O resgate da memória negra por meio da imagem
texto Gleisi Silva e Luiza Gonçalves
multimídia Luiza Gonçalves
diagramação Anderson Figueiredo
narração Luiza Gonçalves
colagem Isis Cedraz
Como resgatar suas origens e se reconectar consigo mesmo quando seu passado simplesmente deixa de existir aos olhos da sociedade? Encontrar suas raízes sendo uma pessoa negra no Brasil não é uma tarefa fácil. Poucos são aqueles que têm o privilégio de conhecer profundamente sua ancestralidade. O apagamento histórico, fruto principalmente da política de embranquecimento pós-abolição da escravatura, perdura nos dias atuais, trazendo como um dos efeitos a dificuldade de encontrar registros materiais, tais como fotos e documentos.
A fotografia surgiu no final do século XIX e se consolidou como símbolo de poder, legado e prestígio, principalmente em suas primeiras décadas, quando o acesso a ela era algo muito limitado. Passou a ser via para expressão de um modelo de vida, tradições e valores, funcionando principalmente como marco cultural e documental de uma sociedade. No entanto, mesmo com tanto prestígio, essa representação não alcançava a população negra.
A dita abolição da escravatura deixou marcas, incertezas e questionamentos. Uma profunda ruptura das raízes, como destaca a música “14 de maio”, de Lazzo Matumbi e Jorge Portugal: “sem nome, sem identidade, sem fotografia”. Em contrapartida, é possível encontrar um novo enquadramento para esse cenário. Através do resgate da imagem do negro na história do Brasil, têm-se novas representações, fundamentais para a construção de referências e autoestima.
Irene Santos, Ismael dos Anjos e Nikolas Pallisser são três nomes, entre muitos outros, que atuam nessa missão e aqui foram reunidos. Perseguem em suas trajetórias profissionais e pessoais a memória, refletindo sobre as imagens e fortalecendo o diálogo entre passado, presente e futuro.
Ausência
Desde seu surgimento, a fotografia tem sido objeto de polêmica e fascínio. Durante o curso da história ocupou os papéis de arte, documento, registro e foi a origem do audiovisual. Caiu nos braços do mundo, sendo difícil imaginar, atualmente, uma vida sem os smartphones e suas câmeras. Hoje já é possível perceber um avanço na democratização dos meios imagéticos, mas por muito tempo no Brasil a posse e circulação de fotografias tinham um enquadramento estritamente rígido quanto aos donos e modelos. O “espelho da realidade” era branco.
“uma inquietação compartilhada por todas as pessoas negras do Brasil. Essa parte que a gente sabe mas não sabe, o que a gente supõe das memórias que foram apagadas propositadamente, que nos foram negadas”
ismael dos anjos
Para Ismael dos Anjos, 33, jornalista, mestre em fotografia documental e diretor do curta-metragem “Origens”, o rastro da falta de acesso documental exclui a possibilidade de descobrir relações afetivas, locais de relevância e valores culturais. Carrega as certezas para longe, reservando-nos: “uma inquietação compartilhada por todas as pessoas negras do Brasil. Essa parte que a gente sabe mas não sabe, o que a gente supõe das memórias que foram apagadas propositadamente, que nos foram negadas.”
A ausência material tem, na maioria dos casos, ligação com as configurações socioeconômicas em que boa parte dessas famílias se encontravam, o que fazia com que os custos para obter esses registros fossem pouco acessíveis. Além disso, era raro encontrar estúdios fotográficos fora das grandes cidades.
A precariedade das habitações também é algo a ser considerado. Nikolas Palisser, 27, mestre em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), destaca que isso é um fator recorrente: “as famílias negras, na sua maioria, obviamente não a totalidade, estão expostas a uma condição muito grande de vulnerabilidade social, fazendo com que um registro fotográfico seja difícil e a preservação desse também seja complicada”. O sociólogo cita um exemplo que apareceu em seu processo de pesquisa. Durante a realização de uma entrevista, ao questionar se haviam fotos, teve como resposta de uma das fontes que, durante um temporal, a chuva invadiu sua casa e danificou todos os registros existentes.
