A expressão da sexualidade feminina na música
texto Micaele Santos e Anne Meire Cardoso
multimídia Jade Oliveira
diagramação Iris Morena
narração Glaucia Campos
colagem Nadja Anjos
“Sou cachorra, sou gatinha, não adianta se esquivar. Vou soltar a minha fera, eu boto o bicho pra pegar”. O clássico “Boladona” da Tati Quebra Barraco é um símbolo do início da lírica feminina no funk. Com uma linguagem explícita e cheia de si, a cantora carioca conquistou os bailes funk no início dos anos 2000. Um espaço que até então era comandado apenas por Mestre de Cerimônias (MC’s) masculinos passou a ter cantoras falando sobre suas experiências sexuais.
Sons comuns nas periferias do Brasil, como o rap, trap, pagodão, além do próprio funk estão ganhando novas vozes sobre a sexualidade em corpos femininos e LGBTQIAPN+. Artistas colocam sua existência frequentemente marginalizada no centro de uma narrativa sexual e empoderadora, como forma de resistência e combate às agressões que sofrem na sociedade. A música “Metralhadora de bunda”, por exemplo, da cantora drag queen Nininha Problemática explicita: “Viado não é bagunça, travesti não é bagunça, se tentar contra o meu bonde, metralhadora de bunda”.
“quando a gente vê violência de gênero, por exemplo, o fim geralmente não é o ato violento, e sim o recado que é passado para as pessoas de como as mulheres podem existir”
juliana soares
Juliana Soares, 34, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, diz que existem alguns autores [das ciências sociais] pensando a redistribuição da violência como estratégia de luta. “Quando a gente vê violência de gênero, por exemplo, o fim geralmente não é o ato violento, e sim o recado que é passado para as pessoas de como as mulheres podem existir”, conta. Essa redistribuição acontece quando uma minoria social utiliza da mesma linguagem do opressor, já atravessada pelo contexto e redistribui para tensionar lugares importantes da estrutura de poder.
Tertuliana Lustosa, 26, chegou aos palcos conhecida como vocalista da banda A Travestis. A cantora de pagode, escritora e artista visual destacou a importância de ouvir mulheres expressarem o tesão que sentem. “Assim como os homens têm o direito de falar sobre a sua sexualidade, as mulheres também têm”, frisa.
A desigualdade de gênero no ramo musical não é diferente de outras áreas. Em uma pesquisa de 2021, realizada pela União Brasileira de Compositores, constatou-se que 79% das mulheres na música sofreram discriminação de gênero e 53% não receberam valores de direitos autorais. Dentre as mulheres que responderam a pesquisa, 60% se autodeclararam brancas e os outros 40% como pardas, amarelas, pretas e indígenas. Apenas pouco mais de 1% eram mulheres transgênero. Variáveis como etnia e classe social são aspectos que dificultam ainda mais a consolidação da carreira. “Não conseguimos nos identificar, criar políticas de perspectivas de crescimento para outras mulheres”, reconhece Tertuliana
O pagodão é sucesso nos paredões das favelas da capital baiana. Entre a ascensão do pagode baiano nos anos 1990, passando pelo É o Tchan, Harmonia do Samba, Psirico e Léo Santana, o papel das mulheres ficou limitado ao espaço de dançarina ou segunda voz. “O mercado ainda coloca a mulher em um lugar subalternizado. Nunca no lugar de protagonista, vocalista”, destaca a artista.
No entanto, em 2019, a Dama do Pagode rompeu parte desse cenário, conquistando o público baiano com seu protagonismo ao cantar o que um homem deveria fazer para conquistá-la. “Adoro quando ele me pega, me puxa, eu fico excitada. Ai pai, pirraça. A dama gosta quando você pega e maltrata…dá murrinho, dá!”. Mesmo não sendo a primeira mulher nesse ritmo a ter prestígio, a cantora desde então vem se destacando por expor em canções suas preferências sexuais, assim como vem construindo sua influência.
Bota na boca. Bota na cara! Bota onde quiser
O livro “Cai de boca no meu b#c3t@o: o funk como potência do empoderamento feminino”, escrito por Tamiris Coutinho, 32, teve seu título inspirado em uma música interpretada por MC Rebecca. A obra foi resultado do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Tamiris em Relações Públicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e recebeu uma série de ataques políticos após sua divulgação. Ela diz que “é um direito da mulher usar o seu corpo para se manifestar. O que me levou a escrever sobre isso foi a minha experiência pessoal com a música”. Desde a pré-adolescência, a escritora, que teve o funk como sua principal trilha sonora, percebeu na música a possibilidade de se posicionar livremente. Ao lembrar da Tati Quebra Barraco cantando: “69, frango assado, de ladinho a gente gosta. Se tu não tá aguentando, para um pouquinho, tá ardendo? Assopra”, Tamiris reconhece a potência que existe nesses versos sendo cantados por uma mulher.
