Histórias de famílias japonesas que criaram raízes na Bahia
texto Júlia Naomi e Marina Branco
multimídia Yan Inácio
capa Eduardo Santana, Reuel Nicandro e Yan Inácio
foto de capa Reprodução/ECBahia.com
diagramação Arthur Soll, Clarice França e Pedro Hassan
audiodescrição Anna Francisca Nascimento
A expressão japonesa gambatte significa “aguente firme!”, “boa sorte!”, “faça o seu melhor!”, e é dita para os outros antes de qualquer desafio, como um mantra de motivação. “Gambatte, kudasai” ou “gambatte, por favor”, reflete a energia que uniu os japoneses para superar as adversidades da crise econômica em seu país e no período posterior à imigração. Na Bahia, as primeiras colônias foram criadas entre os anos 1953 e 1962, nas cidades de Una, Ituberá e Mata de São João, em uma iniciativa do governo do estado para impulsionar a agricultura na região.
Momoyo Hoshi, 77, é proprietária do Restaurante Tempurá, em Stella Maris, bairro de Salvador, e conta os motivos que fizeram sua família deixar seu país quando ela tinha apenas 11 anos. “Naquela época, no Japão não tinha trabalho e meu pai perdeu o emprego. Ele lutou três anos na Segunda Guerra Mundial e teve problemas de saúde depois de ser baleado. Por causa dos problemas, ele não conseguiu trabalhar.” Após ver propagandas imigratórias e ouvir relatos de famílias que prosperaram em outros locais, a possibilidade de mudar de país tornou-se motivo de esperança.
A família embarcou no navio Argentina Maru em 1958, com destino à República Dominicana, onde trabalhou em plantações de café durante quatro anos. Devido à instabilidade política e à hostilidade aos imigrantes, abandonou o país caribenho e foi para a zona rural de Mata de São João, na Bahia. De acordo com o livro “Os Japoneses na Bahia”, de Leila Maekawa, os imigrantes enfrentaram dificuldades para se estabelecer no estado, impostas por barreiras linguísticas, terrenos isolados e inférteis e pelo desconhecimento dos costumes alimentares da população local.
Hana yori dango – Antes de flores, comida
Momoyo -san não teve a oportunidade de estudar na juventude. “Quando eu estava no Japão, era igual às outras crianças, ia à escola e brincava durante o resto do dia. Depois de chegar no Brasil, aos 15 anos, tive que trabalhar muito para sobreviver. “Meus pais preparavam a terra e eu ajudava. Peguei enxada, machado, cortei galho, fiz tudo”, relembra. Com o tempo e o apoio de imigrantes que chegaram primeiro, a família passou a produzir temperos e hortaliças, que eram vendidos na feira de Mata de São João e no Centro de Abastecimento da Bahia (CEASA), em Salvador. “Quem chega na colônia não sabe nada. Não sabe como falar, o que comer ou como viver”, explica.
Professora de japonês, Lívia Chiemi, 31, é filha de ex-comerciantes da Feira de São Joaquim, na capital baiana. “Meu pai fala muito que aqui, na sua juventude, não era comum comer certas verduras. Os japoneses trouxeram técnicas de plantio de legumes que os baianos não consumiam no dia a dia e passaram a acrescentar aos poucos na alimentação.” Sua mãe é descendente de japoneses e seu pai, baiano. Ele trazia para Salvador, de saveiro, frutas e verduras da Ilha de Maré.
Com o tempo fora do Japão, os imigrantes incorporaram costumes dos locais por onde passaram. Momoyo-san, que era de família budista, conta que conheceu o cristianismo enquanto morava na República Dominicana, por influência de vizinhos japoneses convertidos. “Eles compartilhavam ensinamentos da Bíblia e louvores uma vez por semana. Eu gostava de cantar e essa família levava instrumentos para tocar, aí fui sem saber nada e gostei.”
Nos espaços nipônicos criados em Salvador, as duas culturas se misturaram em uma só: nipo-brasileira. Um exemplo disso é a Casa do Estudante, fundada pelo consulado japonês em 1967, no bairro de Brotas, para acolher jovens estudantes japoneses vindos do interior. É o caso de Shigeki Nishimoto, 58, industriário e natural de Una, que veio para a capital na década de 1980 para cursar o ensino médio.