Entretanto, essa ausência encontra barreiras a nível público, que se juntam às da esfera doméstica. Tem-se a exclusão da veiculação de imagens de pessoas negras, como se não existissem, ou a utilização das fotografias como artifício para o reforço de estereótipos relacionados à população preta em meios de comunicação massivos.
A principal razão que fez a fotógrafa e historiadora Irene Santos, 74, se debruçar sobre as questões étnico-raciais no seu trabalho foi a ausência de representação fiel da população preta. Irene relata que durante viagens feitas pelo Brasil as pessoas se chocavam ao saber que ela era gaúcha: “me dei conta que, fora de Porto Alegre, o pessoal não sabia que aqui tinha negro e entendi que era chegada a hora de parar com essa história de não existe negro no Rio Grande do Sul.”
A fotógrafa conta que, durante sua adolescência e juventude, quando havia imagens de pessoas negras nos veículos jornalísticos de circulação nacional eram sempre em situações direcionadas a uma visão negativa. “Estavam jogadas na calçada porque tinham levado uma surra, se metido numa confusão ou a polícia tinha pegado”. Porém, diferentemente do retratado pela mídia, a relação com a fotografia era outra. Por ser algo de acesso restrito, eram extremamente cuidadosos em relação à aparência e postura quando iam aos estúdios, usando suas melhores roupas e penteados: a foto era um evento.
Construção
Para se reconectar com suas raízes enquanto pessoa negra, é preciso ir além daquilo que oficialmente se registra no país. Afinal, boa parte dos documentos materiais existentes não retratam a essência e identidade daqueles que, por muitas vezes, tiveram suas vozes silenciadas.
“a fotografia negra se constrói quando temos quem fotografar, o que fotografar e onde colocar”
irene santos
A partir dessa percepção Irene Santos afirma que: “a fotografia negra se constrói quando temos quem fotografar, o que fotografar e onde colocar”. Os registros assumem um relevante papel na formação de novas identidades, com a ruptura de modelos sociais que tornam invisíveis uma grande parcela da sociedade.
Além disso, os registros tornam-se símbolos de luta pela valorização da autoestima. Irene enxerga a exaltação da beleza nas imagens como ferramenta de combate ao racismo: “eu comecei fazendo a mudança porque meu trabalho é transformar. Não gosto da realidade, eu não a aceito muito. Toda vez que eu estou com uma foto, eu tento transformá-la para os meus parâmetros de beleza na fotografia.”
Pensando nisso, em 2005, surgiu seu livro “Negro em Preto e Branco”. “Comecei esse trabalho olhando minhas fotos, da minha família e via todo mundo bonitinho, arrumadinho. O negro aqui no Sul, em Porto Alegre, sempre foi considerado escravo. Então, era a primeira vez que alguém fazia uma coletânea com fotos de negros daquele jeito. Essa modificação foi a grande virada de chave para a reconstrução dessa história.”
No processo de produção do livro, ela teve a oportunidade de reunir inúmeras imagens de sua família e amigos, além de receber indicações de fotos de quem não conhecia. Com todo esse apanhado de materiais, percebeu que as pessoas, em tese, não davam tanta importância ao caráter documental que eles possuíam. “Tinham fotos, mas era mais um valor afetivo mesmo, não esse valor histórico que damos hoje em dia.”
Segundo Irene, a maneira que o Brasil foi historicamente construído fez normatizar discursos voltados para perpetuar a ideia de inferioridade da população preta, fruto da opressão que a torna socialmente vulnerável dentro desse sistema de dominação e poder. Assim, muitos tendem a acreditar que sua condição se resume sempre a ser esquecido, ocupando o segundo, terceiro ou último plano.
