Conheça a literatura de terror feita na Bahia
texto Glaucia Campos e Mariana Brasil
multimídia Luiza Gonçalves
diagramação Stella Ribeiro
narração Lila Sousa
colagem Anderson Figueiredo
Stephen King, quadrinhos da Marvel, Lovecraft, folclore brasileiro, Zé do Caixão ou até mesmo a rotina. O que une esses elementos? Para os escritores baianos de literatura de terror, todos eles configuram uma só coisa: fontes de elementos do assustador.
Para consumidores iniciantes de obras de terror, o Brasil pode não ser o primeiro país a ser lembrado ao falar do gênero, por não trazer a quantidade e dimensão das produções de terror hollywoodianas. No entanto, diversos nomes da literatura clássica brasileira já flertavam com o universo do horror. Representantes como Álvares de Azevedo, com sua obra “Noites na Taverna”, em meados do século 19, inspirado pela escrita gótica, já trazia elementos sombrios e sobrenaturais.
Para o escritor baiano Ricardo Santos, 40, embora existam contos, novelas e romances de terror escritos por autores brasileiros há mais de dois séculos, somente agora os artistas passaram a assumir e aceitar o “fazer terror”. A resistência em ser nichado como escritor de horror ou de classificar algumas produções de nomes importantes como sendo do gênero vem da divisão entre as chamadas alta e baixa literatura, na qual gêneros como terror e fantasia seriam vistos como inferiores. “Na verdade, tem terror e fantasia com uma profundidade filosófica e reflexão social fantástica, que merece todo o apreço. Tem um conto de Lygia Fagundes Telles chamado ‘As Formigas’, é um terror sensacional. Tem uma coletânea chamada ‘Terror Imortal’ com contos de terror de escritores clássicos como Machado de Assis e outros”, citou.
O cinema nacional também se destaca nessa categoria. Com o clássico personagem Zé do Caixão, criação de José Mojica Marins, o Brasil consolida o terror em suas telas. Os filmes eram produzidos de forma independente e o próprio Mojica era ator, diretor, roteirista e produtor. O primeiro filme com o personagem, “À meia noite levarei sua alma”, é reconhecido como um dos mais importantes no cenário nacional, entrando na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. O clássico vampiro brasileiro abriu caminhos para as produções de terror atuais.
Para Ricardo, o mesmo ocorre na literatura. O autor de obras como a coletânea “Estranha Bahia” – que reúne contos de diversos autores de terror, fantasia e ficção científica com ambientação na Bahia – entende que a influência de autores nacionais e estrangeiros serviu de alicerce para criar sua própria ficção, traduzida para a realidade baiana.
Em sua visão, a literatura de horror no estado tem crescido e tem se estabelecido cada vez mais. “Literatura baiana é efervescente, sempre foi. Temos os clássicos, João Ubaldo, Jorge Amado, Itamar Vieira Junior bombando agora com ‘Torto Arado’. Só que a questão da ficção especulativa sempre foi incipiente, agora que a gente tá tendo uma cena que está se consolidando.” O subgênero em que o autor também se debruça, a chamada ficção especulativa, aborda mundos diferentes do real de várias maneiras, muitas vezes se aproximando do terror.
À meia noite levarei sua alma
“Quem sabe mais de terror do que a gente?” Esse é o questionamento levantado por Djavan Benin, 39, escritor, designer e ilustrador, autor da trilogia “Ordem Macabra”. Ele conta como extraiu dos horrores diários a inspiração para escrever os terrores fictícios. “As consideradas tradicionais referências de terror sempre abordaram a religiosidade de origem africana e indígena como sendo coisas ruins, coisas do mal”. Cita o exemplo do filme “Holocausto Canibal”. “Como se só as religiões do Ocidente fossem limpas, puras. O que quero é abordar o que é o bem e o mal. Isso é muito relativo.”
Fazer denúncias sociais através do terror não foi uma escolha arbitrária para os escritores baianos. Djavan destaca que “esses alardes dão uma provocada em você. É um recurso muito poderoso. Por exemplo, a questão racial: você dá uma chacoalhada com força, isso leva pra quem está apreciando aquele choque imediato e depois leva à reflexão.”
“esse sentimento de angústia aliado com a crítica social consegue passar a mensagem que você quer do jeito mais impactante possível”
alan de sá
O escritor feirense Alan de Sá, 27, compartilha da mesma visão de Djavan e acredita que o diferencial do terror é justamente a possibilidade de mexer com os sentimentos do leitor. “Acho que o terror tem uma potência justamente pelo fato de que vai te causar incômodo. Esse sentimento de angústia aliado com a crítica social consegue passar a mensagem que você quer do jeito mais impactante possível.”
Em paralelo, a poeta e escritora Mariana Maddelin, 27, compara os gêneros que mescla na ficção especulativa: “a fantasia chega num lugar de encantamento, de criar possibilidade, e o horror já vem no lugar da execução. Não é simplesmente imaginar uma realidade, mas talvez precaver as pessoas de que se nada for feito, a gente vai parar naquele lugar. Ele ganha um teor de urgência, de movimentar as pessoas”, acredita. A visão de um poder específico que o gênero detém é compartilhada por Ricardo, que percebe no terror uma capacidade de extrapolar, “jogar a realidade na sua cara, pegar a superfície e chacoalhar, desestabilizar a pessoa.”