Ele relata que, nessa época, moravam na casa cerca de 40 estudantes. No tempo livre se juntavam para jogar futebol e vôlei em um campo onde hoje fica o cemitério Jardim da Saudade, criando uma união natural entre sua cultura ancestral e a brasileira. Shigeki conta que a maioria dos colegas que viviam com ele na moradia estudantil casaram-se com brasileiros, fortalecendo mais esses laços.
Ao longo dos anos, o número de moradores da Casa do Estudante diminuiu, devido à melhoria nas condições de vida da população nikkei. Atualmente, o prédio abriga a Escola de Japonês, a sede da Associação Cultural Nippo-Brasileira de Salvador (ANISA) e da Federação Cultural Nippo Brasileira da Bahia, instituição que promove intercâmbio cultural, educacional e esportivo entre as associações do estado.
Keizoku wa chikara nari – perseverança traz poder
Nos anos 1980, com um custeio cedido pelo governo japonês, os nipo-descendentes de Salvador conheceram o Seinenkai de São Paulo. Assim, foi criado o Seinenkai soteropolitano, um grupo de jovens nikkei que se reunia para fazer atividades que iam desde celebrações culturais, como o undokai e a dança circular japonesa Bon Odori, até torneios de futebol, dos quais Shigeki fazia parte, e que se manteve ativo até a década de 1990.
Em 2021, o Seinenkai de Salvador foi reavivado. Um dos membros atuais do grupo é Arthur Akira, 23, estudante de Arquitetura e integrante da quarta geração de sua família no Brasil. Aluno de japonês na escola da ANISA desde os 11 anos, reflete sobre a mudança de perfil de quem busca aprender o idioma e integrar o grupo jovem. “Tinham muitos seinenkai no Brasil, que foram desfeitos porque os descendentes deixaram de frequentar atividades culturais. Hoje em dia a gente sente que nas escolas de japonês, por exemplo, a frequência de alunos nikkei diminuiu muito. O que possibilitou juntar bastante gente foi a agregação de não japoneses que gostam da cultura e são participativos.”
Apesar da existência das conexões entre as associações, esse contato entre grupos nipo-baianos não é simples, principalmente pela distância entre colônias. É o que relata Isangela Kawano, apelidada de Lika, 60, presidente da Federação Cultural Nipo-Brasileira da Bahia. Lika veio de Londrina para Salvador em 2008, e foi parte de uma renovação nas atividades culturais nipônicas na cidade, a exemplo da criação do Grupo Cultural Wadō.
O grupo incentiva, há mais de quinze anos, a prática de taiko, um tipo de percussão japonesa, e de danças – como o yosakoi soran, o matsuri dance e o parapara. Enchendo os eventos nikkei de música e dança, o grupo é uma representação tanto da renovação de lideranças, que tem sido passada para os jovens, quanto da integração entre descendentes e não descendentes nas atividades.
Marcel Sunano, 27, engenheiro mecânico, descendente de japoneses e coordenador geral do grupo, trabalha intensamente essa ideia de renovação entre os integrantes. Para ele, a proposta do Wadō também é desenvolver pessoas, formar líderes, tendo a presença de Lika como diretora honorária como um apoio essencial para essa presença jovem. “Por isso a gente permanece, mesmo tendo tantas demandas da vida adulta. É para ajudar no crescimento dos membros que chegam, para que no futuro, quando os atuais não estiverem mais lá, o grupo continue vivo.”
“aqui, o que a gente tem não é mais cultura japonesa, é cultura nipo-brasileira, já está misturado”
lara sampaio
Junto com Marcel na coordenação do Wadō, está Lara Sampaio, 27, fisioterapeuta e entusiasta das atividades do grupo. Ela conheceu o Wadō por intermédio de um amigo que participava das aulas, se apaixonou pelas práticas e passou a fazer parte do movimento, mesmo sem laços ancestrais. Em 2022, quando fez um intercâmbio pela Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA), conheceu na prática a diferença na forma como as pessoas passaram a lidar com costumes tradicionais no país asiático. Para Lara, é como se, no Brasil, as tradições japonesas tivessem sido congeladas no tempo, da forma que os imigrantes as trouxeram, décadas atrás. “Aqui, o que a gente tem não é mais cultura japonesa, é cultura nipo-brasileira, já está misturado.”
