Resgate da ancestralidade através das mestras da cultura afro-baiana
texto Luiza Gonçalves e Maya Fernandes
multimídia Breno Bastos
diagramação Mariana Brasil
narração Luiza Gonçalves
colagem Eduardo Bastos
Griô foi o nome dado pelos colonizadores franceses aos contadores de histórias nos países do oeste da África. Antigamente, apenas homens transmitiam através de suas falas os conhecimentos sociais, políticos e religiosos, no intuito de manter viva a cultura de seus povos. O conhecimento transmitido pelo povo. Trazida pela diáspora africana e marca forte da cultura afro-baiana, a tradição oral é ponte entre o Griô e os Mestres e Mestras brasileiros, figuras notáveis pelos seus saberes e seu papel educacional, que resistem ao apagamento histórico e constroem nosso patrimônio e memória cultural.
Mestra sambadeira de personalidade firme, Dona Aurinda, 86, é tocadora dos instrumentos prato e faca da Ilha de Itaparica. Com uma infância difícil, Aurinda se aproximou do ritmo a partir do seu irmão Gerson Quadrado, capoeirista e grande conhecedor do samba. Foi na roda de samba, com os seus fiéis instrumentos, que se tornou uma Mestra, conhecida pela sua ótima memória musical, agilidade e as belas roupas de baiana que porta sempre que vai ao samba.
Já Nancy de Souza e Silva é destaque por sempre ter uma história para contar, até mesmo sobre seu nome, que recebeu da sua mãe por ter nascido no mesmo dia do bombardeamento da cidade de Nice, na França. Mas, gosta mesmo de ser chamada de Cici, apelido carinhoso dado pelo seu pai. Vó Cici, 83, é mestra contadora de histórias do Engenho Velho de Brotas. Através de seu comando doce, ela educa e explica a vida ao seu modo.
A música de Dona Aurinda do Prato e os contos de Vó Cici despertam a memória em quem as conhece. A partir da conversa com essas senhoras encantadoras, buscamos entender um pouco mais da dimensão da palavra como ferramenta da construção e transmissão dos saberes na nossa comunidade.
Eu sou a história
É pela vivência cotidiana e na boa escuta que tradições são consolidadas. No caso de Vó Cici e Dona Aurinda, as histórias mais antigas que têm são vindas de relatos orais e dizem muito sobre suas trajetórias. Órfã aos sete anos, foi ao som do berimbau e dos cantos do seu irmão Gerson que Aurinda cresceu e aprendeu o respeito, a educação e conheceu sua maior paixão: o samba.
“A primeira história que eu ouvi foi meu irmão tocando berimbau”. Como o irmão, é através de um instrumento que Dona Aurinda conta suas melhores histórias. Não demorou para o som do prato e faca chegarem na conversa. E não economizou. Ao contrário das respostas mais diretas na entrevista, no samba ela emendou várias músicas, cantou e tocou acompanhada de sua filha. Ria ao dizer: “eu não sei muito não, mas pra tocar comigo precisa que saiba tocar, senão não toca”.
“eu não gosto da palavra folclore, porque tudo que eu conto, eu acredito”
vó cici
Com Vó Cici, o que não falta são histórias. De didática variada e conversa calma e fluida, quis saber se queríamos ouvir uma história e a resposta foi sim. Ao contar uma história de Oxum, sua postura cresceu, os gestos mudaram, e as canções acompanharam. Ela é a história e na sua perspectiva não considera contos africanos mera fantasia. Pode-se perceber isso quando relatou sobre uma vez que foi chamada para contar histórias na semana do folclore: “Eu não gosto da palavra folclore, porque tudo que eu conto, eu acredito”.
O ponto principal de sua fala são os contos afro-brasileiros e a defesa da sua contação para valorização da identidade negra. “A história europeia tem milhares de pessoas pra contar, mas a da minha cultura, a da minha raça, você não encontra quem conte”. Foi através de Ziza, mulher que cuidava de seus primos quando criança, que ouviu as primeiras narrativas que lhe chamaram atenção. As chamadas “histórias da época que os bichos falavam” despertaram seu interesse por serem muito diferentes do que tinha ouvido até então. “Fui crescendo muito curiosa. Comecei a enxergar que meus tios e meus primos falavam da cultura afro-brasileira e indígena, que não era muito a cultura da minha mãe, então eu fui aprendendo os nossos personagens”.
Mulheres de axé
As religiões de matriz africana desempenham um importante papel para a manutenção da tradição oral, o que contribui na construção e transmissão da identidade negra. A maioria destas são matriarcais e mesmo enfrentando resistências e se dispondo em diversas funções, as mulheres solidificaram as bases religiosas e ocupam grande parte dos cargos de alta hierarquia.