Não somente por ser terror, mas por ser da Bahia, a literatura regional do gênero traz outros diferenciais. Ricardo enxerga as realidades vividas pelos baianos como um prato cheio para o terror, e narra: “por exemplo, uma mulher que pega um ônibus do Centro para a periferia, tarde da noite, o ônibus vai ficando cada vez mais vazio, ela desce no escuro… Então se você escreve um conto com esses elementos, se fala de várias coisas, da condição da mulher, da desigualdade social. Você escreve um conto de terror com várias nuances e críticas.”
Criando o próprio terror
Além da resistência cultural, os desafios de um gênero pouco popular inserido em um contexto regional incluem a luta sutil entre representar o espaço e os terrores à sua volta sem cair em estereótipos locais. Nesta linha, buscando uma representação que passeia entre o fantástico e uma real vivência nordestina, os autores baianos fazem movimentos de transgressão dessa narrativa, criando novas possibilidades. Alan de Sá é um dos nomes que exemplificam bem essa postura, através de sua criação – junto a Gabrielle Diniz e Alec Silva – do conceito de Sertãopunk.
“O Sertãopunk nasceu de uma inquietação que a gente tinha em relação a representações do Nordeste na ficção. Teve um momento em que estavam começando a construir algumas representações meio estereotipadas, misturando cangaço com ficção científica e tratando essa questão do cangaço como uma representação quase homogênea do subgênero death. A gente não gosta disso, então, como gostaríamos que fosse?”, conta
“A linha entre valorizar a cultura e o estereótipo é tênue. O cangaço faz parte da cultura nordestina, mas toda vez que se fala sobre Nordeste tem que falar primeiro sobre cangaço?”
ricardo santos
É também neste caminho que Ricardo Santos segue: “a linha entre valorizar a cultura e o estereótipo é tênue. O cangaço faz parte da cultura nordestina, mas toda vez que se fala sobre Nordeste tem que falar primeiro sobre cangaço? Então, nessas histórias do ‘Estranha Bahia’, o que a gente tentou foi valorizar nossa cultura, mas quebrar um pouco desses estereótipos”, explica.
Essa escolha de falar da própria terra também implica colocar um pedaço de si nas histórias. Mariana narra um pouco do sentimento oriundo dessa mesma demanda de ter uma melhor representação nas obras que via. “A minha vontade de escrever veio da necessidade de me ver em determinados espaços, então eu tendo a ambientar em locais reais, é como se eu tivesse demarcando que esse corpo existe nesse espaço. Eu sou uma mulher negra, bissexual, baiana, nordestina e eu falo ‘cara eu queria poder me enxergar nesse universo’”, declara.
O que é que a Bahia tem?
Ladeiras de Brotas, vielas internas do Pelourinho, até esquinas da Pituba. A Salvador turística vendida nacional e internacionalmente não carrega as nuances obscuras que a cidade real proporciona. Essa coexistência entre beleza e grotesco ocorre todo o tempo no solo soteropolitano. É nessa dualidade que as obras de terror locais se sustentam. Em cenários já muito conhecidos – e nos nem tanto também -, as tramas se desenrolam. “Eu evito ter história no Pelourinho”, brinca Ricardo. “Acho que têm várias ‘Salvador’, então a gente tem que mostrar mais isso.” Em “Raças”, conto presente em “Estranha Bahia”, Santos traz um detetive que transita pela cidade, incluindo bairros aparentemente menos óbvios para uma ambientação de terror.
Para Djavan, a escolha foi não trazer os locais reais da cidade e explica o porquê: “Quando estou trabalhando com uma questão espiritual e religiosa, se eu delimito um espaço ali na história ia ficar muito específico e identificável de que religião poderia ser.” Mesmo com o uso de metáforas e ficção, Benin conta como é difícil desvincular certas identidades de alguns locais, principalmente por já ser muito difundida a relação entre religiões e determinados espaços, o que pode acabar interferindo na construção da realidade fictícia do autor.
Mariana já ambientou suas histórias em diversos lugares da Bahia, como Porto Seguro, Cachoeira e Salvador. Na capital, alterna desde localizações mais famosas como o Pelô, Baixa dos Sapateiros, o Itaigara, a orla, até a região metropolitana e por aí vai. “Em ‘As Inverdades Nunca Ditas’, a personagem sai de Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália e vem até Salvador”, descreve.
Na perspectiva dos autores, a ruptura com a baixa popularidade do terror nacional já é realidade. Como aponta Maddelin, “é possível sim falar de terror na Bahia e em qualquer realidade, porque é apenas você utilizar do medo como ferramenta para chamar a atenção das pessoas e o medo é um sentimento constante. Eu acho que o horror é possível em qualquer cenário.”
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