A abertura das atividades nikkei para pessoas sem laços familiares com o Japão, tanto no Seinenkai e na ANISA quanto em grupos como o Wadō, divide opiniões dentro da comunidade japonesa. Akira conta que os descendentes têm se dispersado um pouco do contato com sua ancestralidade, e ressalta a importância da presença dos não-descendentes que participam das atividades. “Eu acho que mexe um pouquinho com o orgulho do japonês, porque mostra que essas pessoas, mesmo sem ter um pingo dessa herança no sangue, estão se dedicando mais que ele próprio para preservar a cultura.”
Dekassegui – Distante de casa
Na década de 1990, o Japão começou a abrir as portas para fortalecer a indústria, que precisava de mão de obra. Então decidiram contratar as famílias japonesas que saíram do país nos períodos de crise. Os pais e avós de Lívia Chiemi, por iniciativa da mãe dela, se mudaram para o país. Assim, Lívia nasceu na cidade de Hyogo, uma das primeiras a receber imigrantes brasileiros.
Dekassegui é um termo japonês que, em tradução literal, significa “trabalhando distante de casa”. Ele é utilizado para pessoas que deixam seu local de origem para trabalhar uma temporada em outra região ou país. Este movimento é comum entre os descendentes de japoneses no Brasil, que vão ao Japão com o objetivo de juntar dinheiro para enviar à família ou fazer economias.
“não tive vontade de ficar, porque a família ficou aqui no Brasil”
momoyo-san
Momoyo-san e seu irmão também foram dekassegui. Ela retornou ao Japão para receber capacitação para dar aulas de japonês e, anos depois, para atuar como auxiliar de enfermagem. “Não tive vontade de ficar, porque a família ficou aqui no Brasil. Fui só para trabalhar e mandei o dinheiro para casa”, explica sobre sua referência de lar. No ano 2000, seus irmãos a convidaram para deixar o serviço rural e abrir um restaurante, motivados pela experiência de um deles, que trabalhou com cozinha em seu país de origem.
A proprietária do restaurante aprendeu a cozinhar com a sogra e em cursos oferecidos pela Associação Cultural e Esportiva Nipo Brasileira de Posto da Mata, cidade para a qual se mudou quando se casou. Em Salvador, fez o curso de Cozinheiro do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). Sua filha conta que ela trabalhava de dia e estudava à noite. “Ela se orgulha muito desse feito, por causa da dificuldade com o português”.
Yuu yuu jiteki – Vivendo fiel à si mesmo
Arthur Akira chegou a morar um período no Japão, com uma bolsa de estudos concedida pela JICA, vivendo os dois lados da moeda do que é ser nipo-brasileiro. “Aqui em Salvador, eu sempre fui ‘o japonês’ das coisas. Quando eu fui para o encontro de estudantes japoneses em São Paulo, eu era ‘o Bahia’. No Japão, eu era brasileiro, então é complicado essa identidade de mestiço. São baques que te fazem pensar ‘eu sou daqui’. É importante ter contato com essa identidade, não para te dividir entre brasileiro e japonês, mas para ser 100% os dois”, explica.
Então, o que é ser nipo-brasileiro? Essa pergunta, muitas vezes, parece ainda não ter resposta. Como é possível avaliar ou mesmo padronizar uma identidade miscigenada, que une culturas distintas? Foi o desafio do concurso Miss Nikkey Bahia, o qual Lívia Chiemi venceu como Primeira Princesa Nikkey, em 2023. Afro-japonesa, passou a vida toda em uma constante dualidade sobre quem era. Quando morou no Japão, as escolas onde estudou costumavam pedir que ela prendesse seus cabelos, para que outras meninas não quisessem cachos como os dela. No Brasil, era sempre tida como “a japa”, ou apontada como indígena. Em meio a esse desafio, ela precisou encontrar seu próprio senso de identidade e origem, que fugia aos rótulos e categorias onde a tentavam colocar.