Dona Cici é Ebomi. Este é o título que se dá a quem já tenha terminado a iniciação de sete anos (deká) ou às pessoas que não entram em transe e se iniciam no candomblé. Ela age na casa como irmã mais velha, orientando os mais novos. Já Dona Aurinda é Ialorixá, cargo mais alto dentro de uma Casa de Santo que só é ocupado após sete anos de iniciação. Ela zela pelos Orixás, inicia os novatos, suspende e confirma Ogans, apresenta e confirma Ekedis, etc. É o ponto de equilíbrio da casa.
A maioria das histórias que Dona Cici conta está relacionada a sua religiosidade. Ela nos disse que só quando entrou para o candomblé, aos 18 anos, descobriu o que era ser negra. E com isso percebeu a importância de levar as histórias que ouviu no candomblé adiante: “Eu já vi os olhos das crianças brilharem quando se conta uma história de Orixá. Perguntam ‘O que é um orixá?, respondo ‘Orixá é uma figura da natureza’ e logo questionam ‘Eu sou de que orixá?”, eles querem saber o orixá que os protege. A autoestima da criança dentro da cultura afro-brasileira é levantada, é impressionante como o negro se sente orgulhoso de saber o orixá dele.”
“a roça do candomblé é uma grande escola”
dona aurinda
Dona Aurinda trouxe uma perspectiva encantadora sobre a escuta no candomblé. Ela ressalta que a pessoa iniciada é ensinada a proceder diante de várias situações e funções, e que para ela “a roça do candomblé é uma grande escola”, onde se trabalha com a mente. É ela que guia, “que abre nossos caminhos”. Nas religiões afro-brasileiras a escrita formal não é regra. A oralidade promove internamente uma experiência de aprendizado em que a ordem é: ver, ouvir, obedecer, ajudar e passar a diante.
Ser uma mulher de axé é se entregar. E nesta entrega é preciso ter em mente que manda quem pode, obedece quem tem juízo. A hierarquia é fundamental na estrutura da religião e delimita espaços, alinha o grupo, delega funções e responsabilidades. Pela escuta que se dá o aprendizado candomblecista. A observação e a vivência cotidiana constroem uma herança ancestral de saberes, histórias e entregas.
Criado por Vó
Os laços de hierarquia e respeito não ficam restritos à religião. Fora dela, o conhecimento passado por figuras como Dona Aurinda e Vó Cici é reconhecido como familiar e, por suas idades, relacionado com a figura de avó.
Cici se apresenta para todos como Vó Cici. Sua presença é muito requisitada na comunidade que mora, pela sua persona amorosa e responsável. O que é evidenciado através do trabalho social no Espaço Cultural Pierre Verger, local destinado a realização de oficinas e diversas atividades culturais e de formação para crianças e adolescentes do bairro do Engenho Velho de Brotas.
“Vovó vai ver. Se ela tiver vai dar, se não tiver vai pedir. A minha boca é grande de pedir as coisas para os outros e eu peço com muito prazer. Então uma das coisas que a Fundação Pierre Verger faz e luta é pra dar alguns momentos melhores na vida daquelas crianças do bairro. Se você plantar uma boa semente no coração de uma criança, eu tenho certeza, eu sou prova disso, que você nunca vai se arrepender”.
Vó Cici acredita que uma de suas maiores funções é o suporte afetivo, por acreditar que falta amor e carinho dentro de muitas casas. Tenta estar presente sempre que alguém precisa de sua escuta ou conselhos e diz que essas trocas emocionais lhe dão força para continuar sua missão. Considera as crianças que frequentam a fundação como suas netas, comemora suas conquistas e sofre suas perdas. “A dor, a tristeza quando eu perco um deles para a violência é como se fosse um pedaço de mim. Eu nunca me esqueço”.
Mãe de quatro filhas e avó de muitos netos, Dona Aurinda é modelo de força e inspiração para os que convivem com ela. Sustentou sua família sozinha, lavando, cozinhando e mariscando, com muita luta e coragem: “meti minha cara mesmo”, ela ressalta. Sem enrolações, as respostas são certeiras e bem humoradas, é mulher de uma palavra só e tenta fazer o melhor de cada momento que vivencia: “O que caiu na rede é peixe e como já dizia o tabaréu ‘a vida continua’ ”.
Simples e muito receptiva desde nosso primeiro contato, Aurinda frisa que a educação é seu valor mais antigo, que aprendeu com seu irmão e que pauta seu cotidiano, passando-o sempre adiante. “Ter educação é ter tudo na vida. Te faz saber viver, saber entrar em qualquer lugar, saber sair. É uma maravilha”.
