O Trem do Subúrbio se aposenta e deixa uma trilha de histórias e afetos por Salvador
texto Kelvin Giovanni e Sarah Cardoso
foto de capa João Lima
diagramação Kelvin Giovanni
Existe uma magia no trem. Um encanto diferente que só entende quem sobe no vagão e sente a brisa atravessar as janelas. Ao longo dessa matéria, à medida que conhecíamos novas pessoas e fazíamos o trajeto Calçada – Paripe, fomos compreendendo esse fascínio. Através do brilho nos olhos de cada um dos entrevistados, descobrimos que o trem transborda o seu significado: é também espaço de amor, festas, música e, sobretudo, saudades. O que seria somente um meio de transporte se revelou um terreno fértil para semear afetos e cultivar memórias.
O Trem do Subúrbio
A paisagem se projeta a partir das janelas de metal da locomotiva. De um lado, as construções de alvenaria que compõem os mais de 20 bairros do Subúrbio Ferroviário da cidade de Salvador, do outro, estende-se a Baía de Todos os Santos. Dentro do vagão, a vida segue seu curso. Os adultos falam ao celular apressados, enquanto as crianças observam o mar ao longe através da janela embaçada de salitre. Grupos evangélicos cantam, pregam, fazem exorcismos ao vivo e disputam a trilha sonora do trajeto com os comerciantes que divulgam seus produtos. Os jovens mais destemidos se penduram na porta aberta do trem em movimento, desafiando uns aos outros. Os estudantes conversam empolgados e os trabalhadores aproveitam para tirar um cochilo durante o trajeto de 13,5 km entre os bairros de Paripe e Calçada.
A linha, que hoje se resume às dez estações da cidade de Salvador, costumava cortar toda a Bahia, aproximando o território aos estados vizinhos numa malha que interligava o país. A via férrea foi inaugurada em 1860, conectando Salvador a Alagoinhas. Era a quinta ferrovia a ser construída no Brasil e a primeira na Bahia. No mesmo ano, já estrearam o trecho Calçada-Paripe e a Estação da Calçada, prédio que se tornou um marco arquitetônico da Cidade Baixa.
O trem trouxe inúmeros benefícios à população do Subúrbio, como o abastecimento das feiras da região com mercadorias que vinham do interior, a chegada da iluminação elétrica, a presença do transporte público e a instalação da fábrica de tecidos São Brás, que proporcionou o povoamento do bairro de Plataforma e a formação da Vila Operária. Com cerca de 14 mil passageiros por dia, o Sistema de Trens do Subúrbio de Salvador se configura não apenas como um meio de transporte, mas também um ponto de encontro entre amigos, espaço de criação artística, construção de conhecimento e inspiração para músicas e poemas.
O trem do Subúrbio vai ser aposentado. O Governo pretende substituí-lo pelo Veículo Leve sobre Trilhos. Entre os usuários, uns têm esperança na renovação, fé na modernidade, outros parecem prestes a perder um ente querido. Depois de quase 160 anos de serviço, o trem dá adeus, deixando marcas não só nos trilhos, mas na memória das pessoas e na história de Salvador.
GILSON VIEIRA, 64
“O trem é a minha vida”
Aos 48 anos, Gilson largou o emprego de programador na Petrobrás, na década de 90, para se dedicar à causa dos trens. Chegou o momento em que o dinheiro acabou, a fome bateu, mas conseguiu dar a volta por cima. Hoje, com os filhos criados, Gilson diz que não se arrepende de nada e se compara à águia, que, também aos 40 anos, sobe no pico mais alto, tira suas penas e se renova. “E foi isso que eu fiz, bati as asas e voei.”
Quando criança, se mudou para uma casa em Periperi, no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Um dos vizinhos tinha um trenzinho de brinquedo, mas não emprestava para ninguém. Gilson só namorava o brinquedo de longe. “Aquilo me causava um fascínio, as rodinhas rodando mesmo fora dos trilhos, era uma coisa mágica!” Sonhava em ser maquinista, como seu avô. A paixão era tanta que colecionava todas as enciclopédias de uma série sobre transportes da Disney. Quando chegou a edição sobre ferrovias, guardou todo o dinheiro da merenda, queria ver os trens da Europa “todos bonitões, correndo como serpentes”. E, se tudo isso não explica a paixão de Gilson, ele recorre até ao inexplicável: “Talvez na vida passada eu tenha sido ferroviário”.