“isso é parte da cultura. Quanto mais velha a pessoa é, mais perto da fonte original da dor”
ismael dos anjos
Durante as pesquisas que fez sobre sua história familiar, o jornalista Ismael dos Anjos notou mais um obstáculo que influencia tanto na ausência, quanto na presença de imagens: as dores que a pessoa negra carrega consigo. “Muitas vezes, os guardiões dessas memórias têm tanta dor que não querem entrar em contato com aquilo, é como se fosse a tempestade perfeita do não olhar para isso. Quando eu tento conversar com os mais velhos, vem a seguinte resposta: ‘É melhor não olhar para isso, é melhor deixar para lá!’. Então eu sinto que isso é parte da cultura. Quanto mais velha a pessoa é, mais perto da fonte original da dor. A sensação é que devemos ‘mirar para frente’.”
Legado
No campo das imagens, reestruturar a memória é trabalho árduo, mas não impossível. Fotógrafa há mais de 40 anos, Irene compartilha que iniciar na profissão por si só já foi difícil: “Quase não haviam mulheres negras fotógrafas”. Por diversas vezes foi confundida como secretária em seu próprio estúdio ou questionada quando expunha suas ideias de trabalho. “As pessoas simplesmente não conseguiam imaginar que eu poderia ser fotógrafa.”
“no momento em que não houver memória, ninguém aguenta as coisas. Se tu não sabes de onde tu vens, tu não sabes para onde tu vais. O que nos sustenta é a nossa história“
irene santos
Começou fotografando produtos comerciais, eventos e artistas. Com o passar dos anos, direcionou seu trabalho para registro, documentação e organização das coletâneas sobre a trajetória negra brasileira: “No momento em que não houver memória, ninguém aguenta as coisas. Se tu não sabes de onde tu vens, tu não sabes para onde tu vais. O que nos sustenta é a nossa história”. Durante a entrevista, destaca com orgulho a renovação no cenário, ao citar seu sobrinho Osvaldo Santos, que aos 12 anos era sua única ajuda na cobertura das festividades e hoje em dia é cineasta.
Muitos elementos estão inclusos quando se pensa em memória individual e coletiva. Falas, cantos, alimentos, objetos e, tratados até aqui, os registros de imagens. Parte dela pode estar impossibilitada ou escondida, mas enquanto indivíduo, se há vivência no mundo, há memória. O pesquisador Nikolas Palisser propõe pensá-la como uma experiência dialética, situada durante nossa história e que também acontece no presente, sem amarras fixas ao passado.
Ele conta que seu despertar para a autoafirmação, no que diz respeito às questões étnico-raciais, aconteceu de maneira mais intensa no período em que cursava ciências sociais na Universidade Estadual de Londrina (UEL), em 2012, quando teve a oportunidade de ingressar no Laboratório de Estudos e Cultura Afro-brasileiras (LEAFRO). Dentro do grupo de pesquisa, passou por um momento de transformação, ao participar da concepção do livro “Dona Izolina e a Venda dos Pretos”. “Eu comecei a trabalhar neste livro e me envolvi tanto com a pesquisa, que comecei a me questionar. Isso fez com que eu me debruçasse sobre a minha própria trajetória, a minha própria história, a forma como me posiciono diante das questões.”
Nikolas propõe como reflexão necessária as ideias do sociólogo Guerreiro Ramos, que considera o negro enquanto lugar de onde se conta a verdadeira história do Brasil, a história dos de baixo. Um outro momento em que pôde experienciar essa mudança de narrativas foi durante a produção do seu artigo “Fotografia de Família Negra”, derivado do livro feito no LEAFRO. Nele, buscava entender os laços que compunham a família Marques Neves, utilizando como recurso de investigação as fotografias.
Ao analisá-las, constatou que muitas remetiam à força da união, de laços coesos que estruturam uma família. “Você percebe um companheirismo, lealdade e apoio, contrário a tudo aquilo que se diz sobre as famílias negras: que não constroem laços duradouros, que são ‘promíscuas’, que os filhos estão todos soltos no mundo.”