“a porta tá aberta, pode vir, não tem uma criança aqui que você pergunte onde é a casa Dona Aurinda e ela não saiba”
dona aurinda
Quando perguntada sobre seu relacionamento com a comunidade da Ilhota, em Vera Cruz, na Ilha de Itaparica, onde mora há mais de 70 anos, Dona Aurinda responde animada: “Sempre minha casa tá cheia, graça a Deus. Eu amo, eu adoro. A porta tá aberta, pode vir, não tem uma criança aqui que você pergunte onde é a casa de Dona Aurinda e ela não saiba”.
O que é ser uma mestra?
Não tem forma mais genuína de aprender do que pela escuta. E quer melhor figura para ensinar do que a do mestre? Na palavra deste, encontram- se soluções para lidar com os conflitos, particularidades e perspectivas de ser e viver. Geralmente, a partir desta posição fica a responsabilidade da transmissão dos saberes de uma comunidade. Mas é um símbolo que pode ser visto de uma maneira mais orgânica, onde os saberes se encontram de uma forma horizontal, de modo que as experiências coletivas, enraizadas no passado, permitam que as vivências de hoje se orientem para o amanhã.
Uma vida dedicada à transmissão da sabedoria afro-brasileira fez com que Vó Cici atraísse a atenção de muitos, tornando-se referência, principalmente dentro da comunidade negra. Passou a ser apresentada e referida como mestra, assumindo papel de representação e colaboração na formação de muitos jovens e crianças a saberem das histórias que representam sua ancestralidade .
Dona Aurinda, que ficou conhecida por sua grande atuação nas rodas de samba de Salvador e da Ilha de Itaparica, conta que o título de mestra foi uma alegria, dada num lugar muito especial: “Foi na Casa do Samba de Santo Amaro, eu sou de lá também, faço parte desde o tempo de meu irmão. Me botaram essa palavra docente e curiosa: Mestra Aurinda do Prato”.
Ao perguntar, tanto para Dona Aurinda quanto para Vó Cici, sobre como lidavam com o título da maestria e o reconhecimento popular, ambas responderam que era um lugar inesperado e trouxeram suas próprias concepções sobre o que é ser mestre. Dona Aurinda acredita que ser um mestre significa ser inteligente, ter educação, respeitar as pessoas: saber ver, entender e decifrar. “Se essas três palavras numa só um mestre não souber, não sabe nada”. Sabedoria mesmo tem aquele que sempre se dispõe a aprender.
“eu ainda estou aprendendo a respeitar as pessoas, acho que tá bom, o resto você vê, você mesmo descobre”
vó cici
Vó Cici se coloca como uma contadora de histórias da cultura afro-brasileira, uma observadora da vida, que em todas as oportunidades que lhe aparecem procura aprender, compreender, agregar coisas que lhe fazem bem e sem querer, acaba ensinando: “eu ainda estou aprendendo a respeitar as pessoas, acho que tá bom, o resto você vê, você mesmo descobre”.
A transmissão do conhecimento pela oralidade é um grande poder para a manutenção da cultura e a responsabilidade que vem junto é encarada com leveza por nossas vovós. Dona Aurinda conta que quando recebeu o título de mestra, sentiu que o rótulo a incomodava, num bom sentido. De trazer para si responsabilidades, como ela mesma diz: “Responsabilidade de saber fazer e resolver as coisas, não ir atrás de ninguém, saber resolver por conta própria e aí eu vou minbora”.
Cici vê nessa transmissão uma oportunidade de acolher e vê muito sentido em ser canal das histórias do povo afro-brasileiro: “Enquanto eu puder eu estarei fazendo isso. Se puder, eu farei mais. Se não puder fazer mais, farei o que faço e se não puder fazer o que faço, farei menos. Nunca vou deixar de contar uma história, de acolher uma criança no coração”, promete.
Mas que grande poder, afinal? O poder do acolhimento, pelas histórias de Vó Cici, que dizem muito sobre nós, e do toque do prato de Dona Aurinda, que traz uma lembrança de um tempo que nem se viveu. Um grande abraço da ancestralidade, como numa roda de samba no barracão, em que o sambador toca pandeiro, a comadre canta o ponto e batendo o pé na terra vovó me ensina a sambar.
A gente gostou tanto do momento que tivemos com as mestras na construção dessa matéria que decidimos partilhar um pouco mais desse encontro com vocês. Para isso, separamos a gravação de uma das músicas cantadas por Dona Aurinda. Para ouvir é só dar play. Esperamos que gostem!
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