profissionalização e a espetacularização. As competições eletrônicas estão cada vez mais ligadas às relações financeiras, às grandes audiências e às redes televisivas, e seus jogadores possuem rotinas intensas de treino. Dinâmicas já muito conhecidas por serem características, por exemplo, de torneios de futebol, basquete e vôlei.
Com relação às diferenças no preparo físico, Falcão aponta que, ainda que elas existam, o compromisso é o mesmo. “O cara que é jogador profissional de futebol e o cara que é jogador profissional de CS:GO se dedicam da mesma forma”, exemplifica. Tallison Mallick, 26, treinador da equipe de LoL Falkol Academy, comenta sobre a rotina: “Fazemos treinos técnicos, análises de partidas, estratégias e scrims, que são partidas contra outras equipes apenas para praticar”. Tallison conta que os treinos das equipes acontecem diariamente, resultando em cerca de oito horas de prática ao final da semana.
Para Thiago Falcão, uma das principais diferenças entre os games eletrônicos e os tradicionais, na verdade, é a validade do jogador. A maioria dos players se aposenta por volta dos 25 anos quando a capacidade de reflexo, habilidade extremamente demandada nos eSports, começa a diminuir.
Além disso, os eSports compartilham com os esportes tradicionais a idolatria aos jogadores. No LoL, por exemplo, há personalidades como brTT, nome profissional de Felipe Gonçalves, que é capaz de mover torcedores de um time para outro, como fez ao sair da equipe Flamengo Esports e retornar para a paiN.
A grande audiência intensifica esse tipo de comportamento e ela tem ganhado ainda mais adeptos a partir da presença das competições eletrônicas em canais de televisão, como ESPN e SporTV. O espaço cedido na programação de veículos tradicionais para realizar premiações e falar sobre games é responsável pela popularização e reconhecimento dos eSports dentro da comunidade gamer e também fora dela.
Apesar disso, a resistência em aceitar que videogames sejam esportes ainda existe e está relacionada à falta de familiaridade de gerações mais velhas com o universo tecnológico. Thiago Falcão considera que essa discussão “carrega muito de um preconceito com relação à vida na tecnologia – ou seja, às coisas que a gente faz no computador”.
Um novo olhar para a tecnologia
A popularização dos eSports teve impacto na relação de toda uma geração com a tecnologia. Caroline “Dyuky”, 26, uma das apresentadoras do canal de tecnologia da Asus no YouTube, diz que o perfil dos usuários de celular expandiu bastante nos últimos anos. “O celular tinha um nicho específico pra pessoa que trabalhava, pra pessoa que tinha que fazer ligação. Hoje, uma criança de oito anos já pode ser um consumidor porque a gente tem o FreeFire”, jogo gratuito e leve o suficiente para rodar em diversos smartphones que vem ganhando popularidade entre os mais jovens.
Além disso, o interesse das pessoas em aparelhos tecnológicos aumentou. Segundo a youtuber, a pessoa que quer jogar passa a buscar mais informações sobre esses equipamentos. Desde aqueles que começaram a procurar teclados mecânicos e processadores de ponta até os que se perguntam coisas simples como “e se eu pegar um celular que tenha uma melhor bateria pra poder jogar?”. A relação de pessoas com tecnologia mudou de tal forma que hoje em dia grandes empresas como Asus, Xiaomi e Lenovo já lançaram seus próprios smartphones gamers.
Com essa nova cultura praticamente solidificada, muitos jovens sonham com a chance de serem proplayers. “É quase que uma fábula a ideia que você pode ficar rico jogando muito”, reforça Thiago Falcão. E como ele próprio fala, a maioria dos jogadores são adolescentes filhos de pais ricos. Por conta disso, se instaura a ideia de que para ser um bom jogador, você precisa ter os melhores equipamentos.