Segundo uma pesquisa do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo (ProSex), 55,6% das mulheres apresentam dificuldade de chegar ao orgasmo. Para Tamiris a educação sexual é o caminho para que as mulheres se tornem mais protagonistas da sua sexualidade. “O sexo é uma coisa que faz parte da vida da maioria das pessoas. Faz muito bem quando consentido entre todos os envolvidos, mas também é algo que pode ser muito violento, triste e traumático quando não partimos do viés da liberdade e do entendimento da sexualidade.”
No trecho “mostra a barriguinha e o short rachando a gigante, já de put4ri@, só tchuca da xerec@ grande. O meu marido me engordou, porque ele gosta de bucet@ grande. Me fode, me lambe”, a cantora Elana Lima, 21, conhecida como Laela, alavancou sua carreira ao transformar um meme baiano em música. Para a pesquisadora Juliana Soares, as práticas de empoderamento transcendem os limites acadêmicos, provando que o feminismo é uma prática de vida. “Existem corpos que estão fazendo acontecer no dia a dia. Muitas mulheres no paredão, ainda que não seja intencional, estão compactuando, reproduzindo práticas em consonância com o feminismo, o empoderamento e com a reivindicação de decisão sobre o próprio corpo, isso é incontestável.”
“a depender de quem canta o pagode, pode difamar a mulher, mas quando eu canto é um outro lugar.”
laela
Apesar de ser algo comum, principalmente nas favelas, Laela conta que nem sempre gostou de frequentar paredões e que apenas na adolescência passou a se interessar. O paredão é uma festa de rua popular nos finais de semana da cidade e tem esse nome justamente pelo aparelho de som alto, feito uma parede, que toca de forma estridente os pagodões de sucesso. Mesmo sendo um estilo musical que vem sendo utilizado para empoderar mulheres, o pagodão não fica isento de problemáticas. “A depender de quem canta o pagode, pode difamar a mulher, mas quando eu canto é um outro lugar. Não é um homem cantando sobre mim”, declara Laela. De fato, não é de agora que músicas mais explícitas, cantadas apenas na perspectiva masculina, tem mais possibilidade de ter um cunho machista e pejorativo.
Muito diferente de quando em “Me Dá Dinheiro Ou Me Faz Gozar”, por exemplo, a rapper carioca Slipmami narra uma mulher deixando bem clara a necessidade de sentir prazer durante o sexo. “Vadia eu só transo pra gozar, se eu não gozar quero seu dinheiro, tá? Esses caras quer meter sem querer saber de chupar. Pode abaixando e lambe essa porra tá. Bem devagar!”. Nesse verso, é possível perceber que mulheres também são seres sexuais e o quanto são convictas do que gostam na hora ‘h’.
O impacto nas ouvintes
Julia Teixeira, 20, estudante de biomedicina, reconhece como foi marcante ouvir mulheres falando abertamente sobre sexo e que durante a adolescência, passou a incluir mulheres em suas playlists, parte importante de seu desenvolvimento. A estudante garante que em nenhum momento sentiu-se constrangida por gostar de músicas mais explícitas.
Diferente dela, Dandara Nunes, 19, estudante de nutrição, assume que lidar com julgamentos sociais por ouvir músicas explícitas já chegou a ser um problema. “Quando eu comecei a escutar mulheres em outros ritmos musicais, que falavam sobre questões sexuais com tranquilidade, sentia dificuldade de escutar em lugares públicos ou mostrar a alguém que eu escutava esses sons”, desabafa.
No entanto, a percepção da estudante de nutrição foi mudando conforme essas músicas faziam parte de sua rotina. “Ver meninas expondo, cantando o que eu também penso, me deixa mais livre para abordar esse temas e para poder viver isso também”, destaca Dandara.
“se uma mulher ouve MPB, legal, é culta. Mas se escuta pagode, o que fizer da vida vai ser totalmente irrelevante. Ela deixa de ser a mulher inteligente, que se esforça e luta pelas coisas que quer porque dança funk, por exemplo”
dandara nunes
Dandara critica a forma como a sociedade define as mulheres com base nos seus gostos musicais. “Se uma mulher ouve MPB, legal, é culta. Mas se escuta pagode, o que fizer da vida vai ser totalmente irrelevante. Ela deixa de ser a mulher inteligente, que se esforça e luta pelas coisas que quer porque dança funk, por exemplo”. Ela acredita que atribuir valores a uma pessoa apenas analisando o que se escuta é totalmente ultrapassado.
“Escuto essas músicas quando estou indo fazer uma coisa muito difícil e quero um empurrão dessas mulheres que são fortes e deram a cara a tapa para estar nesse lugar tão difícil, dominado por homens. Quando preciso desse apoio, minha playlist só toca elas”, reconhece Dandara. Mesmo tendo que lidar com toda a misoginia envolvida, a busca por representatividade e confiança é um dos motivos que fazem essas músicas terem o reconhecimento das ouvintes.
Aqui vai uma playlist com músicas das artistas citadas e muitas outras:
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