Segundo Nikolas, a fotografia tem o propósito de contribuir significativamente para o combate dos estereótipos. Na imagem apresentada em seu artigo: três filhos sentados em cima do balcão do bar e, ao fundo, um pai observando de maneira afetuosa sua prole. Essa conexão e amor entre pai e filhos pôde ser confirmada por Nikolas durante esse processo de pesquisa, quando soube que um deles, o mais velho, se recusava a falar sobre o pai e o passado desde que ele faleceu. “Então, esses sentimentos compõem o sujeito e são extravasados pela reação dele: ‘eu prefiro não contar, não falar sobre isso porque me emociona demais’.”
Quando foi convidado para dirigir o documentário “Origens”, fruto do projeto jornalístico homônimo, de Helton Gomes, Ismael dos Anjos conduziu as filmagens de modo a procurar a mesma riqueza de significados presente nas histórias familiares que já encontrava nas fotos. O documentário propõe uma investigação das ancestralidades de quatro personalidades negras, partindo inicialmente da realização de um exame de DNA.
Porém, os resultados não são a única fonte de pesquisa. Através de perguntas dirigidas aos convidados por Ismael, temos um panorama das experiências de Yuri Marçal, Péricles, MC Carol e Eliana Cruz. “Minha maior influência foi decidir como a gente contaria essa história pra não ficar só a parte técnica. Nossa história não se resume ao que aparece no exame de DNA.”
Na conversa com Péricles, ambientada em sua casa, a entrevista foi permeada com exemplos ligados às fotos de família dispostas pelo ambiente. O cantor citou a frase que dá subtítulo ao documentário: “Quem não sabe de onde veio, não sabe para onde vai”. Esse princípio, já citado de maneira similar nessa reportagem por Irene Santos, é de grande apreço para Ismael, por tratar, segundo ele, não somente de ausência, mas também do reconhecimento da presença.
“Eu gosto muito dessa frase porque ela passa a ideia de que mesmo que não saibamos, do ponto de vista oficial, de que etnia ou o país nós viemos, quando a gente pensa só no aspecto da memória, saber que os nossos passos começam onde terminam os de quem veio antes de nós é muito marcante. Não é só o que a gente não sabe, tem partes que sabemos e essas nos trouxeram até aqui”, explica.
“A gente precisa falar sobre essa colcha de retalhos que compõe a experiência ancestral da pessoa negra brasileira”
Ismael Anjos
É muito difícil ter perspectiva e solidez de para onde estamos caminhando quando colocamos em cheque de onde viemos, relata Ismael. O jornalista diz que, além de seu trabalho como cineasta, tenta exercer uma espécie de memória para sua família arquivando documentos, e planeja, um dia, escrever sobre sua própria história. Afirma que toda contribuição é relevante: “A gente precisa falar sobre essa colcha de retalhos que compõe a experiência ancestral da pessoa negra brasileira. Quais informações temos, quais não temos e como podemos ir preenchendo. Eu fico feliz de saber que o debate está acontecendo. A gente não caminha sozinho, então fazer parte dessa conversa coletiva já é bastante pra mim.”
Desta forma, seja por trás do visor ou produzindo conhecimento teórico, tem-se leituras das subjetividades e simbologias presentes nas fotos de família. O mundo agora é visto sob lentes negras, possibilitando a captura de legados, criação e cultura com mais integridade.
Para aprofundar mais nessa temática, separamos algumas indicações de filmes que abordam a questão da memória, fotografia e ancestralidade:
A Fraude é uma revista laboratorial do Programa de Educação Tutorial em Comunicação (PETCOM) da Facom, UFBA e não possui fins lucrativos. Caso uma das imagens te pertença ou em caso de dúvidas, entre em contato pelo e-mail revistafraude@gmail.com para acrescentarmos a referência ou retirarmos da publicação.
Linda reportagem e narrativa!!!
Parabéns aos envolvidos
Relevante o tema, criativa a metodologia de abordar pelas biografias dos profissionais.
Excelente trabalho, parabéns!