Para Dyuky, isso é um mito. “Eu recebo aqui em casa os últimos notebooks que têm os melhores processadores. Monitores com telas maravilhosas e perfeitas. Isso é tudo luxo, sinceramente”, expressa. Segundo ela, para começar a ser um jogador, a pessoa pode usar produtos intermediários que já servem ao seu propósito. Em especial para o LoL, que roda em vários computadores por ser mais leve que outros jogos.
Dyuky indica que o mais importante na hora da compra é se o notebook ou computador em questão não trava muito. E ainda ressalta que outros dispositivos eletrônicos podem ser legais para complementar seu setup gamer, mas não são um pré-requisito para ter boa performance.
Entre amizades e preconceitos
Os praticantes dos eSports costumam dedicar muito tempo aos seus jogos de preferência e a grande interação e troca de experiências entre os jogadores geram um senso de comunidade. Hoje em dia, a maioria dos jogos multiplayer contam com chats, de texto ou de áudio, na própria sala de jogo. Quando não há essa ferramenta, plataformas de comunicação, como o Discord e o Skype, são utilizadas pelos jogadores para que possam repassar informações durante as partidas. São frequentes também os fóruns e grupos em redes sociais para compartilhar técnicas, notícias e fazer amizades. A formação de laços é cada vez mais possível e frequente. “O jogo acaba sendo importante para as pessoas que estão ali se sentirem num grupo, se sentirem pertencendo a alguma coisa”, comenta Dyuky, que conheceu um de seus melhores amigos numa partida de LoL.
“não tem como debater só o que a gente joga e o que a gente faz no jogo. É preciso debater o que está sendo produzido também”
thiago falcão
No entanto, apesar de ter construído relações nesse ambiente, Dyuky gostaria que a comunidade fosse menos “tóxica”. E não só ela pensa assim. Esse é um desejo muito frequente entre proplayers negros, LGBTQIA+ e, principalmente, mulheres. “A cultura gamer é virulenta, é uma cultura de abuso e de masculinidade tóxica. É uma cultura que expulsa as mulheres. Que cria barreiras para que elas não se aproximem”, descreve o pesquisador Thiago Falcão. De acordo com análise feita pela Pesquisa Game Brasil em 2019, as mulheres representam 53% das pessoas que jogam esportes eletrônicos. Porém muitas delas relatam usar nomes e avatares masculinos nas partidas para evitar serem alvos de misoginia, sexismo e violências simbólicas.
Em 2019, os assédios e preconceitos sofridos pela streamer e influenciadora digital Gabriela Cattuzzo e pelo time russo Vaectivis trouxeram à tona discussões sobre os preconceitos frequentes na comunidade. Gabi, como é conhecida, teve seu contrato com a marca Razer Brazil cancelado e recebeu várias ameaças de morte em redes sociais após responder a comentários machistas em seu Instagram com um palavrão. Já as jogadoras do Vaectivis, primeiro time feminino de LoL a participar de um torneio oficial da Riot Games, foram vítimas de banimentos por times adversários durante o campeonato League of Legends Continental League. As atitudes foram consideradas discriminação por gênero.
Para Falcão, a mudança de comportamento na comunidade deve partir tanto do questionamento das atitudes “tóxicas” de jogadores, como também das empresas. “Não tem como debater só o que a gente joga e o que a gente faz no jogo. É preciso debater o que está sendo produzido também”, afirma. Nesse sentido, algumas mudanças surgem. The Last of Us II, sequência do aclamado jogo de 2013, – que não entra na categoria de esporte eletrônico, mas é bastante popular no mundo gamer – foi lançado em 2020 e tem como protagonista uma mulher lésbica, além de apresentar personagens transgênero e bissexual. A repercussão do jogo não foi exatamente positiva, com jogadores o acusando de priorizar a “lacração” ao invés de uma suposta qualidade. Apesar de reconhecer que ainda falta muito para que a comunidade supere seus preconceitos de gênero e sexualidade, Thiago Falcão considera o jogo um avanço e vê “com bons olhos o fato de que os estúdios estão sendo ocupados por pessoas que pensam nessas coisas”.
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