Forró no Trem
Gilson queria levar pelo menos um pouco dessa empolgação para quem pega o trem diariamente. Foi então que importou a ideia do Trio Nordestino do trem de Recife a Caruaru e trouxe uma versão bem personalizada para a linha Calçada-Paripe. Desde 2002, de maio a julho, tem forró no trem, e já pode botar 28 edições nessa conta. Tem banda, caixa de som, licor e comidas típicas feitas pela Adocci, uma cooperativa só de mulheres de Itapagipe, que armam uma vendinha lá mesmo. O vagão enche e o pessoal vai dançando agarradinho no balanço da locomotiva. A noite chega e ninguém quer largar o forró.
Ele não se contentou só com isso. Já organizou, também, samba, blues e um carnaval que lotou o trem com mais de mil pessoas. Tudo é motivo para festa. Na copa de 2002, quando o Brasil ganhou da Alemanha, comemoraram com feijoada e dobradinha na Estação da Calçada.
O afeto é tamanho que Gilson o transforma em luta, festa, música e poesia. Em 2013, ele lançou um álbum só de canções sobre trens. Confira abaixo, a música que compôs, Brilho no trilho.
Ver de Trem
Nem tudo são festas nessa história. Ultimamente, Gilson tem estado angustiado. O governo planeja aposentar o trem para a implementação de um Veículo Leve sobre Trilhos. Ele resiste, dividindo seu tempo entre protestos, palestras e assembleias, onde luta pela permanência do trem. Gilson sempre foi um ativista da causa. Ele coordena o projeto Ver de Trem, que se articula desde 1992 para dar força ao movimento ferroviário, lançando campanhas de valorização do modal.
Com o projeto, participou até da ECO 92, conferência organizada pelas Nações Unidas na cidade do Rio de Janeiro, onde reivindicou a importância socioambiental dos trens. O grupo, que contava com quase 100 pessoas – entre ferroviários, jornalistas, artistas e ambientalistas – foi de trem de Salvador ao Rio de Janeiro em uma viagem inédita. Depois de 3.000 km de estrada de ferro e seis dias de viagem, foram recebidos na capital carioca por Gilberto Gil.
Nessa luta, Gilson tem seus altos e baixos, mas não planeja desistir. Acredita que a mobilização pode preservar o trem. “Quando vem essa angústia, eu esmoreço um pouquinho, mas daqui a pouco eu renovo.” Assim, mesmo quando não precisa, ele faz questão de andar na locomotiva. Às vezes deixa o carro estacionado só para ir de trem e na cabine dos maquinistas, que sempre fazem questão de lhe perguntar as novidades do movimento. A perda individual e afetiva é evidente, mas, para ele, o encerramento das atividades do trem de Salvador é uma perda coletiva. A passagem custa R$ 0,50. De acordo com Rui Costa, governador do estado, a tarifa do VLT será a mesma do metrô de Salvador, atualmente R$ 3,70. Gilson considera esse aumento bastante negativo. “Para quem está desempregado ou é autônomo, isso aí é um valor da cesta básica do mercado por mês, da feira, da água e da luz. É uma tragédia social.”
MARINALVA CONCEIÇÃO, 68
“Era uma festa!”
O trem era o point na adolescência de Marinalva. Lá, todo mundo se encontrava e a farra era certa. Marinalva estudava na Ribeira, no Colégio João Florêncio. Para voltar de lá, a turma toda pegava uma lanchinha e saltava na Estação de Plataforma, onde ficavam jogando conversa fora até que o próximo trem chegasse.