Na edição do festival Bon Odori em 2023, que teve como tema “Arigatô Bahia”, Lívia conta que se sentiu pela primeira vez representada no palco de um concurso em que costumam competir participantes de pele clara. Essa falta de representatividade foi um fator determinante para a demora da participação dela no concurso, deixando a tentativa para as últimas oportunidades que teve. Isso porque, para ela, era muito difícil saber como seria avaliada em meio às participantes que costumavam subir ao palco do Miss Nikkey. “O critério que eles vão usar para isso, é quem parece japonesa. Mas o que é japonesa, sabe? Eu sou negra, mas também sou japonesa.”
“já pensou uma japa-negra? Quero dizer com isso que ‘sim, nós existimos e existe beleza em sermos quem somos’”
lívia chiemi
Ao receber o prêmio, Lívia contou como essa conquista representa para ela uma maneira de honrar todos os obstáculos enfrentados por seus antepassados e incentivar novas participantes do Miss Nikkey a quebrar paradigmas. Para a Princesa, poder falar sobre essa representatividade foi a parte mais importante de todo o processo do concurso. “Já pensou uma japa-negra? Quero dizer com isso que ‘sim, nós existimos e existe beleza em sermos quem somos.’”
Cada nipo-baiano tem em si um pedaço da história da imigração japonesa na Bahia, repleta de lutas, sonhos e saudades dos amigos e familiares deixados. Os japoneses trouxeram consigo um espírito de coragem e esperança, diante de um país em que, segundo as propagandas imigratórias, tudo o que se planta frutifica. “Muita gente que saía do Japão dizia que depois de alguns anos trabalhando no Brasil, voltaria, para conseguir realizar outros objetivos. A maioria tinha esse sonho. Só que na realidade, o local era diferente da expectativa, aconteceram coisas inesperadas com todo mundo, e o destino tinha outros planos”, reflete Momoyo-san.
Falar da vida nikkei na Bahia não é exatamente falar de cultura japonesa, brasileira ou baiana. É, acima de tudo, contar a história de uma nova cultura, que mistura povos, tradições e famílias em uma herança nipo-brasileira, formada de resistência, beleza e identidade. Nem sempre foi fácil preservar um sentimento que por tantos é incompreendido. Mas, como diriam os nikkei na época da imigração, “gambatte, por favor” – para que a presença nipo-brasileira nunca deixe de resistir, de se renovar, e de existir.
Essa reportagem foi feita por Júlia Naomi e Marina Branco, ambas do curso de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia e integrantes do PETCOM.
Fotografia: Samara Said/ Labfoto © 2024 Assistência: Lourdes Maria/ Labfoto © 2024
A Fraude é uma revista laboratorial do Programa de Educação Tutorial em Comunicação (PETCOM) da Facom, UFBA e não possui fins lucrativos. Caso uma das imagens te pertença ou em caso de dúvidas, entre em contato pelo email revistafraude@gmail.com para acrescentarmos a referência ou retirarmos da publicação.
Deve-se lembrar a ambígua discriminação racial existente nos dois países. Agente se sente em cima do muro, pois aqui no Japão nñ somos japoneses, e no Brasil, ñ domos brasileiros. Na época dos meus pais , na guerra, os brasileiros tocavam fogo nas plantaçõesdos japoneses Para intimidar e até mesmo agredí-los. Eu sinto bastante a diferença no tratamento de uma ocorrência policial, mesmo sendo só de trânsito. Quando é com estrangeiros vitimados por japoneses, nem fazem questão de investigar à fundo as causas e dão por encerrado, liberando o agressor ou culpado. Um exemplo claro de descaso foi recentemente documentado na mídia de brasileiros daqui: um jovem brasileiro de scooter foi literalmente atropelado por um veículo conduzido por um japa. O que aconteceu? O miliante foi liberado sem nem mesmo ser preso por ñ haver provar comprobatórias para responsabilizá-lo pela morte do jovem. Lamentável porque do contrário, se gosse o brasileiro o causador do acidente, ele estaria preso até hj. É o acontecido com mta frequência em relatos de dekaseguis que se envolvem em acidentes e ñ dominam o idioma!