Na época, os mais velhos reclamavam da algazarra, mas os estudantes não ligavam. O trem era o espaço dos encontros, das festas e das paqueras. Os jovens faziam samba na Estação da Calçada e comemoravam festas de aniversário com bolo e “gasosa” de limão dentro do trem. Quando chegava a primavera, faziam desfiles. As meninas levavam as roupas escondidas nas mochilas, se trocavam no banheiro da Estação e ficavam para lá e para cá pelos vagões, com as saias curtas e coloridas.
Ela conta que paquerou muito no trem. Antigamente os bancos eram chamados de “cara-de-pau”, pois ficavam um em frente ao outro, o que servia para chamar a atenção dos rapazes com o remexer da saia plissada. Na época, era permitido passar de um vagão para o outro, e elas só sentavam no vagão que tivesse os rapazes mais bonitos. Nesse rebuliço todo, as histórias de novela tinham como cenário o próprio trem. A amiga de Marinalva, prometida para o casamento arranjado pela família, arranjou um namorado no trem. O outro descobriu e a briga estava feita. Se instalou a confusão no vagão. O rapaz, apaixonado, quis até se jogar.
ALEXANDRE RIBEIRO, 80
“Eita, viagem boa!”
Alexandre, no auge dos seus 80 anos, é uma verdadeira enciclopédia sobre os trens da Bahia. Fomos recebidos em sua casa, em Paripe e, assim que sentamos nas cadeiras da varandinha, ele avisou: “vamos começar por etapas”; mas logo em seguida disparou tudo que sua prodigiosa memória guardava.
Até dos horários Alexandre lembra. “O último saía 11h40 da noite, ía a Simões Filho e Camaçari. Pernoitava lá e descia pelas 4h da manhã, pegando o pessoal do Subúrbio. Chamavam ele de Lobisomem, o trem da madrugada.” E, assim, ele foi contando a história dos trens que percorriam o nosso estado. Com emoção, seu Alexandre fala dos trens Expresso Feira de Santana, Monte Azul, que fazia a baldeação em Brumado para São Paulo, e da linha Centro, que ia até Juazeiro. Dos trens chiques, dá risada e lembra com saudades. “Tinha o motriz que ia até Santo Amaro. Era um trenzinho de duas classes, quase de burguês; O noturno era o trem especial, de luxo. Tinha dormitório, refeitório, tinha tudo! E o Marta Rocha que era trem dos barões.”
Alexandre vem de Ouriçangas, interior da Bahia. Aos sete anos, sua vida já se entrelaçava com o trem. “Eu botei muita lenha para a estrada de ferro, para as máquinas a vapor. Meu pai cortava a lenha e eu e minha irmã transportávamos.” Aos 20, veio, de trem, morar em Salvador, no Subúrbio Ferroviário. Quando chegou em Paripe, em 1958, próximo à estação, só havia as chamadas Sete Casas, que pertenciam aos operários da Leste. “Quando eu cheguei aqui só tinha a estação, umas barraquinhas e uns comerciantes fraquinhos que vendiam um quilo de feijão, de farinha. Para comprar carne fresca aqui, era uma mão de obra.”
Alexandre lembra das viagens de trem com saudades. Conheceu muita gente por esses trilhos e, neles, levava os filhos para passear pelos estados nordestinos. Era operário da indústria, mas o que queria mesmo era trabalhar na Leste. “Não entrei só porque na minha época já não existia vaga. Era muito concorrido. Os funcionários só saíam na hora de aposentar. Era um emprego bom, muita gente que trabalhou lá hoje tem um troquinho.”
Hoje, Alexandre confia nas mudanças. Apesar de guardar o passado carinhosamente na memória, agora ele quer experimentar o futuro. Sobre o projeto de substituir o trem pelo VLT, ele é categórico. “Esse que está aí é sucata. Tem que trazer o novo.”
EVELIN e KEVELIN BISPO DA SILVA, 19
“É uma quebra na rotina e todo dia tem uma coisa nova pra ver”
O trem faz parte da vida das gêmeas Evelin e Kevelin. Há dois anos, elas pegam o transporte duas vezes todos os dias para ir ao curso técnico em enfermagem no bairro da Calçada. Ainda assim, para as irmãs, o momento no trem é um ponto fora da curva no cotidiano. “É a única coisa diferente que acontece, porque é sempre casa, curso, igreja. A gente pode conversar com outras pessoas, se divertir, fugir um pouquinho de casa… Todo dia tem uma coisa nova para ver”, conta Evelin, como sempre, sorrindo.
No trem, encontram pessoas que as conhecem desde a infância e fazem algumas amizades durante os 40 minutos que passam entre a Estação de Coutos, bairro onde vivem, e a Calçada. Um desses novos amigos é Everson, nome que falam em uníssono, animadas. Evangélicas, as gêmeas conheceram o amigo que agora faz parte da vida de ambas enquanto cantavam louvores no vagão. “Antes ele só ficava de fone, mas depois começou a despertar interesse. Quando ouviu a gente, também começou a louvar.” As irmãs louvam juntas desde os três anos de idade e dizem não sentir vergonha de cantar em público.
Evelin e Kevelin sempre ficam de pé no vagão lotado. Estavam exatamente assim no nosso primeiro encontro. Para elas, outras pessoas necessitam mais dos assentos disponíveis. Sempre tem alguém mais cansado. Contam, inclusive, que os passageiros fazem piadas sobre a superlotação: “Esse aqui é o trem da união. Todo mundo unido, todo mundo junto”. Apesar dos problemas, as irmãs reconhecem o prejuízo do fim do trem do Subúrbio, já que o utilizam de segunda a sexta. “Vai ser impactante. A gente conhece muitas pessoas que dependem desse transporte coletivo. Como o custo é barato, vai doer o bolso”, Kevelin lamenta.
WILSON JOSÉ DE JESUS, 57
“O caminho é o transporte ferroviário”
Os trilhos não são nenhuma novidade para Wilson, policial ferroviário do Sistema de Trens do Subúrbio de Salvador. Nascido em Alagoinhas, veio para Salvador numa locomotiva aos sete anos com o pai, que também era ferroviário. “Meu pai, amigos, alguns tios… Ferroviário naquela época era algo de família porque já conheciam o perfil profissional da pessoa. Meu pai trabalhou na estação de Alagoinhas como Supervisor de Máquinas e Operatrizes. Era assim que funcionava. Uma geração após a outra.”
Nos seus 17 anos de trabalho, Wilson já viu muita coisa sobre esses trilhos. Socorreu um senhor que ficou cego após levar uma pedrada, presenciou tiroteios e até evitou suicídios. “Uma vez desconfiamos da postura de um rapaz que saiu da Estação de Lobato. Um colega me chamou e disse: ‘olha, esse cara quer fazer besteira’”. Depois de duas horas de conversa, a história terminou bem. “Entramos em contato com a família dele e isso nutriu uma aproximação que fez com que diversas vezes ele fosse à Estação de Lobato para nos agradecer.”
Ao longo de tantos anos, Wilson colecionou momentos e memórias. Contendo a risada, ele lembra da algazarra feita pelos estudantes, que voltavam para casa de trem e faziam farra no percurso. “As brincadeiras às vezes ultrapassavam os limites. Era ovo gôro , farinha de trigo, rato, cordão cheiroso… Eles faziam até guerras de pipoca! Tudo isso dentro de uma classe do trem. Terminava sujando tudo, inclusive os outros passageiros.”
Hoje, lamenta a situação do trem: “O sistema está totalmente degradado, esquecido”. Antes, segundo Wilson, tinha trem saindo de 20 em 20 minutos para suprir uma demanda de 32 mil passageiros. “Um país que quer crescer com responsabilidade e sem poluição do meio ambiente tem que investir em ferrovias. O caminho é o transporte ferroviário. O custo é alto no começo, mas o retorno é muito maior.”
Sobre a aposentadoria do trem e o trabalho da sua vida, Wilson afirma que não sabe o que vai acontecer. “Nós não temos perspectiva nenhuma. Ficamos aqui naquela expectativa. A única coisa que podemos fazer é aguardar.”
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